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sábado, 17 de dezembro de 2011

TRAJETÓRIAS LITERÁRIAS

Há seis meses, visitei nove escolas públicas, entrei em mais de trinta salas de aula, conversei com mais de trezentos jovens. Tudo isso para informá-los e os convidar a participar de um projeto de leitura. Na verdade, círculos de leitura que serão o objeto de estudo do meu doutorado. A partir disso, alguns jovens, dez em Itinga e vinte em Areia Branca, aceitaram o desafio e vieram semanalmente aos CRAS para, por duas horas ou mais, conversar sobre si mesmos, sobre a vida e sobre o mundo, tendo como companheiro inseparável, como fiel escudeiro o texto literário. Foram questionados exaustivamente, chegando a ficar cansados quando alguém perguntava: “Por quê???” Escreveram cartas, pintaram murais, teceram seus sonhos, fizeram projeções para o futuro e as colocaram numa cápsula do tempo, encenaram peças, construíram presentes, brincaram, brigaram... Pensaram.

Poxa, estes jovens nadaram contra muitas marés. Marés que eu nem posso imaginar ou descrever, apenas intuir. E vieram viver esta aventura com coragem. Mostraram-se sempre questionadores, polêmicos, engraçados, ativos. Souberam posicionar-se, dizendo o que pensavam. Fizeram novas amizades; fortaleceram os antigos laços e se tornaram singulares, imprescindíveis uns para os outros, sobretudo, para mim.

Nosso ponto de partida e de chegada foi sempre a leitura de literatura e a partir dela falamos de nós mesmos, olhamo-nos no espelho, uns de peito aberto, outros ressabiados. Falamos de nossas famílias, do futuro, do passado, das ausências e das presenças. Compreendemos que os contos de fadas não são só para crianças. Viajamos em máquinas do tempo, ficamos curiosos por saber as razões de um vestido misterioso estar preso na parede. Até um coelho apareceu, querendo ser preto e questionando uma menina de laço de fita. Depois conhecemos Socorro com seu cabelo cauterizado e sua ânsia em ter uma pele mais clarinha. Então, tentamos olhar nos olhos do coelho branco que queria ser preto e da mulher negra que queria ser branca para ver as razões de seus desejos.

Voltamos a infância e rasgamos saco, puxamos cadeira, levamos ovo na colher e demos muita risada. Entendemos que tudo aquilo que nos dizem hoje vai ser dito de uma forma bem diferente daqui há trinta anos. Gente fantástica apareceu em nossas vidas, como uma fabulosa mulher que era capaz de tecer tudo o que desejava, mas quando se zangava ou se cansava também sabia destecer seus próprios desejos. Conhecemos outras mulheres, estas de carne e osso, como Pagu, que mesmo sem mágica de varinha de condão, conseguiram transformar feiticeira corcunda em rainha do tanque. Além de gente, apareceu bicho diferente, como um jumento que entrou na faculdade e desejou uma outra escola, com mais brincadeira, mais arte, mais riso.

Falamos de festa, de micos, de namoros e paquera. Lemos revista de fofoca e sentimos falta de gente de mais cores na revista Todateen. Estranhamos em ver e ouvir uma história às avessas em que a menina branca é que era maltratada e vista como feia. Que diferente. Que distante de nosso mundo, onde nos ensinaram que menina bonita mesmo é a loura esbelta da Malhação. Depois, falamos do amor que talvez transforme nossa vida a tal ponto que faça o mudo falar pela força mágica de um pão de queijo. Ou o amor escondido por trás de um vaso japonês cheio de tesouros.

