Postagens populares

domingo, 27 de outubro de 2013

JUIZ DE PAZ E BEM!


Me dizem idealista. Quem sou eu? Não sou tanto. Sou menos, bem menos. Só acredito num mundo mais humano, mais feliz, mais democrático, mais igualitário. Aff, mais tanta coisa. Isso nunca foi idealismo. Isso é, segundo Clarice, algo que ainda não nomearam. Pois bem, além disso, tenho uma danada de uma esperança que me segue, se gruda em mim, toda faceira e me faz gostar de horizontes, céus azuis, ventos quentes na cara.
Mas minhas famílias são bem isso. Ambas cheias de humor para lidar com as intempéries da vida. E, não querendo ser bairrista (mas já sendo), acho que ser nordestina ajuda muito nesta forma leve de ver a vida. Nestas minhas andanças por outras terras, noto que nós, ao lidarmos com o vôo que atrasa, com o salto que quebra, com a crítica inesperada, não berramos irritados, com tudo e com todos. Tendemos a nos ‘retar’, rindo. Geralmente, ficamos zangados, reclamamos, usando do sarcasmo, da picardia, da ironia, do bom humor. Sei lá. Confundem-nos com alienados, passivos. Mas é nada disso. É só nossa forma de agir no mundo que se sustenta na nossa crença de que a vida, apesar de tudo, é boa...
 Pois bem, hoje eu me enchi de vaticínios de um mundo mais bonito. Na verdade, nem começou assim. Eu estava assistindo Paula Lavigne (espero que ela não me processe) no Programa Saia Justa, em um debate acirrado sobre a autorização de biografias no país. Em um dado momento, a ex de Caetano Velloso, reclamando direito a privacidade, expõe a vida amorosa da jornalista Barbara Gancia. Ou melhor, age da mesma forma que ela não quer que ajam com ela. E isto não me encheu de esperanças. Pelo contrário, me deixou bem triste e descrente. Me fez coçar a cabeça, torcer o bico e, por menos de um minuto, pensar que o revide é prática mais corriqueira do que a escuta. Me fez pensar que quem se coloca como vítima não tem o menor pudor de escrachar com o outro (seja ele o algo que vitimiza ou uma outra vítima também). Me fez compreender que muita gente para defender sua bandeira detona com a dos outros. É o evangélico acabando com a vida do gay que detona todo católico que discrimina o candomblecista que pune a mãe de família que ofende a prostituta que agride o homem que marginaliza o pobre... Ahhhh... Esta lista não tem fim.
Mas Deus é tão bom. Só me deu pouco tempo para a tristeza, porque aí, ao terminar o programa da GNT, fui acessar meus e-mails e me deparei com uma mensagem de meu pai. Ele não dispensa apresentações. Até porque adora ser o centro das atenções. Meu pai é cristão (desde pequenininho), mais do que isso, católico, educado numa família super carola. Hoje é cheio de cargos e postos na Igreja. Nunca ganhou um centavo. Pelo contrário, só gastou! Eu acho até que ele é padre. Porque para mim (e para a maioria das pessoas), padre é quem faz celebrações em Igrejas, é quem ministra a hóstia na Eucaristia, é quem faz sermão. E ele faz tudo isso. Celebrou até meu casamento (que não foi nem católico nem em Igreja).
É óbvio que aos 71 anos, ele crê nos dogmas da Igreja Católica, respeita-os, segue-os. Já discutimos tanto por isso. Mas, que a Santa Sé nunca descubra, ele e minha mãe são religiosos bem ‘moderninhos’. Representam para mim o que há de mais humano no Cristianismo. Apresentaram-me um Cristo, do qual eu não desgrudo, mesmo não sendo mais católica. Porque me educaram mostrando o Jesus solidário que não atira a pedra na prostituta; o Jesus ousado que açoita os vendilhões do templo, o Jesus que não é hipócrita e ceia na casa de Zaquel, o Jesus poético que deixa a pecadora ungir seus pés e secá-lo com seus cabelos.
Além disso, meu pai é empresário, candidato a escritor e, atualmente, se orgulha por ser o Juiz de Paz da cidade onde moro. Vale ressaltar que esta é também uma das suas muitas tarefas não remuneradas. Ele gosta muito do título, porque como afirmei, ele é meio amostrado (e eu nem posso falar de gente assim), mas, acima disso, ele vê a função como uma responsabilidade social. Bem, logo que ingressou neste cargo, a união estável entre casais do mesmo sexo foi permitida no Brasil e ele foi imediatamente informado de que caso houvesse tal situação no cartório, ele não poderia se negar a fazer o casamento, por motivos óbvios.
E isso sempre foi uma preocupação para ele. Como confrontar os ensinamentos religiosos aos direitos civis? Como uni-los? Ele se justificava. Dizia que não via mal nenhum neste tipo de relacionamento. Dizia que a lei é legítima. Afirmava ser este um direito inegável. Mas, por outro lado, pedia compreensão. Dizia-se um homem velho, criado em outros tempos. Temia ficar tenso ou evidenciar desconforto com o casal no momento da cerimônia.
Eu, de cá, que não tenho mais mãos para carregar tantas bandeiras, conversava com ele. Compreendia suas tensões, até porque creio como o Martin Luther King que a gente não nasce com preconceitos, eles são ensinados por muitas agências sociais. E isso não vale só para Católicos (vales para Espíritas, Candomblecistas, Evangélicos, Ateus e Agnóstcos). Mas eu brincava, dizendo que estava rezando para ele realizar logo um casamento gay. Eu me disponibilizava para auxiliá-lo neste momento.  Ele sorria amarelo. E hoje, ele feliz da vida, me noticiou por e-mail que o momento chegou e da forma mais bela. Mandou o e-mail com os seguintes dizeres: “Minha filha, o Juiz de paz casou na última sexta-feira duas médicas veterinárias que já conviviam há trinta anos. Não foi fácil para este velho arcaico, mas, graças a Deus me portei com a maior espontaneidade e sinceridade possível. Uma com 67 anos e outra com 56”.
 Na minha leitura, ele estava dizendo que, de certa forma, celebrou uma união sólida entre duas mulheres. O velho arcaico não parou no tempo, nem deixou se impregnar pelos preconceitos que alguns homens e mulheres da Igreja Católica (ou de qualquer outra igreja) permitem disseminar. Ele fez o que tinha de ser feito de forma verdadeira, aceitando suas limitações, mas acima de tudo respeitando o direito inalienável do outro ser humano de ser feliz, realizando as escolhas que indicam o ser que ele ou ela é.
E foi isso que, sim, me encheu de alegrias e esperanças. Não sei o que os gays, os católicos, os cristão vão pensar do que digo. Sinceramente, me importo pouco. Celebro, sim, o fato. Comemoro o orgulho de meu pai por si mesmo, porque ele não cedeu ao preconceito e a discriminação a que os homens de sua geração e religião foram ensinados. Ele seguiu a sua consciência. Meu pai foi uma anti-Paula Lavigne. Respeitou a sua condição humana, de fragilidade (todos guardamos em nós algum preconceito), mas fez o que era certo, principalmente, ao meu ver, o que era bom. Ele fez o que de mais belo alguém pode fazer: garantiu o direito do outro como se fosse o dele mesmo. Por isso me orgulho deste pai arcaico, porque para mim ele fez o que eu acho que Jesus Cristo chamaria de ‘se irmanar’ com toda a humanidade, independente de seus credos, orientações sexuis, cores, classes sociais. Mas acho que isso é idealismo ou aquela coisa que ainda não tem nome!

