Ouço
uma frase das elites econômicas brasileiras que muito me incomoda. Aliás, na
verdade, são as práticas sociais deste grupo que me incomodam. Mas retornando a
frase, diz este grupo que, como os pobres brasileiros, por falta de educação e,
consequentemente, de informação, não ministrarão mudanças significativas no
país, são eles - os ricos que deverão insurgir e promover uma revolução para
mudar suas próprias vidas e de brinde a dos pobres.
Todavia,
muitas pessoas destes grupos são contra cotas, contra bolsa família, contra PEC
das empregadas domésticas. Muitos gritam aos quatro cantos que as cotas são
racismo aos avessos, a bolsa família acomoda os pobres e a PEC transforma as
domésticas em insubmissas, insolentes, cheias de direitos, descumpridoras de
seus deveres.
Trocando
em miúdos mais uma vez (eu não resisto), quem tem grana se acha no poder de
salvar os pobres. Mas eu questiono: e os pobres precisam mesmo de redentores? E
a salvação dada de brinde contempla todos os anseios das classes populares?
Lembro de Bob Marley e de sua Canção da Redenção em que o jamaicano rejeita
qualquer opção que não seja a da liberdade e adverte: “ninguém além de você
pode libertar-se da escravidão”. Para bom entendedor, o reggaeman nos provoca
pensar na idéia de que a liberdade é algo que começa de uma consciência de
nossa autonomia e capacidade de agir por conta própria, sendo capaz de lidar
com as conseqüências – quaisquer que sejam elas - de nossos atos. Ou melhor,
ninguém pode construir os melhores caminhos para trilharmos, porque só estando
olhando a vida de dentro nossas histórias, vivências, experiências, podemos
decidir tão importante trajetória.
Sei
que vivemos num mundo onde se propaga que os pobres são sempre bons. Mas isso
nem de longe significa uma elogio. Cheira a tutela. O ‘combo’ desta concepção é
que além de bons são coitadinhos, sofredores, limitados, inferiores, incapazes
de assumir os rumos de suas próprias vidas. Esta visão maniqueísta que associa
pobre a bom e rico a mau me lembra aquele nefasto período da história humana em
que tanto a pobreza quanto a riqueza eram consideradas dádivas de Deus, por
isso deveriam ser aceitas (ou usufruídas) com resignação.
O
que vejo hoje nas camadas populares brasileiras nada tem a ver com purismos ou
inércia dos pobres. Nem há esse papo de ser bom ou ruim. O que quem tem olhos
para ver pode ver se chegar num bairro pobre deste país é que as classes
populares do Brasil, desde muito tempo, criam estratégias de sobrevivência que
deixariam os grandes empreendedores mundiais de queixo caído. O problema óbvio
é que tais ações tornam-se invisíveis. São ignoradas, quando não tratadas de
maneira jocosa ou marginal.
Sempre
afirmo que observo mais práticas sociais efetivas (visando mudança de
consciência, ações que desemboquem em formação individual e coletiva) com
jovens de bairros pobres da cidade onde moro do que em jovens de situação
financeira mais confortável (nem os caracterizo como ricos). Quando converso
com jovens pobres geralmente observo uma preocupação em atrelar suas demandas
individuais às coletivas. Eles querem, por exemplo, fazer vestibular, mas
também querem desenvolver ações para denunciar a violência no bairro. Já os
jovens com situação financeira mais favorável preocupam-se muito mais com seu
futuro profissional, bem sucedido do que com qualquer causa social. Óbvio que
falo dos jovens (muitos) com que trabalho ou conheço e isto jamais pode sugerir
uma generalização definitiva.
Inquieta
com a danada da frase (os ricos salvarão os pobres) e o termo elite, perguntei
a um amigo historiador se todas as revoluções na história da humanidade tinham
sido provocadas pelos ricos. E ele disse que sim. E que não. O que me assustou,
mas me presenteou com lufadas de utopia. Até porque sempre repito a etimologia
desta palavra (u- negação/ inexistência e topos-lugar). A utopia é sim um lugar
inexistente, todavia a História é feita de inexistências construídas. As
rupturas e transformações provêm da construção de algo que nunca existiu em
lugar algum. E não é para isso que existe a linguagem? Inventar mundos? Criamos
o tempo inteiro o que não existe e depois disso o que construímos torna-se
banal. Foi assim com desde o palito de dentes às aeronaves mais potentes...
Este
meu amigo me provocou a discutir a concepção do termo elite e enunciou que nem
sempre o termo se refere aos ricos, apesar desse ser o sentido mais comum
historicamente. Então, ele explicou: “podemos
falar em uma elite intelectual, em que seus integrantes não precisam ser ricos
(vide Karl Marx). Grupos sociais têm elites, por exemplo, os Malês eram a elite
entre os escravos baianos no século XIX porque sabiam ler e escrever, inclusive
em árabe”.
