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domingo, 24 de abril de 2011

Minha pequena Miss Sunshine

Segundo os médicos, Mariana chegaria no dia dezenove de abril, uma terça-feira, às 11h da manhã. E para isso, todos nós nos preparamos. A mãe deveria ir ao salão na segunda, fazer unha e cabelo e , principalmente, fazer jejum. De manhã, tomaríamos café com Paulo para comemorarmos o aniversário dele e depois devotaríamos o dia a espera de Mariana. Mas Mariana não quis esperar. Depois de um longo domingo de orgias alimentares, em plena madrugada, mais precisamente, às quatro da manhã, Zau nos liga para informar que a bolsa tinha partido, que ela já ligara para o médico e já estava a caminho do hospital. Eu cá, só fiz me arrumar e tomar o mesmo rumo: a maternidade.

Zau e Gustavo já estavam no centro obstétrico quando chegamos eu, meu pai e minha mãe, e ficamos do lado de cá da janela, vendo por mais uma vez o milagre da vida irromper. Foi tudo tão rápido e cheio de lágrimas. A emoção era mais uma vez imensa, transbordante, intensa. Meu Deus, que menina linda e saudável. E mais lágrimas e risos brotavam. Tome-lhe fotos, filmagens e ligações. Acho que acordamos a Bahia inteira depois das seis e seis da manhã daquela segunda-feira, 18 de abril, com mensagens, telemensagens, scraps, e-mails.

Por algumas horas, fiquei me sentindo plena e vazia, ao mesmo tempo. Por um lado, Mariana era mais uma das minhas a chegar ao mundo e ajudar a escrever uma história que é Moreno; é Sacramento, é Carvalho, é tanta gente. Por outro lado, entretanto, e bem ao meu modo maluco de ser, comecei a pensar porque estávamos tão radiantes. Mariana, uma princesa rosada de negros cabelos, estava chegando a um mundo muito complicado. Do quente e confortável útero materno, vinha de cara para uma sala fria cheia de gente estranha, carregando estranhos instrumentos cirúrgicos. Seria vasculhada de cima para baixo, limpariam a sua pele, enfiariam tubos em todos os seus buracos. Além disso, a partir dali só encontraria novos desafios. Teria de aprender desde os sons mais simples a contas de multiplicar, dividir.

Puxa, era tanta alegria ver mais uma menina chegar ao mundo, mas também eram tantas incertezas, tantas novas e essenciais aprendizagens. Valeria a pena tanto esforço? Essa reflexão me acompanhou por alguns dias, até que finalmente consegui assistir (até o fim) ao filme Pequena Miss Sunshine e encontrei a resposta.
No filme, a família pareceu para mim o símbolo de tudo que é ruim: o pai que supervaloriza a competição e o vencer sempre; o irmão atrelado a extrema solidão para chegar onde quer, o avô tem um quê de rebeldia, mas alimenta-se de ilusões e oferece as a neta de forma cruel e oportunista, o tio é um suicida, a mãe tenta enganar-se, forjando não enxergar a catástrofe que é a sua própria família. Olive, a candidata a pequena Miss Sunshine, é o único sopro de vida que aparece naquele lar, tem autoestima, bom-humor, crê nas pessoas (por mais improvável que elas sejam). É por ela que todos estes desastrosos seres se reunirão e empreenderão uma longa e complicada viagem numa velha Kombi para chegar ao concurso. Olive, durante todo o percurso, acredita piamente que todo aquele esforço valerá a pena.

Eu é que como espectadora desconfiava e questionava: a menina é engraçada, mas não tem nem de longe a beleza perfeita requerida obsessivamente nestes concursos de beleza infantil americana. Olive é desengonçada, está mais para uma artista circense do que para uma leve bailarina. Para piorar o quadro é bem gordinha e usa óculos. O tempo todo me perguntava se a família dela não enxergava a total improbabilidade da vitória. No filme, eles só caem em si, da imensa roubada e da desnecessária exposição a qual Olive estava se colocando quando a menina já está nos bastidores pronta para entrar no palco. É claro que antes ela já havia percebido o quão diferente ela é de todas aquelas belíssimas garotas, super-talentosas.

O mais brilhante do filme é que contra tudo e contra todos, Olive vai ao palco e se entrega inteiramente. É claro que não agrada, a coreografia é ousada demais para o modelo de concurso, mas ela está visivelmente feliz e certa de que fez a melhor coisa. Entendem? Olive não é ingênua, ela sabe da total improbabilidade da vitória, todavia a garota nos faz ver que para ela a viagem conturbada, a participação e união da família eram de fato o que contava. É um clichê, mas Olive sinceramente não queria o louro da vitória, ela queria era viver, ela queria fazer a viagem, treinar a coreografia, rir, sofrer, aprender e finalmente subir no palco. Ela queria apenas subir no palco e dançar como disse Chacal até o sapato pedir pra parar. E Olive fez o mesmo que anunciou o poeta: parou, tirou o sapato e dançou o resto da vida.

