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sábado, 22 de novembro de 2014

AS MALUQUICES NOSSAS DE CADA DIA: Cortar asas ou incentivar voos?

AS MALUQUICES NOSSAS DE CADA DIA: Cortar asas ou incentivar voos?: Escola. Docência. Periferia. Ausências. É disso que quero falar. Mas será que consigo? Tanta coisa represada em mim sem conseguir expr...

Cortar asas ou incentivar voos?



Escola. Docência. Periferia. Ausências. É disso que quero falar. Mas será que consigo? Tanta coisa represada em mim sem conseguir expressão. Por dias a fio, tanta espera de escrita. Tanto anseio de dizer o que não sai de mim. Tanto anseio de entender o que move meus dias e me move neles.
Em 1997, eu começava a lecionar Língua Portuguesa em duas turmas de quinta série, numa escola pública municipal na cidade onde moro. Era um desafio. Eu cheia de sonhos e anseios, ainda nem havia me formado em Letras. Queria mudar o mundo e nem sabia que havia de começar por mim mesma. Aliás, sabia muito pouco de teoria e menos ainda da prática. Era uma loucura. Tinha que conter a indisciplina de meninos e meninas, com hormônios em ebulição e atuar numa escola com grades para todas os lados, nenhum jardim e uma biblioteca que ficava trancada para os alunos não a detonarem. Em suma, que pouco oferecia, além de conteúdos e repressões.
Eu, nas minhas viagens e maluquices, adorava chegar bem cedo e ver a escola vazia em total silêncio. Esperava abrir os portões para que pouco a pouco o barulho e o movimento fossem tomando cada centímetro do espaço e o transformando em vida acelerada, caótica e intensa. Nessa escola, eu busquei oferecer uma perspectiva educacional que hoje já sei nomear, mas que na época era apenas a união de minha forma de pensar e agir no mundo com a utopia de que a educação é propulsora de transformações das realidades vigentes. Usava ludicidade, construtivismo, sociointeracionismo, respeito às diferenças e às variedades lingüísticas, formação leitora e letramento literário sem sonhar em dar nomes aos bois.
Neste contexto, havia o professor carrasco. Era o professor de matemática. Disciplinador, cheio de regras e com rigor quase militar para tratar os estudantes. Por incrível que pareça, eu e ele – dois antônimos – éramos os queridinhos entre os alunos. Que loucura. Talvez isso me ajude a pensar o país e o cidadão brasileiro, pelo viés do quanto gostamos de transitar entre o que consideramos bonzinho progressista e o ditador conservador. Quando um radicaliza, apelamos para o outro nos salvar. Vamos sempre entre o folgar e sufocar.
Naquele ano, o tal professor sugeriu que realizássemos um projeto com os alunos. Era algo para incentivá-los a ser bom no que eles seriam fatalmente. E, no dizer daquele caro colega, eles certamente seriam domésticas, caseiros, garis, pedreiros. E já que trabalhariam naquelas profissões, indicava que nossa função de professor era fazer com que eles desempenhassem tais papéis com excelência. Aquilo me causou um estranhamento. Acho que foi a primeira vez (das muitas) que me pronunciei com veemência contra algo. Não sabia ao certo o porquê, apenas sentia um forte incômodo. Eu indicava que nada tinha contra as profissões, que segundo o professor já estavam direcionadas para os nossos estudantes, entretanto, eu afirmava que eu gastava minhas tardes naquele espaço não para que fossem doutores ou garis, mas para que ofertássemos caminhos pelos quais eles mesmos escolheriam, de forma autônoma e consciente, trilhar. Não seria eu quem diria se seriam advogados ou domésticas, mas eles próprios. Para variar, eu ouvi a frase que me acompanharia por longos anos da minha atuação docente: “você é muito jovem; está começando agora, por isso, tem essa visão romântica”.
Óbvio que fui voto vencido entre os colegas. O projeto foi realizado, aplaudido pela Secretaria de Educação da época e funcionou da pior maneira entre nossos estudantes. Naquele tempo, havia um ano de promulgação da Nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e os Parâmetros Curriculares Nacionais só seriam publicados no ano seguinte. Assim, as mudanças que aconteceriam a partir da consolidação de tais documentos não tinham sido ainda aplicadas com amplitude.
Mas, a partir dali, tornou-se obrigatória as formações inicial e continuada para todo aquele que atua como professor na educação básica; muitas avaliações para aferir os avanços e continuísmos da educação foram implantadas; palavras como diversidade, ludicidade e tecnologia foram incluídas como reflexões importantes; o trabalho com as culturas, história e literaturas de matriz africana ou afrobrasileiras e indígenas tornaram-se obrigatórias. O ensino de Língua Portuguesa mudou radicalmente de perspectiva, tirando o foco do gramaticismo e atuando a partir do ensino da língua pelo uso das competências leitoras, escritas e orais.
O mundo mudou. O Brasil mudou. Tudo mudou.
