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domingo, 2 de outubro de 2011

QUANDO SUA PIOR INIMIGA É SUA MELHOR AMIGA

Ela arrancou meus dois dentes da frente, só porque eu peguei uma camiseta dela sem avisar. Me trancava na cozinha, quando minha mãe saia para trabalhar, e junto a sua melhor amiga, me dizia com olhos ferozes: “entra no forno agora, vamos comer uma porquinha assada”. Eu chorona desde sempre, abria o berreiro e elas com ar de cordialidade, fingiam, retroceder: “Tá, tá bom. Não vamos assar você, vamos só cortar um dedinho e fritar”. E quando meus pais saiam à noite, era outro o sufoco. Minha casa sempre foi farta de fantasias, pois éramos as duas dançarinas, bailarinas, artistas. Casa e escola eram nossos palcos. Desempenhei papéis importantes como a Gota D’àgua e a russa (afro-nordestina, mas russa). E ela foi o Simbolismo. Olha que profundo!!! Só que havia uma fantasia de cigana que ela adorava, bem na época em que a novela Carmem fazia sucesso na TV Manchete. Então, era só o carro dos meus pais sumir do nosso portão para ela se ausentar da sala onde assistíamos TV. Voltava, vestida de cigana, com um coque e rosa no cabelo, batom bem vermelho na boca, saltos altos. Entrava bem séria na sala e eu, sempre besta, perguntava: “o que é, Isaura?”. Ao que ela respondia: “Não me chame de Isaura. Meu nome é Carmem”. E vivia o personagem, dançava, fazia os sons de castanholas com a boca e fingia estar possuída pela personagem. Isso, é claro, até ouvir o barulho do carro dos meus pais, se aproximando. Ai, ela saia, botava a camisola e retornava com carinha inocente.

Minha irmã! Era o que ela sempre fora: minha única irmã. Naquela época, ninguém falava em boulling nem violência infantil. Por outro lado, eu também tinha minhas artimanhas e vinganças. Minha arma fundamental sempre fora a pirraça. Arte em que sou praticamente uma PhD.

Éramos como gato e cachorro na infância, mas na adolescência por pressão paterna, fomos obrigadas a nos aproximar, pois uma só podia sair em companhia da outra. Lembro-me do dia, ou melhor, da madrugada, em que fui consolá-la de uma das inúmeras brigas com meu pai, por causa do primeiro namorado. Acho que foi ai que minha pior inimiga se tornou minha melhor amiga. Mas, apesar desta aproximação, jamais paramos de brigar feio, com palavrões, puxões de cabelos, tapas e ofensas graves. Ultimamente, por certa vergonha de nossos companheiros e da nossa faixa etária é que a violência física diminuiu, mas ainda temos a delicadeza de bater o telefone uma na cara da outra, de gritar uma com a outra.

Somos diferentes em tudo e é esta disparidade que nos completa e faz dela uma das mais importantes almas gêmeas de minha vida. Os amigos dela são sempre engomadinhos. Os meus são sempre amalucados. Eu nunca tenho muita paciência para ser cordial com os dela. Tem uns que nem me disponho a falar ou ser gentil. Já ela, no primeiro encontro se torna amiga de infância dos meus. Eu sou avoada, meio alternativa, do contra em quase tudo, silenciosa, introspectiva, um pouco rebelde e bastante egoísta. Ela é toda antenada, gosta do que é bom, sabe das coisas e gentes chiques, fala que nem a nega do leite, extremamente extrovertida, resolve os problemas de todo mundo, está sempre disponível e atenta para pensar no coletivo. Ela é muita católica. Sempre foi a garota propaganda dos grupos de jovens, dava palestras, sensibilizava os fieis, abraçava o ‘irmão’. E eu, sempre desconfiada de dogmas e verdades, me coçava só em ouvir falar de grupo de jovens, em Igreja, em religião. Odiava abraçar o ‘irmão’, cantar com as mãos pro alto. Apesar da fé que tenho, acho uma libertação (incomoda para alguns), dizer: “não tenho religião”.

