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segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Ao meu amigo;

 

Confesso que ao saber do seu retorno a nossa única e verdadeira casa, a espiritual, fiquei completamente perplexa. No dia anterior, em minha família se celebrava o amor de dois jovens que, muito cedo, aprenderam que os afetos só valem se carregados de ação, de cotidiano, de reciprocidade. Foi o casamento do meu entefilho (chamo-o assim em total respeito a mãe que o pariu, mas sou mãe dele tb). Eu estava tão em êxtase com aquela dose cavalar de amor que havia recebido no dia anterior que ao abrir meu WhatsApp, ler uma mensagem meio estranha de Mara, eu esbocei zero reação. Fiquei em silêncio. Não saiu lágrima nem palavra. Fiquei no limbo.

 

Depois, ao passo que a ficha ia caindo, eu fiquei com uma raiva de tu, seu safado, que certamente nunca senti nesses longos anos de amizade. Por que nos deixara assim sem avisar? Por que não esperou mais uma confra? Por que não nos vimos presencialmente na pandemia? Voltei ao celular para ler sua última mensagem para mim: “Lu, não corro as ruas pelo mesmo motivo pelo qual não saio à sábado de Aleluia: vai que algum gaiato grita: PEGA! ” E continuava se perguntando porque a “diretoria” já não havia promovido um encontro presencial: “Creio que todo mundo já tomou as quatro doses e, além disso, os seiscentos reais do benefício, já estão no banco. O que falta? ”.

 

Naquele momento, uma tristeza me invadiu. Um sentimento de impotência tão grande e vi que de alguma forma a raiva era de mim, de minhas escolhas. Por que tendemos tanto a procrastinar os cuidados com nós mesmos, a estar com quem amamos? É o excesso de trabalho; são as redes sociais; é a política partidária; é a preguiça por existirmos na superfície. E aí então meus olhos viraram cachoeiras salgadas, ficaram em brasa e eu murmurava já consciente: perdi um amigo, meu Deus, eu perdi um grande amigo. Conheci ali a dor expressa na crônica de Vinícius: “Eu poderia suportar, embora não sem dor, que tivessem morrido todos os meus amores, mas enlouqueceria se morressem todos os meus amigos! ”.

Mas alguns minutos depois, a nuvem cinzenta sob os meus olhos foi paulatinamente se dissipando em céu claro de verão.... Fui me dando conta que na verdade, eu não perdi um amigo. Pelo contrário, eu tive a dádiva de ter convivido como um grande amigo. Se quem tem amor tem sorte, eu tive a enorme ventura de ter tido a honra de conviver com um homem como Gustavo. Cheguei na UNEB e ele já era um decano, um elegante homem, como uma trajetória imensa na Universidade, tendo sido diretor e professor extremamente respeitado e reconhecido entre colegas e alunos. Eu, aos 28 anos, poderia ter sido tratada com certa indiferença, (a caloura ingênua x o veterano sabido), mas ele me acolheu, se aproximou, brincou, convidou às praças e aos bares, partilhou caronas de idas e voltas pela 242. E daí, de verdade, todo aquele sofrimento pela partida de meu amado Guti se transformou numa celebração tão grande em meu coração, me envaideci tanto de tê-lo conhecido, de termos vivido tantas coisas juntas. Amealhei tantas memórias engraçadas, divertidas, amorosas.

 

Trago apenas três das inúmeras e convoco a quem mais as tiver que as some com as minhas. A primeira é a mais recorrente: na sexta à noite, após a aula, sempre foi certo o nosso desopilar etílico na J. J. Seabra. Eu e as “meninas”, geralmente boiávamos no mais tardar a meia-noite. Até porque às seis horas da manhã do dia seguinte já começava a arrumação na residência docente para o café, para a ida a aula das 7:30 no Campus. Já o horário de retorno de Gustavo era sempre um mistério, a maior parte das vezes, perto do raiar do dia, a porta se abria para que ele viesse dormir. Mas a despeito disso, era muito engraçado ver a nós que chegávamos mais cedo, descabeladas, arrastando correntes para nos animar para as aulas e ele já elegantemente vestido, perfumadíssimo, à mesa do café, cheio de bom humor e picardia, preparado para a lida. É uma pena lembrar que não teremos mais aquelas manhãs de graça, pirraça e fofocas. Pois ele nos contava, paquerador que era, nosso Jose Mayer do Sertão, sobre os namoros, os rolos, as mulheres do seu harém infinito.