Bem, é
nesse ponto que me apego. Na polissemia da palavra elite. Penso, com os parcos
conhecimentos de História que possuo em vários fatos. Como a relação da criação
da Imprensa por Gutenberg e da ampliação do mercado livreiro na Europa, por
exemplo, com a Revolução Francesa. Ampliar o número de leitores (algo que em
tese nada teria a ver com política partidária) foi ponto fulcral para disseminar
idéias revolucionárias de igualdade, liberdade e fraternidade. Desta forma,
sustento meu argumento de que a luta se faz de muitas coisas, dentre elas de um
conhecimento que gera experiência, ou melhor, um conhecimento que mobiliza e
leva a transformação. Esse conhecimento não é necessariamente escolar, mas também
pode sê-lo.
Assim,
vou afirmar que creio que uma elite (intelectual, informada, munida de
conhecimento) é quem na História tem mudado a História, com a permissão da
redundância. Todavia, julgo um equívoco muito bem orquestrado reduzir o termo
elite a somente quem tem dinheiro. Também não sou ingênua em pensar que uma
elite que emerge das classes populares é sempre atenta aos seus anseios. Vale
lembrar o exemplo da China, em que essa elite proletária, depois virou o poder
burocrático do Estado... Tão supremo e tão escroto como o que eles mesmos
destituíram. Há um livro “As boas
mulheres da China”, sobre a opressão vivida, sobretudo, pelas chinesas durante
a Revolução Cultural. Nele, narram-se vários depoimentos reais de mulheres
chinesas. Num deles, uma jovem comunista, atrelada ao partido, médica, recebe a
missão da sua vida. Ela, coitada, acha que a causa é nobre, humanística, salvar
vidas com seus conhecimentos médicos. Qual nada. A missão para a jovem
chinesinha era casar com um general. Ela foi cumprir a inquestionável missão.
Viveu humilhada, subjugada, violentada por este militar, para fazer a missão
imposta pelo ideário comunista chinês. E isso não é literatura, não. Aconteceu
mesmo. Serve como fragmento de que uma elite proletária pode não contemplar a
diversidade de urgências que emergem dos indivíduos pertencentes ao próprio
grupo.
Onde
quero chegar? Quem me dera saber... Acho que anseio anunciar o perigo de estar
no poder. Pois o ditado argentino tem se confirmado: “toma-se o poder com a
esquerda e rege-se com a direita”. Parece que estar no poder é moldar-se numa
forma pré-fabricada para a ideia que a sociedade tem em torno do poder! Sei lá.
Mais popularmente, parece que as pessoas se transformam em outra coisa quando
se sentem (ou se sentam) nos espaços de poder.
Aí,
finalmente, retorno a frase que tanto me provocou: os pobres precisam de alguém
que os redima. Penso numa outra elite que se diz adorar pobre. Os intelectuais.
Só que estas elites são confirmadas pelos próprios intelectuais, acadêmicos,
artistas, pensadores que, muitas vezes, desprezam o pobre, a margem e só
enxergam o centro. Não importa de onde elas venham. Vêem as inúmeras produções
culturais que emergem das periferias brasileiras, por exemplo, como inferiores,
menores, pouco elaboradas...
No
Brasil, parece que o desprezo pelas produções intelectuais e culturais dos
pobres tem sido a regra. O Cânone literário brasileiro, por exemplo, sempre foi
feito de homens, do sudeste, ricos e brancos, heterossexuais. Uma renomada
pesquisadora brasiliense afirma que ela e seus colaboradores rastrearam o
romance brasileiro contemporâneo. E, no final do século XX, o cânone
contemporâneo brasileiro confirma o modelo do passado em que ainda os HOMENS,
DO SUDESTE, BRANCOS E RICOS, HETEROSSEXUAIS são os autores da literatura
brasileira colocada como canônica. Então pergunto: mulheres, pretos, gays,
nordestinos, pobres não escreveram? Sempre. E muito! É óbvio. Suas obras são
ruins, menores, inferiores? Não. Apenas
em seu tempo não tiveram qualquer visibilidade.
Sempre
cito Luís Gama, poeta soteropolitano negro, filho de Luiza Mahin. Denunciou a
escravidão de dentro, pois era filho de escrava liberta, envolvida, segundo o
mesmo, em diversas insurreições de escravos. Frase célebre de sua autoria era a
que indicava que o escravo que mata o seu senhor pratica um ato de legítima
defesa. Poucos o conhecem. Já Castro
Alves (para mim, maravilhoso poeta brasileiro), viu a escravidão do alto – como
um condor e este sim se tornou o poeta dos escravos. Nem de longe, intenciono
comparar um com o outro, nem estabelecer um juízo de valor sobre ambos. Mas o
fato de não terem lido Gama me inquieta por demais. Infiro que sua cor, sua
atitude política seu verso rasgante sobre quem conhecia a escravidão de dentro,
sua literatura que corta e denuncia, rasga e expõe uma chaga que é de todos nós,
brasileiros. E as elites econômicas não querem isso. A idéia é assim: se é pra
falar de escravidão, tudo bem, mas douremos a pílula.
