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sexta-feira, 28 de junho de 2019

SOBRE "DENTE-DE-LEÃO: A SUSTENTÁVEL LEVEZA DE SER"


Depois que Sacolinha veio à Bahia em 2017, muita coisa aconteceu de formativo para nós do GELPs. Eu, por exemplo, fui afetada de muitas formas e convidada a conhecer o que era a Comunidade do Conto e a realizar um trabalho de revisão dos textos literários ali produzidos. Destaco que, como professora de Língua Portuguesa, já havia revisado artigos, monografias, dissertações, mas nunca havia realizado o mesmo empreendimento com textos literários. Sacolinha, corajosamente (ou seria cegamente?), me convidou a fazer este trabalho. Experimentar a revisão de textos literários de diversos autores, tratando de temas contemporâneos e arriscando estruturas e linguagens as mais diversas, foi uma aventura deliciosa. 



Era um teste para o que viria depois: revisar o primeiro livro de crônicas do Escritor Sacolinha. Confesso que fiquei tensa com o convite, mas, como versejou Drummond, “fomos de mãos dadas”: aprendi neste processo um tanto de coisa sobre a escrita literária e o trabalho de “inspiração e transpiração” de um escritor. Eu recebia as crônicas, as revisava e as enviava de volta ao autor. Homem aperreado, Sacolinha defendia com unhas e dentes cada milímetro do seu texto, mas aceitava e compreendia as sugestões dadas para ampliá-lo. O texto e sua comunicabilidade estavam sempre à frente de tudo. Nas idas e vindas que houve em cada uma das leituras, ele perseguia a palavra perfeita e não sossegava enquanto não enxergava a fluidez do verbo. Isso cansava, exasperava, mas era bonito de se ver.



Depois das revisões feitas, pude acompanhar sua preocupação com todos os detalhes que compõem esse bem material/ objeto cultural/ produto de mercado chamado LIVRO. Lembrei-me que, certa vez, ouvi na UNICAMP uma pesquisadora dizer que Machado de Assis conversava com editores sobre tamanho de letras e melhor gramatura do papel para agradar aos leitores. Sacolinha e Machado sabem que livro tem que circular, tem que ter vida, tem que conversar com seus leitores. Livro não é objeto decorativo para ornar estantes. Livro só serve se for bem aberto e lido!



É preciso pensar o livro como esse objeto táctil, memorando agora Caetano Veloso. É bom tocá-lo, cheirá-lo, passar as mãos nas folhas. É bom riscá-lo, autografá-lo, profaná-lo. Livro não é objeto sagrado. Livro é mundano. Vai na mão de qualquer um e se arreganha ao mais leve toque de um leitor atento e cuidadoso. Tudo isso evoca prazer, porque livro é sensual demais para ser feito de qualquer jeito. Para além disso, ao mesmo tempo que nunca é sacro, ele é mágico, enfeitiça, pois funciona como um portal por onde adentramos para dentro e/ou para fora de nós mesmo.



Sacolinha sabe e me ensinou com generosidade que essa potência entre o material e o transcendental precisa ser trabalhada com zelo, e também[1]  sem muitos pudores, porque livro é produto de mercado, precisa ser vendido, por muitos motivos, dentre eles, o fato de o escritor ser um profissional que vive dos livros que comercia. Por compreender a questão do mercado e da arte como conjugáveis, o escritor susanense investiu numa bela capa, em paratextos que se afinam à proposta do seu livro sem antecipá-lo, mas cumprindo a função de aguçar o desejo do leitor pela leitura. Cuidou de uma diagramação cheia de fotos poéticas, produzidas por diversas pessoas, dentre elas a bela assistente Alanda, cria rebento do escritor.



Atentou-se para uma divulgação paulatina, fazendo várias etapas de pré-venda e também publicizando ações para promover o acesso ao livro. Sacolinha é daqueles que, para além do livro físico, explora outros suportes que contribuem para a disseminação da informação de que o livro existe e está sendo lançado e comercializado. Tudo isso também tem como finalidade atrair leitores, o que fomenta a prática da leitura literária, como instrumentaliza os leitores a se letrarem. Por isso, quem quiser pode ter acesso a marcadores de livro, a adesivos, a postais e camisetas com fragmentos do livro de Sacolinha que servem como aperitivos para os leitores. Provam um tiquinho aqui e acolá para sentirem-se famintos pela obra completa.