Em 2014 (ou melhor, 17 anos depois da minha experiência), meu marido, também professor de Língua Portuguesa, foi convidado a participar de um projeto na escola em que ensina, uma escola pública estadual de Ensino Médio. Lá, professores muito bem intencionados idealizaram e executaram uma ação pedagógica para fazer com que os estudantes que concluirão a educação básica se munam de mais informações sobre as áreas em que ingressarão como profissionais no mercado de trabalho. A idéia consistia em distribuir profissões entre os estudantes, para que eles as pesquisassem e falassem para os colegas sobre a importância, formação, atuação, mercado de trabalho, perspectivas e remuneração.
Era uma boa idéia, se não fosse a repetição de uma cena já vivida há anos atrás. Ao elencar as profissões, os docentes sinalizaram para os alunos apenas profissões como empregada domésticas, auxiliar de serviços gerais, pedreiros, motoristas, garis, secretárias, segurança, garçons, recepcionistas. Meu marido também se revoltou. Achou estranho. Mais do que isso, ele estava respaldado por leis, referenciais, parâmetros, diretrizes. Mas, assim como eu, ele foi voto vencido.
Quando vivi esta cena, nem eu nem a escola estávamos amparadas por discussões legais e teóricas que pudessem sustentar minha opinião contrária ao projeto. Mas, atualmente, a lei, a teoria, o acesso a informação, as mudanças mundiais e brasileiras são contrárias a tudo isso. Todavia, o que assusta é que a prática permanece aparentemente irretocável. Tanto tempo depois e a escola brasileira parece ratificar o lugar dos pobres como os sem lugar ou os pertencentes ao lugar que sobra.
A escola continua a determinar e indicar os espaços de acesso para aqueles que considera eleitos e para os que identifica como os da margem. Há cotas raciais. Há uma ampliação do ingresso à educação básica e, sobretudo, ao ensino superior. Há programas de distribuição de rendas, mas as mentalidades talvez tenham se fossilizado e isso é desesperador. Pelo menos para mim (ou para gente como eu) que fez e faz do cotidiano da educação brasileira a argamassa que consolida seus dias. Vejo um retrocesso na sociedade brasileira. Há gente querendo intervenção militar. Há religiões que violentam aqueles que não são seus pares. O país vive um binarismo retrógrado, centrado numa postura egoísta.
Entretanto, na minha vida, a Literatura sempre me salva dos momentos de desespero e fatalismo. Lendo um texto de Cidinha da Silva sobre a minissérie Subúrbia e o tratamento dado à jovem negra como doméstica numa casa de uma professora doutora, a escritora mineira narra uma passagem possivelmente de sua vida pessoal, que me comove e talvez me inspire.  Na verdade, abre meu horizonte e me enche de esperanças. Ela relata uma cena em que, ao adentrar a UFMG para uma aula no curso de História, uma amiga de infância, que trabalha na universidade como auxiliar de serviços gerais, provavelmente, a chama e a abraça comovida, dizendo que sabia que de todas as amigas, Cidinha seria aquela que chegaria a ingressar num curso universitário. Diz mais. Afirma, aos prantos: “quando você entra por esse portão, nós todas entramos com você”.
Essa frase se condensa em mim como uma marca e o texto-relato de Cidinha só confirma para mim a importância dos jovens estudantes de periferia (e se forem negros e mulheres, isso tudo se potencializa) serem incentivados a fazer aquilo que não está aparentemente ao alcance deles, a investir no que alguns indicam como improvável. Porque quando uns chegam a tais espaços, eles arrastam simbolicamente (e também concretamente) tantos outros. Confirmam entre suas famílias, amigos e inimigos que sim, é possível, ainda que não seja fácil. Mexem positivamente com a autoestima da coletividade, tiram as coisas do lugar e ratificam a máxima do Chico Science: “é desorganizando que eu posso me organizar”. Trocado em miúdos: é rompendo com a expectativa que a mim foi imposta bem eu sei por quem e bem eu sei quando (é assim que acontece), que eu posso construir outras relações de sentido, outros espaços, outras formas de inserção nesse tal desse lugar ao sol, que tem sido para poucos, mas pode e deve ser de muitos.
Eu imagino mesmo (sou Poliana muitas vezes) que muitos colegas temem instigar altos vôos entre tais alunos porque acreditam na ultrapassada máxima: quanto maior o vôo, mais alta a queda. Eu, admiradora da capoeira, sempre vi na queda uma possibilidade para uma negativa ou até mesmo uma rasteira. Creio que a iminência do risco, nos move para a construção de saídas. Temo, sim, o conformismo, a confirmação do vigente, a imutabilidade.
E sigo. Mais uma vez na contramão. Por conta da idade, cada vez mais sorridente e menos angustiada. Como diz o Vaz: “o que sinto não é felicidade; é desprezo pela tristeza”. Certa das intempéries, das faltas, das limitações e dos limites, mas jogando tudo pro alto e investindo no impossível. Crendo no improvável e dizendo sem medo para os Ìcaros (que graças a Deus) cruzam diariamente meus (dês)caminhos (in)certos: construam asas com o que tem e voem. Do meu lugar, eu os apoio e tento fornecer a eles instrumentos que auxiliem em percursos bem sucedidos. Os da tradição grega já nos falaram sobre penhascos e asas de ceras. Nada disso me amedronta. Estou consciente e com eles em busca de outras saídas, mas sem jamais perder de vista a iminência do vôo.