Eis a resposta. Não há o que temer. A gente se encanta quando as Marianas chegam ao mundo, porque elas são uma pista de que tudo vai começar sempre e de que, pode haver morte, competição, oportunismo, solidão, ilusão. Pode haver tudo isso. Pode sim, sabe por quê? Porque sempre existirão verdadeiras misses que mesmo sem a roupa da moda ou sem se encaixar no padrão, se jogarão na vida e beberão tudo que estiver em seu cálice até a útlima gota. Por que o melhor da vida é viver. O melhor da vida é experimentar.
E é por isso que intensamente damos as boas-vindas a Mariana, minha pequena Miss Sunshine, porque a vida é o trajeto, a vida é o palco, a vida é o percurso e essa sim é a parte que vale cada gota de nosso sangue, cada suor de nosso rosto, cada lágrima derramada.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

PROMESSAS...

A partir de hoje, decreto e declaro para os devidos fins e para quem interessar possa que não pretendo mais:
- Dormir para passar o tempo;
- Sorrir para não ser excluída;
- Fingir que ouve, balançando a cabeça daquilo com que discorda;
- Concordar para ser aceito;
- Engolir o choro quando a lágrima brota de todos os póros;
- Ler o que dizem que é bom, mas não tem nenhuma motivação utilitária ou prazerosa para mim;
- Ajudar a quem explicitamente precisa de um sonoro NÃO;
- Ser indelicado quando for desnecessário;
- Ser delicado e cortês quando for somente por fazer parte da obrigação;
- Controlar o que é instintivo, intuitivo e louco;
- Comer doces para saciar outras fomes;
- Prometer para mim mesma o que não preciso cumprir;
- Descumprir o que é urgente realizar;
- Amar ansiosa pela sintonia e aceite do outro;
- Realizar qualquer coisa almejando a coroa de louros ao final;

-Esquecer minha condição suprema, inegável de centauro, esfinge ou qualquer coisa híbrida que exista no mundo!!!

RISOS!!! ESSA FAZ JUS AO BLOG!!! QUE MALUQUICE!!!!

A LITERATURA: UM FIO DE ARIADNE NO LABIRINTO DO ENSINO NESTE LIMIAR DE MILÊNIO?

Há um texto de Nely Novaes Colho, em que a autora nos questiona se a literatura seria o fio de Ariadne em seu uso nas práticas pedagógicas neste conturbado início de século XXI. Confesso ter sido futucada por esta questão. Por razões inúmeras: sou professora, amo ler literatura e sou um ser vivente destes tempos. Li e reli o texto de Coelho, li e reli o mito de Ariadne e viajei. Ou melhor respondi com um taxativo SIM!

A literatura pode, sem sombra de dúvidas, ser um fio de Ariadne nas práticas educacionais do século XXI. As razões são inúmeras. Não só pelo fio, mas por todo o tecido. Trocando em miúdos: para mim o fato da literatura ser o próprio fio de Ariadne, ou melhor, o condutor de um movimento de transformação, é um dos principais argumentos que fundamentam minha resposta afirmativa. Porém com base no mito, também outras relações são percebidas, para confirmar a possibilidade da leitura do texto literário na escola ser um espaço privilegiado de ressignificação do nosso tempo, quiçá da nossa existência.

Primeiro o mito nos conta sobre o herói Teseu. Um aventureiro! Um homem que quer desbravar, descobrir, solucionar, resolver um problema de seu tempo: a existência de um monstro terrível, chamado Minotauro que vivia encerrado num labirinto construído por Dédalo e a cada ano se alimentava de sete rapazes e sete moças, escolhidos mediante sorteio, como castigo por causa de contenda com o rei Minos. É neste momento que encontramos o primeiro aspecto, o ato da leitura literária em si consiste um desafio; implica um jogo em que a coragem é imperativa, pois muitos obstáculos se materializam neste processo seja para compreender as tramas em que o texto se desenrola, seja para descobrir os seus sentidos, seja para aceitar a possibilidade da existência daquela perspectiva. O texto literário exige de seus leitores a coragem de Teseu e o interesse do herói-leitor para solucionar problemas individuais ou coletivos, de um tempo ou de um lugar.