Atualmente,
fazendo um salto neste texto sem costura, trago outra questão que mal saiu do
forno. As mudanças sociais ocorridas no mundo contemporâneo ocorreram por
desejo ou compreensão de qualquer elite (seja ela intelectual, política ou
financeira)? Ou porque alguns segmentos sociais, militando em movimentos,
começaram a pressionar e, de certa forma, obrigar a mudança? Falo a partir dos coletivos
de mulheres; negros; dos movimentos gays, lésbicas, bissexuais, transexuais,
travestis; de periferia (vide HIP-HOP); de pessoas com necessidades especiais; de
categorias trabalhistas, dos sem-terra; dos sem-teto? Sem
pressão ou briga desses grupos, não teríamos certamente união estável entre
casais do mesmo sexo, cotas para afro e índio descendentes nas universidades,
obrigatoriedade de acessibilidade arquitetônica ou, indo mais atrás, ainda
estaríamos, trabalhando 14 horas por dia para ganharmos um prato de comida.
Os
movimentos sociais são uma selva inteira. Tem gente, sim de todo tipo. Tem os
que estão lá por interesses pessoais. Outros querem inaugurar uma carreira
política. Alguns querem gritar palavras de ordem com saudades de um passado
revolucionário. Não importa. O que importa é que há um elo. Há uma causa comum,
ainda que alguns – de dentro – a tratem com mais honestidade e clareza do que
outros. Interessa é que por uma razão única, estes grupos se reúnem e tratam
com pauta de todos os dias aquela questão única, colocando-a como urgência
inquestionável. E assim – fato – mudam o mundo!
Desta
forma, entre os pobres, há sim elites intelectuais. Há sim cada vez mais gente
com acesso a informações. Mais do que isso, a gente bebendo a goladas litros
daquele conhecimento que transforma. Não me refiro aqui ao conhecimento que
vira resposta de prova vestibular. Refiro-me ao conhecimento que mobiliza,
arrebata e que, geralmente, não se aprende na escola. Sempre existiram diversos
coletivos, organizações que se instrumentalizam para fomentar e promover
reflexões, debates em torno de diversas questões importantes para as demandas
que emergem das classes populares.
Todas
estas ações tem desembocado em frutíferas manifestações artísticas e culturais.
Para além disto, tem colocado gente nas universidades, no mercado de trabalho,
na política. Estas tem buscado trazer para o centro das demandas das populações
brasileiras, as urgências das populações periféricas brasileiras. Na literatura
brasileira, por exemplo, cada vez mais vemos e lemos caras da periferia que
escrevem, ganham prêmios, tem editoras como FÉRREZ, MARCELINO FREIRE, SÉRGIO
VAZ, SACOLINHA, DINHA, BUZZO, FÁBIO MANDINGA... Na periferia, prolifera-se uma
produção musical que não é nem Pagode, nem Funk, necessariamente, mas também é.
Sem falar de expressões das artes plásticas e da cena teatral.
O que
vejo é muita gente da periferia se inserindo em ações culturais, lendo a
cultura do mundo e do passado para continuar produzindo sua própria cultura. A
diferença é que agora esta produção que sempre ocorreu vem acompanhada de uma
necessidade de visibilização. E ninguém mais busca chegar lá para produzir.
Constrói-se de dentro para dentro e para o mundo. Se é que me faço entender. Há
editoras nas periferias. Há grandes eventos culturais na periferia. Há diversos
espaços em que as pessoas, especialmente os jovens se reúnem para ler
literatura, fazer rap, criar arte. E funciona. E é do gueto, mas não se limita
ao gueto. É periférica, mas vai para o mundo. É do beco, mas amplia-se ao belo.
Bem, no
fundo, eu sou mesmo uma esperançosa. Mas não sou otária, nem ingênua. Sei que tem
muita coisa sendo feita. Sei que há muito a se fazer. O mundo mudou muito. E
vai mudar sempre. Há muitas juventudes. E sempre houve. Mas eu revelo, como
todo respeito a todas as culturas juvenis, da experiência, do lugar e do tempo
de onde falo, para mim, a mais aguerrida e que me mostra que luta cotidianamente
contra a violência, em prol da mudança – a própria e a do bairro – são as das
periferias onde circulo, insiro-me e contribuo através do meu trabalho.
Meus
radares estão acesos. Sei que há muito gente babaca, entre ricos e pobres; entre
pretos, mestiços e brancos, entre gay e heteros, entre homens e mulheres, entre
jovens, crianças e velhos. Não podemos legar isso somente aos que estão nos
centros. Mas almejo realmente (sobretudo em mim) que se temos que silenciar
alguma coisa que sejam as generalizações. Sugiro que a primeira besteira a ser
deletada dos discursos (políticos e da mídia, sobretudo) seja a de que as
classes populares precisam de heróis ou redentores. Espero que ninguém afirme
mais que se há mobilizações nas ruas, elas são encabeçadas pelos jovens
abastados. Até porque esta fala provém dos ricos que querem e precisam
acreditar nisso. Nas periferias brasileiras, o que ouço hoje com alegria e
esperança são vozes de autonomia e orgulho, que rejeitam tutelas e
apadrinhamentos e que olhando para fora falam de dentro.