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sábado, 16 de março de 2013

AS MALUQUICES NOSSAS DE CADA DIA: TODAS LOUCAS

AS MALUQUICES NOSSAS DE CADA DIA: TODAS LOUCAS: TODAS LOUCAS [i] Eu não sei contar esta história. Ela é cheia de vazios. Aliás, a ausência faz parte da história que tanto quero con...

TODAS LOUCAS



TODAS LOUCAS[i]
Eu não sei contar esta história. Ela é cheia de vazios. Aliás, a ausência faz parte da história que tanto quero contar. Mas afirmo, até para me salvaguardar de condenações: eu não sou nem nunca fui sua testemunha. Sou apenas alguém que ouviu as mesmas parcas informações um monte de vezes. Sou aquela que escutou de olhos atentos esta verdadeira história como se história de assombração inventada fosse.
Mas agora, no anseio de passá-la adiante e me tornar sua contadora é que me conscientizo de que a história que escrevo não passa de um velho enredo, muito mal-contado. Não passa de uma narrativa muitas vezes repetida. É apenas uma história de muitas... De muitas mulheres de um tempo que parece já não haver mais. Entretanto, nem de longe, esta é uma história confusa. Ela tem coerência, porque tudo nela se encaixa, tudo nela se elucida.
Minha mãe é quem sempre narra essa história para mim, embora ela mesma só saiba de parte dos acontecimentos. Tão marcada por essa história, minha mãe talvez nem saiba contá-la. Entretanto, mesmo não sabendo, eu, criança, desde sempre gostava de ouvi-la. Há muitas lembranças, mas estas são aquelas memórias fotografadas em sépia cuja imagem já não tem nitidez nem brilho.
O pior é que essa história esgarçada faz parte de mim, me alimenta, me completa. É um emblema da minha condição feminina. É uma insígnia familiar. A todo tempo, a rememoro, a reinvento, incluo eventos e vou, ao modo meu, narrando-a com as minhas mentiras pontuadas de verdade.
Minha mãe conta de uma tia. Tia Mariá. Irmã de meu avô materno. Até foto, ela tem! Uma mulher magra, de estatura mediana. Na foto antiga, parece ter cabelos castanhos e escorridos, a pele é morena daquele dourado queimado pelo sol. É uma mulher linda, mas toda sua beleza reside no olhar. É um olhar que parece querer seduzir. Mais que isso: é um olhar que enuncia uma consciência de sua própria beleza. Transborda autoestima, determinação, orgulho. Artigos tão incomuns em mulheres que, como ela, viveram na primeira metade do século passado.
Dizem as mulheres da família Sacramento que com ela conviveram que ela tinha o hábito de se arrumar bastante nos fins de tarde e ficar na janela, pronta para encantar os passantes. Gostava de cortejar e ser cortejada. Transcendia ao ser olhada por um outro. Tinha um ar de leveza. E ficava horas intermináveis do dia a olhar para o tudo que preenche a vida lá fora. É que as mulheres do seu tempo só tinham direito ao de casa, ao comezinho. Mas parece que Mariá sempre quisera o que estava além da janela. Ficava a olhar para fora com desejo incontido de sair de dentro e partilhar sua beleza mundo fora, até porque era muita crueldade com ela e com o universo, aprisionar a maravilha que desabrocha.
Minha mãe diz só ter uma lembrança do antes dela. Numa festa do Senhor do Bonfim. Mariá, bem vestida como sempre, levava lépida e transbordando de felicidade, minha mãe já criança grande, pelas mãos para ver a lavagem das escadarias. Invento as duas se balançando com leve delicadeza, ao som de instrumentos afro-brasileiros, em direção ao adro da Igreja. Vejo olhares, voltados para as duas.  Observo do lado de cá da minha imaginação, todos abrindo alas, em contemplação e agradecimento, para a beleza que passa pelas escadas perfumadas de alfazema.
Daí, minha mãe pula para outra parte da história, cheia de frases entrecortadas, confirmando esta como uma mal contada história. “Parece que ela era linda”. “Era muito cortejada pelos homens”. “Foi até miss”. “Gostava de desfilar sua beleza pelos salões maragojipanos”. “Ficava sempre na nossa casa em Salvador, mas depois tivemos pouco contato com ela”.