Outra convergência do mito com o ato de leitura literária é a própria Ariadne que além de corajosa e apaixonada; é uma estrategista nata. É ela quem, por amor, torna possível a vitória de Teseu, ao ter a idéia do fio e da espada. A leitura requer um movimento; exige intensidade, entrega; pede encarecidamente ao leitor certa devoção. A isto, chamamos de Paixão. Além disso, ler necessita de ações inteligentes e perspicazes que delinearão a maneira do leitor chegar a uma compreensão ampla do sentido construído pelo autor e presente no texto. Para ler é preciso construir estratégias; é preciso imaginar as diversas maneiras possíveis para matar Minotauros, colocá-las em prática e avaliar se seu resultado foi satisfatório ou não. Caso haja sucesso, é preciso seguir em frente, passar a outras leituras. Caso haja insucesso é preciso rever as estratégias e construir novas.

Quem disse que a leitura de literatura tem a ver com bons modos? A estratégia de Ariadne foi exitosa. O Minotauro foi morto por Teseu e assim dois problemas foram resolvidos: o da cidade e o de Ariadne. O da cidade porque o Minotauro já estava deixando a vida dos atenienses muito estressantes. Rapazes e moças já deviam estar depressivos, pensando se seriam as próximas refeições do monstro. O de Ariadne porque ela impõe ao herói uma troca: os louros da vitória por noites de amor calorosas. Mal sabia ela que o amor possui artimanhas e é dono de suas próprias vontades. O que importa é que Ariadne não era uma altruísta. Tudo que ela fez foi para satisfazer aos seus próprios desejos. Com a literatura também é assim, lemos a palavra e o mundo, porque desvendar estes mistérios é condição sine qua non para viver com plenitude.

Bem, depois de todos os esforços e do começo de um final feliz, sabemos que Teseu parte de Creta, levando consigo a bela moça para posteriormente abandoná-la na Ilha de Naxos, retornando sozinho a sua terra natal. E aqui, mais uma vez, entra a leitura literária. Sem dúvida, ratifico que ela é uma forma de ampliar mundos, desvendar mistérios, matar monstros, sobretudo aqueles que estão dentro de nós. Entretanto, pode também, ao solucionar um problema, inventar outros. Até maiores. E por incrível que pareça, eis um aspecto bastante positivo, porque a leitura de literatura nos tira de uma zona de conforto e nos impõe tomada de decisões. O labirinto é uma excelente metáfora para compreendermos que ler literatura nos tira do lugar da passividade. Ao nos mostrar um universo próximo, distante, conhecido, desconhecido, real, surreal ou irreal, ela nos coloca em ação. A literatura, assim como o labirinto do rei Minos, é repleta de corredores, curvas, caminhos e encruzilhadas, onde é possível se perder para se achar ou, até mesmo, para jamais encontrar saídas.

Para finalizar as minhas aproximações entre mito e leitura de literatura, trago o fio que Ariadne entrega a Teseu para ingressar no labirinto e conseguir retornar dele vitorioso. Este para mim é o principal argumento que fundamenta minha resposta. O fio é uma analogia para a própria literatura, porque ela possibilita ao indivíduo conhecer o desconhecido, aventurar-se em mundos distantes e perigosos. Ou mais vulgarmente, ao mesmo tempo, que nos tira dos nossos mundos tão cômodos e de trajetórias tão conhecidas, ela não nos faz nos perdermos a esmo. É certo que acaba nos levando a lugares confusos, nos impondo mistérios, nos obrigando a lidar com monstros reais ou imaginários e a vencê-los. Entretanto a mesma literatura que nos dá o labirinto, também nos dá o fio e este fio nos faz regressar destes mundos tão diferentes dos nossos, nos trazendo de volta a nossos lares. Todavia, não somos mais ingênuos, apesar de conseguirmos retornar a nossa vida anterior tão certa e tão nossa, ela já não é mais a mesma depois que trilhamos o labirinto e vencemos o Minotauro.

Ao finalizar minha extensa resposta, busquei a de Nelly Novaes Coelho e percebi que, apesar da resposta também afirmativa, a argumentação dela é bem diferente da minha. Entretanto, não se configura, no meu entender, uma divergência. Como vivemos num momento de caos, ou seja, momento que há uma potência transformadora e de comportamento imprevisível na nossa sociedade, precisamos construir uma nova ótica, sobretudo nos espaços educacionais. Para a autora, a literatura é uma complexo exercício de vida que se realiza com e na linguagem, por isso pode congregar os diversos componentes constituintes do currículo escolar, se colocando como eixo organizador de determinadas unidades de estudo e, consequentemente, da vida das sociedades contemporâneas. Nos dizeres de Coelho (2000), a literatura é “uma espécie de ‘fio de Ariadne’ que poderia indicar caminhos não para sairmos do labirinto, mas para conseguirmos transformá-lo em ‘vias comunicantes’ que a concepção de mundo atual exige”.