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

OS DOIS MUNDOS DE PERSERFÓNE!



Numa triste madrugada de 19 de setembro de 2013.

Quando a tristeza é um pequeno ponto de tinta vermelha que aporta num enorme balde de água límpida e, aos poucos, se espalha, contamina e se instala na imensidão translúcida, plantando um marrom sujo de terra, a gente não pode mais ir ao mundo para passear, sorrir ou dançar. Resta-nos encontrar um canto para nos encolher a espera da transposição das águas ou da mudança das estações. A chuva abundante apaga toda possibilidade de sol.
É que ela – a tristeza – vem sempre acompanhada. Desta vez, trouxe a morte para me fazer visitas e lembrar que cedo ou tarde, para quem já viveu muitas travessias marítimas ou para quem ainda tinha o seio carregado de leite, o fim da vida é certo, nos surpreende, nos tira do jogo. Quando? Não sabemos. O porquê? Muito menos. Acontece. Todos os dias e horas e minutos. Nós é que fingimos não ver...
E, a maior verdade, é que a certeza da morte a mim assusta. Como dizia Millôr Fernandes, assusta não só pela morte em si, mas, sobretudo pelo o que ela nos tira. E ela não só debita em nossa conta o desaparecimento de quem morre. Ela deflagra para nós a certeza da sempre proximidade de extinção da nossa própria vida. A morte nos tira a nossa ilusória paz. Lembra-nos da nossa própria perecividade. Puxa nossa orelha e grita: a vida é boa, mas finita. Acorda-nos para a única e maior certeza: nós e os nossos, um dia, iremos... Seguiremos sós, como sempre estivemos!
Olho o balde de água marrom novamente e nele encontro refletida uma fresta de janela. Onde neste instante só chovia, sem em mim nada lavar, agora aparece um sol timidamente radiante. É o mesmo sol que eu insistia em desenhar e aquela chuva renitente fazia desaparecer. Ele agora queima minhas orelhas. Não o vejo com nitidez, apenas o sinto. Temo novas chuvas. Em mim, há marcas que denunciam: o frio não foi nem nunca irá embora de todo. Ainda que enfraquecido, retornará.
Porque somos todos Persérfones que, escolhemos invernar a vida, por alguns meses, cortando cordões umbilicais, afastando-nos do seio materno, legando aos homens o frio, a neve, o vento e a chuva. Para só no depois, retornarmos, irradiando sóis, flores e frutas mundo a fora. Somo aqueles que - por força da sina - temos que conciliar nossa existência entre o que está embaixo da terra e o que está sob ela. Não é fácil habitar dois mundos tão díspares: o do fim e o do eterno começo. Nem parece possível, mas eis a sina de todo o humano!
Por hora, há prenúncios de primaveras tardias. O inverno que extingue a vida também quer descansar e dar tréguas. É hora de Persérfone, ainda que provisoriamente, deixar Hades e retornar ao encontro de sua mãe, Deméter. Encho-me de novas delicadezas e esperanças. Ao imperativo da morte, só nos resta celebrar com a vida que ainda nos persegue. Por enquanto – só por enquanto – está em nós! Para aos que já terminaram suas trajetórias pelas bandas de cá, presenteemos com saudades, desapegadas de tristeza. Para nós que por cá ainda estamos, bebamos das águas que sempre retornam ao seu curso abundante, conscientes de que a fonte, um dia, seca!

*In Memoriam para Oswaldo Moreno (já depois dos 80 anos) e Alessandra Pereira (ainda na casa dos 30 anos).