Depois
que Sacolinha veio à Bahia em 2017, muita coisa aconteceu de formativo para nós
do GELPs. Eu, por exemplo, fui afetada de muitas formas e convidada a conhecer
o que era a Comunidade do Conto e a realizar um trabalho de revisão dos textos
literários ali produzidos. Destaco que, como professora de Língua Portuguesa,
já havia revisado artigos, monografias, dissertações, mas nunca havia realizado
o mesmo empreendimento com textos literários. Sacolinha, corajosamente (ou
seria cegamente?), me convidou a fazer este trabalho. Experimentar a revisão de
textos literários de diversos autores, tratando de temas contemporâneos e
arriscando estruturas e linguagens as mais diversas, foi uma aventura
deliciosa.
Era um
teste para o que viria depois: revisar o primeiro livro de crônicas do Escritor
Sacolinha. Confesso que fiquei tensa com o convite, mas, como versejou
Drummond, “fomos de mãos dadas”: aprendi neste processo um tanto de coisa sobre
a escrita literária e o trabalho de “inspiração e transpiração” de um escritor.
Eu recebia as crônicas, as revisava e as enviava de volta ao autor. Homem
aperreado, Sacolinha defendia com unhas e dentes cada milímetro do seu texto,
mas aceitava e compreendia as sugestões dadas para ampliá-lo. O texto e sua
comunicabilidade estavam sempre à frente de tudo. Nas idas e vindas que houve
em cada uma das leituras, ele perseguia a palavra perfeita e não sossegava
enquanto não enxergava a fluidez do verbo. Isso cansava, exasperava, mas era
bonito de se ver.
Depois
das revisões feitas, pude acompanhar sua preocupação com todos os detalhes que
compõem esse bem material/ objeto cultural/ produto de mercado chamado LIVRO.
Lembrei-me que, certa vez, ouvi na UNICAMP uma pesquisadora dizer que Machado
de Assis conversava com editores sobre tamanho de letras e melhor gramatura do
papel para agradar aos leitores. Sacolinha e Machado sabem que livro tem que
circular, tem que ter vida, tem que conversar com seus leitores. Livro não é
objeto decorativo para ornar estantes. Livro só serve se for bem aberto e lido!
É
preciso pensar o livro como esse objeto táctil, memorando agora Caetano Veloso.
É bom tocá-lo, cheirá-lo, passar as mãos nas folhas. É bom riscá-lo,
autografá-lo, profaná-lo. Livro não é objeto sagrado. Livro é mundano. Vai na
mão de qualquer um e se arreganha ao mais leve toque de um leitor atento e
cuidadoso. Tudo isso evoca prazer, porque livro é sensual demais para ser feito
de qualquer jeito. Para além disso, ao mesmo tempo que nunca é sacro, ele é
mágico, enfeitiça, pois funciona como um portal por onde adentramos para dentro
e/ou para fora de nós mesmo.
Sacolinha
sabe e me ensinou com generosidade que essa potência entre o material e o
transcendental precisa ser trabalhada com zelo, e também[1]
sem muitos pudores, porque livro é produto de mercado, precisa ser vendido, por
muitos motivos, dentre eles, o fato de o escritor ser um profissional que vive
dos livros que comercia. Por compreender a questão do mercado e da arte como
conjugáveis, o escritor susanense investiu numa bela capa, em paratextos que se
afinam à proposta do seu livro sem antecipá-lo, mas cumprindo a função de
aguçar o desejo do leitor pela leitura. Cuidou de uma diagramação cheia de
fotos poéticas, produzidas por diversas pessoas, dentre elas a bela assistente
Alanda, cria rebento do escritor.
Atentou-se
para uma divulgação paulatina, fazendo várias etapas de pré-venda e também
publicizando ações para promover o acesso ao livro. Sacolinha é daqueles que,
para além do livro físico, explora outros suportes que contribuem para a
disseminação da informação de que o livro existe e está sendo lançado e
comercializado. Tudo isso também tem como finalidade atrair leitores, o que
fomenta a prática da leitura literária, como instrumentaliza os leitores a se
letrarem. Por isso, quem quiser pode ter acesso a marcadores de livro, a
adesivos, a postais e camisetas com fragmentos do livro de Sacolinha que servem
como aperitivos para os leitores. Provam um tiquinho aqui e acolá para
sentirem-se famintos pela obra completa.