Coelho ratifica a famosa afirmação de Roland Barthes (1978), que se todas as disciplinas um dia desaparecessem dos currículos universitários, bastaria que ficasse a literatura, uma vez que ela contém todas as outras disciplinas. Ao sugerir um projeto multidisciplinar a partir das peças teatrais que compõem a obra de Gil Vicente, ela nos mostra como a literatura pode fomentar uma reflexão sobre o nosso tempo em comparação com um momento anterior da história, analisando a problemática-eixo: o novo como fusão da herança com a invenção. A história não se repete, mas também é possível observar momentos passados em que houve situações similares às vividas hoje para daí retiramos estratégias de compreender a vida presente e até mesmo de nos posicionarmos diante dos fatos. Também fica evidente a partir desta ação que diversas disciplinas como ciências sociais, matemática, geografia e história (e eu incluiria artes) possuem “motivos de sobra” para incluir a discussão da obra literária em suas práticas pedagógicas.

O fio de Ariadne belo, confuso, antagônico é a própria literatura e, certamente, uma metáfora da vida. Tomemo-lo nas mãos avidamente e trilhemos o labirinto!

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Conto de eterna separação, 2004


Mal Frida estacionou o carro na garagem, já o viu, de paletó e gravata, sentado na escada com a pasta de executivo no colo. Achou a cena engraçada, mas sabia que teriam mais uma vez que discutir, brigar, sofrer. Só depois de um mês da separação, ele, Rivanilton Rivera, ligara para ela, pedindo para apanhar os objetos que deixara em seu apartamento. Parecia que aquele esquecimento era proposital. No fundo, ele queria permanecer presente na casa dela através de seus objetos pessoais a fim de tentar persuadi-la a continuarem juntos. Clandestinamente, mas juntos. Frida respirou fundo, trancou o carro e se dirigiu a ele:

- Demorei?- A pergunta era irônica, pois o encontra havia sido marcado às 19h e já eram 22h.

- Que nada! O que eu faço é irrelevante diante do seu plano de salvar o mundo do maléfico poder branco, cristão e machista. Além do mais, sei que sua demora foi uma tática para atrapalhar os projetos políticos do DEM, pautados na falocracia elitista, já decadente desde a colonização – sorriu com sarcasmo.

Sabia como irritá-la: era só repetir os discursos em que ela acreditava piamente, de forma jocosa. Frida engoliu a seco a resposta à sua provocação. Entraram no elevador, calados e assim permaneceram. Até que um susto: o elevador parou. Eles se entreolharam assustados. Nada poderia ser pior. Não era claustrofobia nem medo, mas a angústia provocada pela imposição de estar trancada com alguém tão íntimo. “Devia ser proibido por lei que dois ex-amantes ficassem sozinhos, presos em local fechado”, pensou Frida. Antes que emitissem qualquer enunciado, o elevador voltou a funcionar. Respiraram aliviados sincronicamente. Saíram do elevador. Parecia que o tempo brincava preguiçosamente de passar. Frida colocou a chave na fechadura da porta e se entreolharam mais uma vez. Ao abrir a porta, ela nada falou, só gesticulou, balançando seu braço em direção a entrada do apartamento. Seu gesto era apenas sarcasmo. Rivera entrou no apartamento e o olhou com tristeza por tanto tempo que nem a viu sair e retornar, carregando uma caixa grande de papelão. Ela ergueu a caixa na direção dele para que a tomasse nas mãos e fosse embora de uma vez. O silencia pairava no ambiente.

- Aqui está tudo que deixou... Quer dizer quase tudo!

- Ah, então, a defensora da verdade e da justiça, roubou algum dos meus objetos para poder se lembrar de mim, cheirá-lo, senti-lo e encontrar-me nele, hein?

- Jamais ficaria com quaisquer dos seus objetos, de gosto extremamente duvidosos e escolhidos a dedo por sua esposa. No entanto, o sentido da palavra “deixar” é amplo e quando me refiro a ela falo de decepção, arrependimento, descrença. Só isso ficou.

- Não é o que parece. A verdade é que nós dois sabíamos da impossibilidade de unir convencionalmente dois mundos tão diferentes.

Esta era uma verdade inquestionável. Uma artista plástica de esquerda, que acredita na possibilidade de transformar o mundo num lugar livre, justo, igual, de respeito à diversidade e um vereador de direita, vinte anos mais velho, que possui como maior preocupação preservar sua imagem de homem solidamente casado, sério, cristão a fim de angariar votos de seus eleitores só poderiam ser inimigos, nunca amantes.
Rivera fechou a porta que permanecera aberta, sentou-se nas almofadas espalhadas pelo chão. Frida olhou-o e balançou a cabeça sem acreditar no que via. Bravejou alguma coisa inaudível, mas ele a interrompeu, apontando para a rede que ficava na varanda.