Por fim, palhaços vieram nos convidar a achar no lixo, no lugar mais feio, mais sujo, a beleza da palavra que é construída para provocar a ira, o riso, o ódio, o amor, a auto-estima. E nesta valsa tresloucada, neste caminho inesperado, às vezes difícil, cheio de labirintos, ouvíamos as vozes de gentes várias, daqui e de acolá, que ainda estão no mundo ou que já desapareceram. Estiveram conosco Clarice Lispector, Roseana Murray, Pedro Bandeira, Vânia Abreu, os irmãos Grimm, Rubem Alves, Ana Maria Machado, Legião Urbana, Carlos Drummond de Andrade, Cristiane Sobral, Moacyr Scliar, Marina Colasanti, Rita Lee, Cláudio Torres, Jotacê, João Ubaldo Ribeiro, Joel Zito Araújo, João Lima, Adonias Filho. Muitos nos agradaram, outros nos aborreceram, mas todos, com certeza, provocaram algo em nós.
Depois de tudo isso, olho para trás e nem acredito que em tão pouco tempo, fizemos tantas coisas. Também ainda não consigo acreditar que as areias da ampulheta do tempo escorreram tão rapidamente. Chega a dar um nozinho na garganta e um medo de olhar para frente. Mas é inevitável: o tempo não pára. Como diria o poeta, não há futuro, só há o presente, por isso não nos afastemos dele, vamos de mãos dadas. Assim, agora só nos resta dar uma pausa, reorganizar nossos rumos para no novo ano, partilhar novas experiências e saborear novos saberes que emanam de uma mera folha de papel salpicada de manchinhas-desenhos pretos, prenhes de sentido e imageem.

sábado, 10 de dezembro de 2011

RELATO DE UMA PROFESSORA EM FORMAÇÃO

Sempre fui boa aluna em português e inglês; por causa disso, já aos quatorze anos, meus professores começaram a indicar-me como professora de banca para alunos mais fracos. Era uma ótima forma de ganhar dinheiro! Foi assim que ganhava uns trocados até meu terceiro ano do ensino médio.

Entretanto, era chegada a hora de decidir o curso para o qual iria prestar vestibular. Apesar da minha paixão por literatura e pela língua portuguesa só ter aumentado, ser professora não foi nem de longe minha primeira opção. Não desejava ganhar pouco, ser maltratada por alunos, sociedade, governo, nem passar a vida inteira fazendo greves, implorando uma valorização financeira e profissional. Pelo menos, era esse o discurso que me educou e me fez construir uma imagem de como vive e trabalha a categoria profissional, chamada professor. Por tudo isso, tentei jornalismo enão fui aprovada. Assim, fui obrigada a fazer cursinho pré-vestibular, mas como odiava auqela dinâmica do macete, me inscrevi no vestibular em Letras Vernáculas. E passei. Em primeiro lugar!

E lá a história se transformou em outra. Sentiu uma angústia pelo fato de muitos professores na faculdade ratificarem o tempo todo a dor de ser professor, os problemas, a impotência e a falta de solução. Isso me arrasava e eu ainda nem sabia o que era uma sala de aula. Vivi, de fato um conflito, pois, ao mesmo tempo, que amava estudar língua e literatura, falar, discutir e debater com colegas e amigos com paixão sobre o que estudava, o o único campo profissional para o qual o meu curso se voltava - ensinar - possuía perspectivas de êxito extremante restritas e desoladoras. pelo menos, era o que diziam enfaticamente.

O tempo foi passando e ansiedade que me é peculiar só me corroendo por dentro. Desejava concluir o curso, mas a necessidade de cumprir o desafio de entrar em sala de aula era inevitável. Decidi começar a lecionar antes mesmo do estágio obrigatório. Consegui uma vaga numa escola pública do município onde moro. Daria aulas de português para as turmas de quinta série no ensino fundamental.

No primeiro dia de aula, nervosa, ansiosa e cheia de opiniões negativas à escola. Naquele momento, tudo aquilo que estava no discurso da sociedade sobre o fracasso da escola pública se materializavam em minha frente: não havia salas suficientes para o número de alunos matriculados, os alunos corriam e gritavam de um lado para o outro, a diretora falava alto com eles, mas não conseguia ser ouvido. Era um cenário de guerra.
Nesta confusão imensa, apresentei-me a diretora sem certeza de ter sido ouvida. ela me respondeu com um sinal de positivo e pediu-me para entrar em qualquer sala e começar a das aula. Eu não acreditei, pois eu estava ali para trabalhar com as quintas séries, dar aulas de língua portuguesa, ensinar alunos a escrever segundo a norma padrão e os ensinar a ler e a apreciar os clássicos da literatura universal. Eu não estava ali para 'tapar buracos' nem acalmar alunos em fúria.