 

A segunda memória é sobre o hábito de fazermos festas na RP, na Universidade, de sempre marcarmos nas férias a nossa confraternização natalina num bom restaurante soteropolitano (chegamos a cantar em alto coro no Boi Preto um grito de “Fora, Temer” em pleno espaço da burguesia baiana). As festas depois se desdobravam em inúmeras confras entre Nazaré, Rio Vermelho, Feira de Santana e Lauro de Freitas. Lembro-me que nossas festas na RP eram sempre jantares com bons vinhos e queijos e muita música e risada e conversas filosóficas. Certa vez, sabe-se lá o porquê, organizamos uma festa a fantasia com karaokê. Guti, sempre muito elegante, parecia meio alheio a nossa animação para a festa. Nós alugamos fantasias, arrumamos a casa e ele estranhamente quieto...  Eu particularmente achei que havíamos exagerado na maluquice e ele não iria entrar tão de cabeça nessa onda de se fantasiar. Aprontamo-nos. A festa começou. Notamos com certa tristeza a ausência de Guti, mas começamos a comer, bebericar e a cantar no fundo da casa. Ele provavelmente da forma delicada que agia preferiu nem dizer que não queria a festa nem se expor e optou por apenas não ir, eu pensei. Foi então, que um carro parou na porta de casa, dele saiu um homem de sobretudo preto, um chapéu, parecia encapuzado. Arregalamos nossos olhos. Seria um assalto? Uma assombração? Corremos para a porta de vidro e o perfume chegou para nós antes da pessoa em si. Era Gustavo vestido de Conde Drácula entrando na festa e entregando às convidadas um cartão de visitas com seu nome, contatos e se oferecendo para tirar sangue de uns pescoços femininos. Entramos em êxtase e dali a diversão só acabou quando a Polícia chegou, mas essa é outra história.

 

A terceira memória e nem é de longe a última, até porque tem as impublicáveis. Já que ele nos contava suas histórias de amor, fofocávamos sobre um bando de gente e isso cada uma de nós que guarde a quatro chaves. Mas essa se refere a sua vida docente. Já era professor antigo da casa, respeitadíssimo, chegava e falava com todos os seguranças e técnicos com certa distinção e sabendo o nome de todos. Nunca o vi faltar. Era também professor das faculdades particulares quando pensávamos que iriamos enricar dando aula nas privadas, mas jamais diferenciou a IES pública da particular. Aliás, focou seus esforços nos espaços públicos de educação. Por fim, optou por estar somente na UFBA e na UNEB. Os alunos o adoravam, elogiavam, gostavam das aulas. Numa atividade periódica em Letras, chamada “Esses temíveis leitores”, convidávamos professores da casa para falarem de clássicos da Literatura Brasileira. Gustavo foi falar de “Vidas Secas” e naquele dia encheu nosso auditório com alunos dos mais diferentes cursos, fez uma interpretação pautada no repertório das ciências sociais. Os alunos foram provocados, debateram e se emocionaram com a fala daquele que para eles sempre será o Prof. Dr. Gustavo Almeida. Naquele dia, confirmei como era bom partilhar a vida docente com um amigo que era uma referência como professor, como humano, como cidadão.

 

Finalizo afirmando que não é aquela onda de quem morre fica bom, mas eu realmente só consigo me lembrar de momentos de amor, aprendizagem, respeito, diversão, alegria, intelectualidade, quando rememoro nossas trilhas. Gustavo está na minha vida e isso é inegociável. A vida material dele pode ter sido findada, mas tudo o que ele me mostrou, o que ele amalgamou em mim, permanece aqui luminoso, forte, vibrante, como ele fez questão de ser na vida. Nem sei como agradecer por tanto. Aliás, talvez eu saiba: imitando-o na arte de viver. Celebrar a vida é meu tributo a Gustavo de Almeida Roque!