- Como você pode se separar de mim e continuar ostentando aquele rede na varanda?

Frida franziu a testa e sorriu. Pensou que era muita maluquice ou prepotência para um homem só. Ele continuou a falar:

- Se você continua expondo um objeto que marca o início do nosso relacionamento na parte central da sua casa, eu posso inferir que eu também tenho importância central em sua vida. Isso é psicologia, querida. Junguiana.

Ela, com olhar descrente, indignou-se com a eloqüente e súbita intelectualidade de almanaque:

- Não estou ouvindo isso... Logo você que sempre caracterizou quaisquer estudos em torno da psicologia como babaquice. Logo você que quando um amigo meu gay relatou como a terapia o havia feito “sair do armário”, você disse que isto só confirmava que terapia era coisa de “veado”, mesmo. Ah, não!!! Você está querendo destruir o meu fim de dia, não é ?

Rivera sem sequer prestar atenção ao que Frida dissera, continuou:

- Só você mesmo para comprar uma rede em pleno desfile do Dois de Julho. Foi muito engraçado te ver, lembro-me claramente, de blusa vermelha, calça jeans, bandeira do PT em uma mão e uma rede na outra. Eu não poderia perder a oportunidade de ironizar uma militante consumista.

- Não sou consumista. Só aprecio como qualquer artista plástica a arte popular. Esta rede é feita por uma cooperativa de mulheres da Costa do Dendê que vem a Salvador um vez por ano, e no dia do desfile. Sua cantada foi muito infeliz e só ratificou sua cafajestice.  Me elogiar, dizendo que as donas de casas deveriam prestigiar o dia da Independência da Bahia era um acinte.

- Naquele dia, eu pensei que você sonhava em casar... Queria “ter um homem para chamar de seu”, como canta o Erasmo.

- E eu pensei que você era militante de esquerda. Só por isto te dei papo. Achei que aquilo de dona de casa era brincadeira. Só muito tarde, entendi que era sério e aí...

 - Já estávamos envolvidos, nos amando.Nos idealizamos e quando nos descobrimos já era tarde. Pensei  que só amaria alguém igual a mim, mas tenho que assumir: sua rebeldia me encanta. Talvez, um dia ,possa ser como você.

- Impossível, você já está velho demais. Entretanto, olhando, você aí, sentado no chão, vejo o quanto, você é frágil. Acho que foi isto que me encantou. Acreditei ser mais velha do que você. Só depois entendi que era justamente o contrário. Sou apenas mais madura.

- Então, queria cuidar de mim? Toda mulher é mãe, mesmo.

Frida abaixou a cabeça. Ele não entendia mesmo como ela o amava. Não valia a pena insistir.

- Rivera, só você sabe me irritar. Não desejo ser mãe nem casar. Só quero respeito.

Rivera também abaixou a cabeça. Não conseguia compreender como era possível crer em futuro, sonhos e ideais. A vida é tão prática. Ela não entendia mesmo como ele a amava. Não valia a pena insistir.

- Frida, além de te respeitar, te admiro, mas não sei, não aprendi a ser diferente do que sou. Eu não posso me separar de mim mesmo para ficarmos juntos.

- Não vamos falar nisso agora. A separação já estava marcada desde o nosso encontro. Só fizemos adiá-la. Insistimos, nos rebelamos contra o óbvio. Foi “dor e delícia”, mas não podemos mais. Não insista. Suma, por favor. É um apelo: nos amamos, mas não sabemos como fazer isto. Em toda literatura que li, os amantes são despojadas, mas nós não. Acho que Deus fez dois seres extremamente egoístas e Ele, para se divertir, fez com que estes seres se encontrassem para se desencontrarem para sempre. Assim, somos nós dois.

Ela se ajoelhou para ficarem mais próximos, olharam-se. Ele tirou os fios de cabelo que encobriam o rosto dela, puxou o pescoço de Frida em sua direção e se beijaram. A mão de Rivera já abria o primeiro botão da blusa, quando o celular dele tocou:

- Alô, querida. O jantar na casa dos Magalhães? É, hoje? Ainda dá tempo, estou indo- Ele se levantou apressado e sem jeito.
   
Frida abriu a porta. Sequer se olharam, estavam envergonhados da impotência que tinham sobre si mesmos. Nada disseram. Ele entrou no elevador cabisbaixo. Ela entrou em casa ciente da separação. Triste, mas confortada. Agora era definitivo. Não haveria mais encontros, só desencontros. A separação estava consumada.

