Segundo os médicos, Mariana chegaria no dia dezenove de abril, uma terça-feira, às 11h da manhã. E para isso, todos nós nos preparamos. A mãe deveria ir ao salão na segunda, fazer unha e cabelo e , principalmente, fazer jejum. De manhã, tomaríamos café com Paulo para comemorarmos o aniversário dele e depois devotaríamos o dia a espera de Mariana. Mas Mariana não quis esperar. Depois de um longo domingo de orgias alimentares, em plena madrugada, mais precisamente, às quatro da manhã, Zau nos liga para informar que a bolsa tinha partido, que ela já ligara para o médico e já estava a caminho do hospital. Eu cá, só fiz me arrumar e tomar o mesmo rumo: a maternidade.
Zau e Gustavo já estavam no centro obstétrico quando chegamos eu, meu pai e minha mãe, e ficamos do lado de cá da janela, vendo por mais uma vez o milagre da vida irromper. Foi tudo tão rápido e cheio de lágrimas. A emoção era mais uma vez imensa, transbordante, intensa. Meu Deus, que menina linda e saudável. E mais lágrimas e risos brotavam. Tome-lhe fotos, filmagens e ligações. Acho que acordamos a Bahia inteira depois das seis e seis da manhã daquela segunda-feira, 18 de abril, com mensagens, telemensagens, scraps, e-mails.
Por algumas horas, fiquei me sentindo plena e vazia, ao mesmo tempo. Por um lado, Mariana era mais uma das minhas a chegar ao mundo e ajudar a escrever uma história que é Moreno; é Sacramento, é Carvalho, é tanta gente. Por outro lado, entretanto, e bem ao meu modo maluco de ser, comecei a pensar porque estávamos tão radiantes. Mariana, uma princesa rosada de negros cabelos, estava chegando a um mundo muito complicado. Do quente e confortável útero materno, vinha de cara para uma sala fria cheia de gente estranha, carregando estranhos instrumentos cirúrgicos. Seria vasculhada de cima para baixo, limpariam a sua pele, enfiariam tubos em todos os seus buracos. Além disso, a partir dali só encontraria novos desafios. Teria de aprender desde os sons mais simples a contas de multiplicar, dividir.
Puxa, era tanta alegria ver mais uma menina chegar ao mundo, mas também eram tantas incertezas, tantas novas e essenciais aprendizagens. Valeria a pena tanto esforço? Essa reflexão me acompanhou por alguns dias, até que finalmente consegui assistir (até o fim) ao filme Pequena Miss Sunshine e encontrei a resposta.
No filme, a família pareceu para mim o símbolo de tudo que é ruim: o pai que supervaloriza a competição e o vencer sempre; o irmão atrelado a extrema solidão para chegar onde quer, o avô tem um quê de rebeldia, mas alimenta-se de ilusões e oferece as a neta de forma cruel e oportunista, o tio é um suicida, a mãe tenta enganar-se, forjando não enxergar a catástrofe que é a sua própria família. Olive, a candidata a pequena Miss Sunshine, é o único sopro de vida que aparece naquele lar, tem autoestima, bom-humor, crê nas pessoas (por mais improvável que elas sejam). É por ela que todos estes desastrosos seres se reunirão e empreenderão uma longa e complicada viagem numa velha Kombi para chegar ao concurso. Olive, durante todo o percurso, acredita piamente que todo aquele esforço valerá a pena.
Eu é que como espectadora desconfiava e questionava: a menina é engraçada, mas não tem nem de longe a beleza perfeita requerida obsessivamente nestes concursos de beleza infantil americana. Olive é desengonçada, está mais para uma artista circense do que para uma leve bailarina. Para piorar o quadro é bem gordinha e usa óculos. O tempo todo me perguntava se a família dela não enxergava a total improbabilidade da vitória. No filme, eles só caem em si, da imensa roubada e da desnecessária exposição a qual Olive estava se colocando quando a menina já está nos bastidores pronta para entrar no palco. É claro que antes ela já havia percebido o quão diferente ela é de todas aquelas belíssimas garotas, super-talentosas.
O mais brilhante do filme é que contra tudo e contra todos, Olive vai ao palco e se entrega inteiramente. É claro que não agrada, a coreografia é ousada demais para o modelo de concurso, mas ela está visivelmente feliz e certa de que fez a melhor coisa. Entendem? Olive não é ingênua, ela sabe da total improbabilidade da vitória, todavia a garota nos faz ver que para ela a viagem conturbada, a participação e união da família eram de fato o que contava. É um clichê, mas Olive sinceramente não queria o louro da vitória, ela queria era viver, ela queria fazer a viagem, treinar a coreografia, rir, sofrer, aprender e finalmente subir no palco. Ela queria apenas subir no palco e dançar como disse Chacal até o sapato pedir pra parar. E Olive fez o mesmo que anunciou o poeta: parou, tirou o sapato e dançou o resto da vida.
Eis a resposta. Não há o que temer. A gente se encanta quando as Marianas chegam ao mundo, porque elas são uma pista de que tudo vai começar sempre e de que, pode haver morte, competição, oportunismo, solidão, ilusão. Pode haver tudo isso. Pode sim, sabe por quê? Porque sempre existirão verdadeiras misses que mesmo sem a roupa da moda ou sem se encaixar no padrão, se jogarão na vida e beberão tudo que estiver em seu cálice até a útlima gota. Por que o melhor da vida é viver. O melhor da vida é experimentar.
E é por isso que intensamente damos as boas-vindas a Mariana, minha pequena Miss Sunshine, porque a vida é o trajeto, a vida é o palco, a vida é o percurso e essa sim é a parte que vale cada gota de nosso sangue, cada suor de nosso rosto, cada lágrima derramada.