Neste
processo que acompanhei, vi o escritor ser o editor e passar por todas as
etapas que envolvem este processo: a criação, a revisão, a construção de
paratextos, a preocupação com os aspectos gráficos, a divulgação, a
distribuição. É muita coisa. E talvez nem seja justo exigir que todo escritor
faça isso. Mas eu me pergunto: quem não está nos espaços de privilégio deste
país e provavelmente não fará parte do grupo excludente das editoras
multinacionais que aqui dominam um mercado (o legitimado, incensado, mas não o
único), pode apenas escrever e não se comprometer em fazer circular seu livro?
Pode apenas escrever e não se envolver com a formação de público leitor entre
os nossos? Nós que creditamos à leitura um potencial revolucionário para os
nossos, podemos aguardar bom tempo para que os textos literários produzidos
pelas populações pretas e periféricas deste país cheguem aos seus leitores ideais?
Eu sei as minhas respostas, mas as deixarei em aberto...
O
livro “DENTE-DE-LEÃO: A SUSTENTÁVEL LEVEZA DE SER” é obra que sai da linha. Vai
na contramão do que superficialmente (ou preconceituosamente) se diz de uma
escrita proveniente de contextos periféricos. Quando se quer inferiorizar tais
textos, afirma-se que são descritivistas, tratam de temas limitados e ligados
apenas as mazelas sociais ou a uma margem criminal. Sem sair da cena das
periferias de São Paulo, Sacolinha vê seu Jardim Revista como Alberto Caeiro:
“Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer/ Porque sou do
tamanho do que vejo”. Na periferia do Sacola, cabe o mundo todo, pois é o olhar
vasto (assim como vasto é o mundo) do escritor que consegue enxergar o que ali
está, mas é negligenciado, negado, silenciado.
Nas
crônicas, Sacolinha ora compreende a dimensão política de fazer uma horta orgânica
ora denuncia as artimanhas das tecnologias de comunicação contemporâneas para
roubar nossa atenção e nos encarcerar em cavernas. O escritor provoca-nos a
pensar o quanto, para além da violência do armamento empunhado pelo estado e
pela criminalidade, estamos sendo mortos lentamente por uma indústria alimentícia
associada à indústria farmacêutica.
A
leitura é tema recorrente. Leitor que é de Saramago, preocupa-se com uma
cegueira que nos nega a ver e, sobretudo, a reparar... Indica textos preciosos
que vão desde o clássico “Cem anos de solidão” de Gabriel Garcia Marques à
canção “Era uma vez” de Kell Smeth, passando pelo filme “A livraria”, de Isabel
Coixet até chegar a um almoço no Restaurante Bacalhau do Firmino. Traduz o
centro da capital paulistana para afirmar que a periferia precisa apoderar-se
de seu espaço, sem jamais deixar de ocupar o centro das cidades.
O
livro tem a leveza e a força da flor “Dente-de-leão”, que com uma brisa se
despedaça e parece se dissolver no ar, mas que, ao se espedaçar, vira semente e
alcança a amplidão, fertilizando lugares inimagináveis. Lê-lo é prazeroso, mas
é sobretudo formativo e orientador, pois aponta caminhos possíveis das pequenas
revoluções cotidianas. De cá, sinto-me repleta de gratidão
pela trajetória, porque enquanto Sacolinha gosta de ostentar sua biblioteca,
como está numa das crônicas, eu ostento sem modéstia as aprendizagens
amealhadas com aqueles e aquelas que me dão a honra de seu convívio. Ouvi da
pesquisadora-poeta Hildália Fernandes, num Teoria Sobre Nós, que Carolina Maria
de Jesus dizia a si mesma: “Muito bem, Carolina”. Em uma de suas crônicas, Sacolinha
repete a ação de Carol e diz a si mesmo: “-Parabéns, viu? Você está de
parabéns! Ficou muito bonito e de bom gosto”. Eu de cá só faço coro!
Luciana
Moreno
Uma
aprendiz de revisora