 Só, neste momento, Frida viu a caixa dos pertences de Rivera no chão ao lado das almofadas. No outro dia, com certeza, ele voltaria para continuarem a separar o que jamais se uniria.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Questões raciais: uma discussão sempre atual


Não há a menor dúvida que todos nós pertencemos sim a uma raça. Esta é a raça humana e nela cabem igualmente negros,indianos, mulçumanos e até, como diria o poeta-cantor, gregos e baianos. Entretanto a nossa língua, história, cultura, religião, arte e, bem lá no finalzinho, os nossos caracteres biológicos irão definir algo que chamamos de etnia. E é ai que o bicho pega, porque não me conforta definir uma etnia negra, por exemplo, já que a compreensão de mundo, de arte, de cultura dos negros da Liberdade- Salvador-Bahia é completamente diferente e, em alguns momentos até dispare, da cultura, língua, religião dos negros de Nova Iorque. Em português claro: o buraco é muito mais em baixo.

No Brasil, ai que a coisa se complica aos olhos de muitos. Para mim, na verdade aqui é que a coisa se explica... Aqui desde muito já temos uma compreensão que a História e a Ciência atualmente já decretaram como lei. Já sabíamos melhor e com mais clareza do que ninguém, a história de todos os povos existentes no mundo. Todas as regiões deste planeta foram criadas a partir do entrelaçamento de povos de origens étnicas diversas que por alguma razão climática, bélica, etc chegaram a um território onde outro grupo étnico já residia e para lá levaram suas religiões, língua, cultura, arte. Na convivência entre este e aquele grupo não ficou a arte, língua, cultura, religião e até mesmo os caracteres biológicos deste ou daquele povo.  Ficaram muitas coisas. Tudo junto e, ás vezes, misturado. Além do que tinha antes e do que chegou depois, ficou uma terceira coisa que sequer existia: a presença de alguns elementos de um grupo e de outros elementos de outros grupos, em alguns casos houve a mistura e a ressignificação destes constituintes da etnia dos primeiros povos. Foi assim com os alemães, os chineses e canadenses. Para nós, por exemplo, o português sempre representou o branco. Não é verdade??? No entanto, os turcos passaram quatrocentos anos na Península Ibérica, e eu duvido que não tenham trepado com as “purrrtuguesaxxx”.Onde estou querendo chegar??? É claro que a ordem aqui e em qualquer canto do mundo é a mestiçagem, fenômeno que eu prefiro chamar de hibridismo.

ENTRETANTO (leia este entretanto como letras garrafais), esta relação de convivência entre as diversas e diferentes etnias não se deu historicamente de maneira harmônica. Pelo contrário, ela sempre representou perda parcial de espaço, de língua, de cultura para os dois lados.Mesmo porque para a gente construir algo novo, a gente precisa anular, excluir, destruir algumas coisas do que era vigente antes. É óbvio que também fazemos o exercício de escolher, permanecer, incluir, remodelar algumas coisas do que era vigente antes. O que importa é que mesmo com o movimento de junção, escolha, inclusão e exclusão de elementos dos dois grupos étnicos: um grupo ficou como o conquistador/dominador e o outro como o conquistado/dominado. E esta parte da história todo mundo de algum modo (ou aos seus modos) conhece muito bem: escravidão, holocausto, guerra na Bósnia, bomba em Hiroshima e Nagasaki, Talibans no Afeganistão, Ku Klux Kan, grupo ETA na Espanha, diversos grupos de terroristas no Oriente Médio... Tudo isto por quê???? Simplesmente porque os conquistadores (Portugueses, Africanos, Alemães, Americanos etc) ignoram que no processo de conquista, não importa quem vença ou perca oficialmente, os dois grupos perdem e ganham sempre, ao mesmo tempo. Os conquistadores também são conquistados e os conquistados também conquistam. Entende o trocadilho?

No Brasil, apesar de tudo isso, a gente não pode negar que os conquistadores são representados por todos aqueles de origem européia e tez branca. Já os dominados são os negros, afrodescendentes, índios, indiodescendentes.  Por mais que um médico geneticista diga em 2009 que o genótipo do brasileiro branco é composto por pai branco e mãe mestiça e negra, ainda afirmamos exacerbadamente uma identidade branca. Temos somente orgulho de nossos sobrenomes europeus, vamos pesquisar no “Dicionário das famílias brasileiras”, o quanto somos franceses, ingleses, espanhóis, italianos... Desculpe-me, mas historicamente no Brasil, afirmam-se mais uma pureza branca, uma essência branca do que uma essência índia ou negra. A ordem aqui sempre foi o embranquecimento. É daí inclusive que vem o termo “denegrir”, ou melhor, declarar publicamente a cor negra de alguém, algo considerado vergonhoso e diminutivo na época após o fim da escravidão. Hoje o termo denegrir perdeu o sentido de “rebaixar o outro, chamando-o de negro”, mas permanece a idéia do rebaixamento e da inferiorização. Particularmente, acho que aqui não dá para declarar pureza ou essência (de um lado ou de outro), mais dá para não negar as descendências; dá para a gente aprender a se orgulhar e afirmar as nossas ancestralidades. Entende a enorme diferença????