Quando nos juntávamos para sonhar com o futuro, imaginávamos que eu ia morar na Aldeia Hippie de Arembepe e ela, no Horto, bairro nobre de Salvador. Eu teria cinco filhos, todos com nomes relativos a natureza ou África, algo do tipo, Lua Dandara ou Munanga das Águas. Ela teria apenas uma filha cujo nome seria Catarina Angélica de Albuquerque Figueroa. Os meninos iriam sujos, desgrenhados, sem pentear o cabelo passar férias com ela e voltariam limpos e passados a ferro. Já Catarina quando viesse toda engomadinha passar férias em minha casa, voltaria bem queimada de sol, com os cabelos trançados e diria: “Meu nome não é mais Catarina Angélica Albuquerque Figueroa, me chame de Nana Shara”. Nada disso aconteceu. Ainda... Mas quando inventávamos esse futuro tresloucado, ríamos muito e nos uníamos mais ainda em nossas diferenças.

Só muito depois que eu entendi que essa inimiga, na verdade tinha um imenso complexo de Felícia, aquela do Loney Tones que ama os bichinhos, mas de tantos cuidados quase os mata asfixiados. Depois é que entendi que toda aquela violência sufocante era um amor exagerado, de umas das pessoas que mais me ama na vida. Então a partir dessa compreensão pude compartilhar com ela dos meus momentos mais importantes e dos momentos mais importantes delas. Ela esteve comigo em cada concurso que fiz, em cada seleção, em cada defesa; organizou mais meu casamento do que eu mesma, comemorou cada vitória alcançada e chorou comigo em cada decepção, frustração ou percalço da vida. Eu também estive com ela em cada formatura, emprego, em cada relato das mazelas sociais seja de uma enfermaria de oncologia pediátrica seja de uma comunidade popular da região metropolitana de Salvador. Estive com ela no casamento, momento que chorei copiosamente, daquele modo nada contido que aprendi a chorar e também na noite que ela deu a vida ao menino solar e na manhã que ela deu a vida a menina lunar. Estive e sei que sempre estarei perto dela. Estamos coladas uma na outra para o sempre.

Talvez só possa entender essa complicada relação de amor quem tem duas mulheres irmãs dentro de casa. Talvez só quem tenha visto tanta calçola estirada no varal, tanto salto espalhado bela casa, possa entender essa difícil relação de duas mulheres. Mulheres, educadas para competirem uma com a outra, seja pelo amor dos pais, seja pelo lugar ao sol, mas que passam a descobrir ao longo da vida um amor fraterno tão intenso e inigualável, um amor tão vital que parece que há um cordão que me cola a ela eternamente. Talvez, não. Com certeza, essa inimiga me jogou nas maiores fogueiras, me impôs os piores desafios, mas ela também, sempre se converteu na amiga que curou as dores, trouxe os bálsamos e os aplicou nas mais fundas feridas. Essa inimiga-amiga foi a maior professora de vida que a existência me deu. Foi ela que me ensinou que há muitos caminhos e cumpriu a difícil tarefa de passar primeiro por muito deles; foi ela quem também quis fechar alguns caminhos com a vã intenção de me proteger; foi ela quem sempre cuidou de mim como se eu sua primeira e mais viva boneca fosse; foi ela quem descobriu tardiamente que eu era gente de carne e osso, não um frágil bibelô de louça, e portanto poderia ser jogada no mundo porque não quebraria fácil.

Foi com ela que eu me fiz o que sou e ela também pode dizer que a recíproca é verdadeira.Foi com ela que tal qual as irmãs Mercury, descobri minhas manias, fantasias e maluquices. Tudo isso sempre irmanada, protegida, amparada por este ser que de tão inimigo trasnformou-se em maninha, em cumadre, em amiga!!!