 

Em 28.10.22 (não por acaso, dia do funcionário público, a sexta-feira derradeira antes da queda do inominável).

quarta-feira, 27 de abril de 2022

A LOUCA

 

Eu atraio gente louca. Ou como diz Suassuna: “como sou do ramo, identifico os doidos logo”. E nem falo metaforicamente, falo de doido com CID, laudo médico e receita tarja preta. Desde menina, seja estudando na Lapa ou transitando por espaços do Centro, sempre eu era abordada por uma dessas pessoas para pedir algo ou até mesmo para conversar. Por isso, atualmente, sou eu a primeira que faz questão de falar, dar bom dia. Assim, minha aprendizagem sobre não invisibilizar essas pessoas se deu porque, de algum modo, eu nunca fui invisibilizada por elas.

Mas entre tantos e tantas, uma delas marcou minha alma profundamente. Ao contrário de Drummond, nunca soube onde ela habitava. Ela era, na minha cidade, a louca folclórica, conhecida por todos, afastada dos lugares e colocada num espaço entre o escárnio e o temor. Eu a via, circulando pelas ruas. Era magra, alta e negra, cabelos escorridos, ora presos, ora soltos. Devia ter no máximo uns 40 anos e transcendia nela uma imperatriz escondida na mendiga. Vestia sempre um maiô surrado e uma canga rota. Nas mãos, levava arames e um alicate. Dizia-se artesã e tentava empurrar a qualquer preço os produtos que inventava. Alguns falavam que ela era hippie e enlouquecera graças às drogas.

Eu sempre a via e de algum modo a respeitava. Um dos lugares onde mais a encontrava era na missa dos domingos na Igreja Matriz. Um dia, estávamos nós quatro, meu pai, minha mãe, eu e minha irmã numa pizzaria. Era um momento bem nosso aos finais de semana e ela entrou no restaurante. De cara, quando percebi que ela se dirigiu a nós, pensei: “vai pedir dinheiro ou comida”. Mas como num passe de mágica, ela rapidamente se recompôs, se empertigou, ajeitou a roupa e dirigiu-se a minha mãe:

- Professora Norma Moreno.

Minha mãe, entre assustada e surpresa, apertou os olhos e tentou enxergar a mulher que vinha antes de a louca ser a louca, ao que no silêncio de minha mãe, ela continuou, com voz mansa:

- Fui sua aluna no Instituto Federal de Biologia. Eu sou Benedita.

Os olhos de minha mãe se arregalaram e eu pude sentir seu coração murchar e bombear sangue até os olhos que rapidamente incendiaram e se alquebraram. Mas como minha mãe não é dada a esmorecimentos, imediatamente, levantou-se, abraçou-a:

- Meu Deus. Me lembro sim. Quanto tempo?

Benedita então conversou como se pessoa sã fosse, lembrando com minha mãe memórias da professora e da aluna. Portou-se com a educação da imperatriz que eu sempre achei que ela era, nada pediu, disse já ter incomodado bastante e se foi... E ninguém pense que ela se curou e voltou a ser quem era. Ela continuou sendo a louca da cidade, praguejando alto, andando suja e drogadiça pelas ruas, ora xingando as pessoas, ora aproximando-se para vender algo sem valor e sem beleza. No entanto, apesar disso, toda vez que via minha mãe era a mesma coisa. Começava dizendo: “Professora Norma Moreno”, parecia voltar a si, conversava com total equilíbrio e seguia vivendo a vida perturbada que talvez para ela se tornara sua masmorra.