Defendo que a gente estude, pesquise, conheça e reconheça a enorme e essencial contribuição de negros e índios na constituição de algo muito complicado de se explicar, chamada IDENTIDADE BRASILEIRA, sem jamais ignorar a contribuição européia. Penso o povo brasileiro como híbrido, entretanto, temos que conhecer, pensar o quanto negros e índios contribuíram para ser quem somos. Temos que pensar que parte significativa de nossas identidades é sim de matriz africana e nativa (índia) também. Ah, e claro não posso esquecer: de matriz européia.

Bem e como fazer com que todas as etnias que compõem a nossa identidade sejam valorizadas, ignorando hierarquias escrotas e excludentes??? Este é o nó... Qual a sua idéia? Antes de elencar as minhas idéias (que não são nem melhores nem piores do que as de qualquer um, são apenas as minhas), só quero falar da teoria  da curvatura da vara, proposta por Savianni para a educação. Conhece? Quando uma vara de bambu está voltada só para um lado por anos a fio, o que fazer para que ela fique no meio (e seja mais coerente e democrática)??? Deve-se esticar a vara para o lado oposto e focar as atenções neste lado oposto por um tempo (nem curto demais nem longo demais) para que no momento certo, a vara fique no meio certo. Eis a proposta em que creio. Sei que como há muita gente recalcada no mundo (sobretudo por questões étnicas), o perigo desta idéia é deixar a vara no lado oposto por um tempo além do suficiente. Isto é preocupante porque só muda o lugar das coisas: o opressor vira oprimido e o oprimido vira opressor. Mas, sinceramente, acho que é um risco que precisamos correr... Precisamos exacerbar o foco nas questões afro-brasileiras e indio-brasileiras; precisamos privilegiar tais discussões agora.

Para mim, a gente muda a desigualdade étnica dando visibilidade ao que qualitativamente é chamado de minoria. Sabemos que estas minorias são a maior parte da população em quantidade, apenas têm  (ou tinham)menor acesso ao poder e aos bens de consumo e culturais que quem tem poder pode ter acesso. Então inicialmente, estudemos. Façamos pesquisa nas Universidades sobre a História Oficial e a História Documental. Então passemos estes dados para a Educação Básica e para o livro didático. Tiremos a idéia de que negro era passivo na escravidão, índio era preguiçoso, negro é feio, burro e subserviente através de inúmeros fatos históricos (como a Revolta dos Malês). Façamos políticas de inclusão de negros, índios e mulheres nas Universidades, no mercado de trabalho, assegurando não só o acesso nestes espaços, mas também a permanência. Ressignifiquemos a linguagem: façamos mais a reflexão do que proibição. Por exemplo, se dizer “meu nêgo” para você é uma forma carinhosa de se dirigir as pessoas, continue fazendo uso deste termo, mas se para você é somente uma forma de discriminar, de diferenciar o outro pela cor da pele dele, então mudemos a linguagem. Se você fala “nigrinha” para denotar que a mulher de pele preta é puta, ressignifique sua linguagem, mas se você diz isso como minha mãe o faz para chamar o outro de esperto e surpreendente, o faça. 

Somos seres de linguagem e temos que compreender como os usos dos termos servem para confirmar preconceitos ou para destruí-los. Não creio que sejamos100% negros, entretanto dizer isso em algum momento foi importante para que a galera que eu tanto amo (chamada aluno) compreendesse que sua pele, sua cultura, sua religião, sua arte era muito mais próxima da de Guiguiu do Ilê do que da de Gisele Bündchen e que daquela forma eles eram tão lindos e inteligentes quanto a Bündchen. Eu posso até nem ser negão, mas quando Gerônimo disse isso na música cheia de orgulho, um monte de gente pode dizer: “Olhe, velho, minha pele é preta, meu cabelo é crespo, pixaim, meu lábio é grosso, eu falo alto, como dendê, gosto de instrumentos percussivos, toco instrumentos de uma corda só, mas eu não sou ladrão, pobre e fudido. Também sei e posso tocar piano e dançar ballet. Sou tão inteligente, lindo e capaz quanto qualquer outra pessoa da minha raça que é a humana”.