“É que ela, Mariá, se casou”. Esta é a frase em que minha mãe faz uma pausa, respira, toma fôlego e, em tom de suspense, continua a história. Entretanto, abre-se um fosso novamente. Ninguém fala sobre o marido. Nunca dizem quem era, de onde era, como se conheceram. Só dizem que era um Don Juan. Homem de muitas mulheres, mas obcecado somente por Mariá. Homem, como os de seu tempo, que compreendiam os direitos do macho de ir, vir, deflorar. Mas negavam as suas santas mulheres a explosão do gozo. Falam de um ciúme forte, de um fundo desconforto com a beleza que o seduziu. Falam apenas do silêncio por aquilo que nunca souberam e para sempre desconhecerão.
É importante dizer que Mariá morava em Maragojipe, enquanto alguns dos seus irmãos já tinham vindo morar em Salvador e os outros defendiam que ‘em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher’. E não faz mal lembrar que naquele tempo as distâncias eram maiores (apesar de serem as mesmas) e a comunicação era fragilmente, levada por mãos de carteiros ou por bocas conhecidas. Penso que isso tenha facilitado a existência dessa história mal contada, tal qual ela é.
Assim, por longo tempo, nem cartas nem bocas passaram a noticiar por onde a beleza de Mariá se espelhava. Aflitos, os irmãos retornaram à Maragojipe e lá não encontraram mais vestígios de alegria, de boniteza e muito menos de olhares de luz acesa. Não havia muito o que fazer. Aliás, só era possível gritar, chamar pelo seu nome, dizer aos próximos do sumiço esquisito. Mas o silêncio - entre aqueles que sabiam - imperava. Ninguém, naquele tempo nem neste, quer mesmo se comprometer com a ausência. Ninguém quer dizer o que sabe. Melhor inventar histórias. Melhor difamar. Melhor inquirir. E no dizer de ninguém, o olhar denunciava que algo estranho pairava no ar. O mistério revelava que por trás da ausência só poderia existir uma assustadora e inquietante presença.
Tempos depois de intensa procura, de especulações sobre morte e prisão, Mariá finalmente foi encontrada. Estava residindo numa chácara grande cuja moradia em estilo colonial lembrava o casario da cidade natal. Era em Salvador mesmo. Só que afastada do Centro. Num lugar, bem arborizado e bucólico. Feito para acalmar. Mariá estava no Hospital São João de Deus, conhecido atualmente como Hospital Psiquiátrico Juliano Moreira. O primeiro hospício de alienados da Bahia. Foi, desde o seu desaparecimento, internada lá, como louca por aquele que era, conforme costume de sua época, na ausência de seu pai, seu tutor: o seu marido. Provavelmente motivado pelo ciúme – deflagrando a loucura que era dele mesmo e não dela.
Como autoridade que era, o marido nunca foi questionado pelo hospital sobre sua decisão. Nunca foi sequer inquirido por médicos ou enfermeiros se a família de Mariá sabia do ocorrido. Nunca aqueles que foram coniventes com sua internação buscaram saber dos familiares de Mariá e muito menos estranharam a ausência de visitantes para ela.
Muito pior. Depois da descoberta pela família sobre o acontecimento, muitos profissionais do hospício afirmavam que Mariá havia entrado completamente sã naquele local. E ainda assim, essas mesmas pessoas silenciaram diante da autoridade masculina e trataram-na como louca, mesmo ela não sendo, mas transmutando-a num ser exatamente assim.
E quando a família pode, finalmente, foi fazer sua primeira visita, anos depois de seu desaparecimento. A bela Mariá de olhar vivo, tal como o marido desejava, já não existia mais. Sobrava uma mulher vestida de trapo, que desconhecia seu rosto e nome, não sabia quem era, nem de onde viera e era incapaz de reconhecer os seus. Visita constante era a de uma cunhada, a minha avó Benita. E pensando sobre essa preocupação de Benita, eu não consigo compreendê-la apenas como mais um ato de solidariedade ou caridade tão comuns a sua personalidade. Na história que invento e conto, Benita visitava Mariá e ainda levava suas filhas Norma, Lúcia e Suely como acompanhantes em sinal de que esta espécie ‘ainda envergonhada’, chamada Mulher, precisa conhecer de fato o que acontece como aquelas que decidem insurgir, se rebelar. Precisa estar consciente do preço que se paga por querer o que está além da janela de nossas próprias casas. Vejo que a intenção de Benita era formativa, era pedagógica.