É obvio que eu, meu pai e minha irmã, no dia da pizzaria, após a saída dela, fizemos uma imensa cara de interrogação, apesar de termos ficado em silêncio e perplexos durante toda a conversa. Foi aí que minha mãe, boa contadora de história que é, abriu seus fios de tecelã e nos narrou que Benedita era uma jovem pobre que ingressara na Universidade e havia sido uma aluna brilhante, dedicada e promissora. Belíssima como era, despertou o interesse de muitos homens, mas acabara se apaixonando por um estudante de Medicina, jovem também, branco e uma das maiores fortunas da cidade. O desejo foi mútuo entre ambos. Começaram a namorar e, em plena revolução social e libertária dos anos 60, decidiram se unir apesar do repúdio da família dele ao casamento. O noivo a priori decidiu franciscanamente largar tudo e viver com Benedita que logo engravidou. Benedita afirmava amá-lo, mas dizia-se radiante por aquela plenitude que agora habitava seu ventre. Era uma lua cheia de afeto por aquela que daria continuidade a sua existência na Terra. Mas depois, bem próximo ao término da graduação de ambos, ninguém nunca mais os viu. Desapareceram completamente. E circulou um boato de que Benedita havia parido em condições precárias e que a mãe do namorado tinha pego a força a criança recém-nascida e a levado para o Europa. O pai seguiu atrás de sua filha e Benedita, uma Iracema negra, sozinha, não morreu de tristeza, mas jogou-se no mundo em busca da filha. Ao que parece, para sempre, perdeu a filha. Perdeu a lucidez, perdeu o rumo, perdeu-se de si.

E talvez essa história devesse parar aqui porque ela já é triste demais. Mas outro evento com a louca também envolveu a mim e a minha família. Numa dessas missas de domingo, a que íamos religiosamente, ela entrou na igreja muito contrita, sentou-se próxima a nós e permaneceu atenta e entregue a todos os momentos do rito. Na hora da comunhão, entramos todos na fila para receber a hóstia consagrada e ela, como qualquer fiel, fez o mesmo. O padre lá na frente procedia como orienta o dogma e colocava o “corpo de cristo” nas mãos de cada pessoa, entretanto quando se deparou com a louca, de forma agressiva, cenho franzido e lábios rijos em forma de bico, balançou como o ponteiro de um relógio o dedo indicador num retumbante não e, ainda sem qualquer sinal sonoro, chacoalhou as mãos, enxotando-a dali. A louca saiu da fila, voltou-se a sentar próxima a nós, que olhávamos aquilo entre assustados e entristecidos. Ela não contou conversa, começou a bradar num grito mais intenso do que a voz do padre blindada pelo microfone:

- Que corpo de Cristo é esse que não alimenta quem mais precisa dele? Que Igreja é essa que não sabe acolher a única alma aqui que realmente precisa de alimento e cuidado? Que padre é esse que expulsa aquela que mais precisa ser incluída e abraçada?

Meu pai e minha mãe num gesto de proteção foram para perto dela na tentativa de alentá-la. E ela abruptamente pegou o alicate com a mão para atirá-lo no padre. Meu pai a conteve, a levou para fora da Igreja em seus braços, acompanhado de minha mãe e nós duas os seguimos de olhos arregalados. Lá fora, meus pais a afagaram, conversaram tempos a fio, até que ela se acalmou e se foi. Não ficou por aí, meu pai e minha mãe, cristão radicais, sentiram-se aviltados com aquilo, bradavam com certa raiva que ainda que o padre não desse a hóstia, ele tinha que ter sido protetivo e amoroso. Fizeram carta de repúdio para a paróquia, marcaram reunião com o padre e, até onde sei, apenas ganharam uma sacra inimizada.

E a louca, ou melhor, Benedita, eu, ainda jovem, desapareceu de nossos dias para todos sempre. Desapareceu, digo, dos nossos olhos que enxergam a materialidade das coisas, porque nas vistas da memória, ela fincou sua história em nós. Plantou em mim um desprezo por muitas das práticas de religiosos da igrejas cristãs. Mas também por isso me mostrou quem são meus pais e que talvez eles sejam tão cristãos como o foi o próprio Cristo e como nunca foram a maioria de seus seguidores. E mais que tudo isso me fez ver que uma mãe sem sua filha é alguém que nunca terá paz, sanidade, alento. É alguém eternamente a procura, com olhar fixo para o além, perdido num porvir. É alguém sempre disposta a atravessar um oceano para encontrar seu rebento.