Toda essa discussão foi  sempre para mim uma enorme formação.  Foi sofrido na adolescência estar num lugar em que embraquecer era a ordem. Ainda é sofrido para mim ver adolescente sofrendo porque a chapinha queimou e não sabe como vai a escola de cabeloi ncaracolado. Olhar o movimento negro e até participar de algumas ações suas, ser professora da escola pública, fazer um mestrado sobre Pluralidade Cultural foram situações ímpares para que eu me visse com mais propriedade. Me orgulhasse de mim, da minha história individual, familiar e coletiva. Sinto-me uma brasileira mais plena e completamente sem vergonha do meu cabelo, da minha boca, da minha bunda, dos meus gostos muisicais e aliementares, da minha forma de ver, entender, compreender o mundo.

Olha só, diminuiram as aparições de gente na rua, vestindo a blusa “100% negro”.  Lázaro Ramos tá na TV sem representar o papel de homem negro que sofre discriiminação. Espero que a vara esteja vindo paulatinamente para o seu lugar, o lugar do equilíbrio, da equidade, da democracia. Em algum momento, as coisas voltam para seu lugar!!!

terça-feira, 5 de abril de 2011

SOU UMA FILHA DA MÃE!


Sou uma FILHA DA MÃE!  O que é melhor ou pior: de uma mãe nascida e criada no século XX. 

Sou filha da mãe que nos seus primeiros anos de vida social, foi formada para acreditar no seu enorme potencial para criar filhos e cuidar da casa, mas que logo depois, mais ou menos na época em que saiu da escola pronta fazer o que se esperava dela, viu mulheres queimando sutien, pílula anticoncepcional, trabalho fora de casa, discussão da virgindade, separação de casais, emancipação feminina... E não foi mais a mesma.

Sou filha da mãe que teve que trilhar não um, mas dois caminhos. O pior: dois caminhos que pareciam antagônicos! Sou filha da mãe que se uniu a um homem, por sua própria escolha e risco, teve filhos, trocou fraldas e chupou catarro dos narizes gripados, foi às festinhas escolares, colocou botões em roupas, costurou calças e meias rotas.

Sou filha da mãe que trabalhou na rua, trouxe dinheiro para casa e não aceitou esta história de provedor do lar. Foi ela mesma que pagou suas contas e comprou o esmalte e a comida diária.

Sou filha da mãe que chegava esbaforida às festinhas escolares e às aulas públicas de ballet, que suava para conciliar trabalho e família, que sempre trazia balas e presentes nos dias em que passava inteirinho trabalhando fora de casa. Essa mãe sabia que era dura a espera, era triste a saudade, mas era linda e festiva a ansiedade dos dez minutos antes da sua chegada, a surpresa e a certeza do presentinho e a hora do abraço certo, do afago amigo e do regaço quente mais fraterno que materno. Mais certo ainda era o orgulho dos filhos pela mãe exemplo de luta e coragem.

Sou filha da mãe que, quando eu, aos prantos, descobria com o corpo e o coração sangrando, que acabou a infância, ligou entusiasmada e transcedental para mãe, irmãs, parentes e afins comemorando o ciclo inevitável da vida.

Sou filha da mãe que chorou quando eu lhe contei que os meus eram novos tempos, em que diziam que o sonho havia acabado e a História também, portanto eu tinha pouco ou nada a fazer e me sentia sem norte e sem lugar.

Sou filha da mãe que se desesperou e pensou ter fracassado quando lhe contei da minha ida para a terapeuta e não se preocupasse que eu mesma pagaria a conta.

Sou filha da mãe que comemorou mais a formatura do que o casamento, me contou toda a sua trajetória e me disse que apesar de tanta angústia e correria, não tinha se arrependido de suas escolhas. 

Sou filha da mãe que me ensinou didaticamente, inclusive teorizou e desenhou em quadro negro e me mostrou fórmulas e artigos científicos que declaravam que no meu tempo não haveria mais angústias, estava comprovado cientificamente, a liberdade feminina é um fato e só eu mesma poderia conquista-la para mim e isto era tão ou mais importante que qualquer outra coisa. 

Sou filha da mãe que disse que eu tivesse logo um filho enquanto ela ainda conseguia se abaixar e tinha forças nos braços para carregar e beliscar; me confessou quase telepaticamente que estava doida para ver como seria a sua história no futuro, no tempo em que ela já não estaria mais aqui. Na certa, ela já está no tempo em que se descobre que a história dela mesma não se acaba enquanto eu, minha irmã e nossos filhos e os filhos dos nossos filhos existirem.

Sou a filha que agora chora por descobrir-se filha da mãe. Sou filha, sou a mãe, somos espelhos uma da outra, mesmo que, às vezes, os nossos reflexos sejam turvos, opacos, nítidos ou quase inexistentes. S ou a filha, sou a mãe. Sou a história da mãe, sou a história da avó e de tantas outras mulheres, sou o começo sem final: SOU UMA FILHA DA MÃE!