Minha mãe afirma que os dias de visita ao manicômio marcaram intensamente sua juventude. Estas sim eram lembranças fortes. Sobretudo, porque, por mais que olhasse para sua tia, jamais conseguia unir a imagem daquela linda mulher com quem passeou pela festa do Bonfim com a daquele frágil ser que conjugava momentos de histeria com os de letargia.
E como se não bastassem as vozes entrecortadas de minha mãe, aparecem outras. As das sobrinhas netas, minhas tias, a revirar minha cabeça. Todas Sacramento. Rosinha franze a testa e diz que não tem lembrança alguma. Mas quando, Suely começa a falar uma história confusa, talvez por ser a filha mais nova de Benita e aquela que só viu da história a parte que sua cabeça de criança podia entender, Rosinha começa a lembrar. Aí, vem Lúcia que sempre se lembra de tudo. Ou inventa? Ela diz com certeza que Mariá era linda. Isso todas confirmam. Rosa acrescenta que Mariá tinha um cabelo bonito (e fala isso com o olhar complacente). Aí, Suely diz que Mariá foi abandonada pelo noivo. Minha mãe, minha tia Lúcia, minha tia Rosa – mais velhas – insurgem num uníssono NÃO! Não foi isso. Foi o marido que a amaldiçoou. E ainda travestiu-se de lobo em pele de cordeiro, porque disse a fagueira Mariá que a viagem era para à Bahia, para resolver assuntos importante e passear. Jamais dissera a trágica verdade. E isso fazia parte do plano, porque, ao se embelezar para desfilar na capital, jamais havia se dado conta que ia de fato para o seu maior infortúnio. Só tendo compreendido na porta do hospício que a intenção do marido era outra e ali começou a denunciar uma loucura que faz parte de todo ser.
Gosto de inventar que Mariá nunca cedeu, nem fingiu adequar-se a forma considerada certa de ser mulher em seu tempo e lugar. Até porque quando a gente descobre dentro de nosso ventre todo potencial que o nosso corpo, a nossa emoção e o nosso intelecto têm juntos, torna-se impossível forjar a subserviência, a resignação, a obediência. Só nos resta dar a cara a tapa e enlouquecer! Gosto de pensar que esta foi a saída que seu marido achou para conter o incontível desejo de ser de Mariá.
E é pensando nesta história tão cheia de ausência que eu queria comemorar minha condição feminina. Porque sem a loucura de Mariá, sem sua insistência em se reconhecer como humana, como um ser de direitos, sem o seu desejo pelo o que está fora dos afazeres caseiros ou familiares, eu não teria a ousadia tranquila para fazer isto por mim mesma.
Sei que Mariá não foi a única. Muitas Mariás viveram sob as mesmas condições. Muitas enlouqueceram por sua clareza de pensar. Muitas sucubiram por sua decisão de ser mulher até as últimas consequências. Mas o que importa não é a tragédia do fim, até porque este não há. O que importa para mim nesta mal contada história é que ela ficou. E mais que isso, eu a sobrinha neta a contarei para jovens Mariá-nas e esta história continuará a nos entranhar, a nos ferir, a evidenciar a urgência de a mulher altear olhos e narizes e de se travestir com armas diversas em guerreira.
É Mariá e sua história que me explicam que a loucura é o que nos une. São elas que me indicam que nós, mulheres, desde sempre, não passamos de umas loucas. Porque é loucura mesmo seguir pelo caminho em que não nos contentamos em ser apenas o objeto de desejo do macho. E então, quando me perguntarem de onde vem minha maluquice, minha resposta não será apenas uma paráfrase de Adélia Prado. Será história de verdade, história acontecida. Minha loucura vai até minha tia avó, vai além, vai a minha mil avó! E não tem pedigree!


[i] Dedico este texto a Norma, Lúcia, Sueli, Rosa Emília, Suzana, Vera, Isaura, Maria Alaíde, Ivana, Ione e Marinez!