Neste processo que acompanhei, vi o escritor ser o editor e passar por todas as etapas que envolvem este processo: a criação, a revisão, a construção de paratextos, a preocupação com os aspectos gráficos, a divulgação, a distribuição. É muita coisa. E talvez nem seja justo exigir que todo escritor faça isso. Mas eu me pergunto: quem não está nos espaços de privilégio deste país e provavelmente não fará parte do grupo excludente das editoras multinacionais que aqui dominam um mercado (o legitimado, incensado, mas não o único), pode apenas escrever e não se comprometer em fazer circular seu livro? Pode apenas escrever e não se envolver com a formação de público leitor entre os nossos? Nós que creditamos à leitura um potencial revolucionário para os nossos, podemos aguardar bom tempo para que os textos literários produzidos pelas populações pretas e periféricas deste país cheguem aos seus leitores ideais? Eu sei as minhas respostas, mas as deixarei em aberto...



O livro “DENTE-DE-LEÃO: A SUSTENTÁVEL LEVEZA DE SER” é obra que sai da linha. Vai na contramão do que superficialmente (ou preconceituosamente) se diz de uma escrita proveniente de contextos periféricos. Quando se quer inferiorizar tais textos, afirma-se que são descritivistas, tratam de temas limitados e ligados apenas as mazelas sociais ou a uma margem criminal. Sem sair da cena das periferias de São Paulo, Sacolinha vê seu Jardim Revista como Alberto Caeiro: “Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer/ Porque sou do tamanho do que vejo”. Na periferia do Sacola, cabe o mundo todo, pois é o olhar vasto (assim como vasto é o mundo) do escritor que consegue enxergar o que ali está, mas é negligenciado, negado, silenciado.



Nas crônicas, Sacolinha ora compreende a dimensão política de fazer uma horta orgânica ora denuncia as artimanhas das tecnologias de comunicação contemporâneas para roubar nossa atenção e nos encarcerar em cavernas. O escritor provoca-nos a pensar o quanto, para além da violência do armamento empunhado pelo estado e pela criminalidade, estamos sendo mortos lentamente por uma indústria alimentícia associada à indústria farmacêutica.



A leitura é tema recorrente. Leitor que é de Saramago, preocupa-se com uma cegueira que nos nega a ver e, sobretudo, a reparar... Indica textos preciosos que vão desde o clássico “Cem anos de solidão” de Gabriel Garcia Marques à canção “Era uma vez” de Kell Smeth, passando pelo filme “A livraria”, de Isabel Coixet até chegar a um almoço no Restaurante Bacalhau do Firmino. Traduz o centro da capital paulistana para afirmar que a periferia precisa apoderar-se de seu espaço, sem jamais deixar de ocupar o centro das cidades.



O livro tem a leveza e a força da flor “Dente-de-leão”, que com uma brisa se despedaça e parece se dissolver no ar, mas que, ao se espedaçar, vira semente e alcança a amplidão, fertilizando lugares inimagináveis. Lê-lo é prazeroso, mas é sobretudo formativo e orientador, pois aponta caminhos possíveis das pequenas revoluções cotidianas. De cá, sinto-me repleta de gratidão pela trajetória, porque enquanto Sacolinha gosta de ostentar sua biblioteca, como está numa das crônicas, eu ostento sem modéstia as aprendizagens amealhadas com aqueles e aquelas que me dão a honra de seu convívio. Ouvi da pesquisadora-poeta Hildália Fernandes, num Teoria Sobre Nós, que Carolina Maria de Jesus dizia a si mesma: “Muito bem, Carolina”. Em uma de suas crônicas, Sacolinha repete a ação de Carol e diz a si mesmo: “-Parabéns, viu? Você está de parabéns! Ficou muito bonito e de bom gosto”. Eu de cá só faço coro!

Luciana Moreno

Uma aprendiz de revisora