No entanto, resolvi entrar e enfrentar o desafio. Entrei na primeira sala de aula que vi e alguns alunos que se diziam quinta série também entraram, sem certeza de que aquela era realmente sua sala. Eles se sentaram calados, em fila indiana e me olharam com curiosidade. Só ali percebi que eles estavam tão assustados quanto eu. Sorri com ternura, pois naquele momento em que nos olhávamos, percebi o quanto um discurso propagado socialmente (e que só muito depois percebi que não é ingênuo; é carregado de preconceitos, falácias e criado intencionalmente para reforçar a auto-estima baixa do pofessor) podia nos fazer aceitar que a escola é mesmo o fim da linha e não há mesmo o que se fazer.

De fato, naquele momento de silêncio mútuo, o primeiro até então, me emocionei com aqueles olhares já cansados da obrigatoriedade de ir para uma escola que ele já sabiam ser enfadonha, mas, ainda assim estavam curiosos, ansiosos e, de certo modo, esperançosos como a possibilidade do novo.

Ai só me restava mesmo começar... Apresentei-me, falei da importância de se conhecer a língua falada por eles para saber entender os discursos veiculados socialmente. Além disso, expliquei que eles seriam convocados pela sociedade para produzir uma diversidade enorme de textos orais e escritos, por isso precisavam saber adequar os textos produzidos às exigências do contexto, do momento, do interlocutor, da situação comunicativa para não serem alvos de discriminação nem exclusão social e para se comunicarem com eficiência.

Quando parei de falar tudo aquilo, notei que tinha conseguido pernder a atenção daquela ‘galera’ e que eles me olhavam como se nunca tivessem ouvido falar nada daquilo. Comecei a pensar que não tinha sido entendido e perguntei se eles queriam dizer algo. Calaram-se. Fique assustada. Provavelmente eu tinha falado uma língua bonita, com palavras difíceis, mas cujo conteúdo era incompreensível para eles. Ledo engano, essa era apenas mais uma das sensações causadas pela idéia preconcebida de que os alunos são tabulas rasas. Só depois, entendi que eles entenderam minha fala e acho até que concordaram com ela.

Deste dia em diante, muito aconteceu e sei que muito ainda está por vir. Foi ai que descobri que podia usar a sala de aula, como um espaço de diálogo, troca de saberes. Foi em pleno caos que vi que era possível construir minha própria vida. Sei que o que falei não é novo nem surpreenderia muita gente, mas naquele dia surpreendeu meus alunos. Então entendi que estava impregnada pela utopia (no sentido mais realista do termo) de que através de uma educação de qualidade é possível mostrar as pessoas que o mundo oferece inúmeros caminhos e cada indivíduo precisa se instrumentalizar intelectualmente para ser capaz de escolher seu próprio caminho sem que tenha que dizer: “ a vida me levou” ou “faltaram oportunidades”.

Sem dúvida alguma sou educadora. Aprendi a ser no trabalho paulatino e duro com meus alunos. Aprendi a ser na escola básica e não na universidade. Esta vocação, como qualquer outra, tem sua dor e delícia, como afirma o Caetano Velloso. É maravilhoso lidar com o ser humano, auxiliá-lo em seu crescimento individual e coletivo. Mas a dor é latente sempre, pois o mesmo ser humano que encanta e emociona é aquele que assusta, entristece, estarrece.

Além disso, as questões sociais, políticas e culturais jamais podem estar fora da pauta, porque interferem violentamente em nossas práticas diárias na escola. Nas escolas públicas por onde passei, sempre foi muito triste lidar com a insalubridade de salas escuras e calorentas, com a existência de muitas grades e poucas áreas livres. A evasão, a defasagem idade /série, a carência de saúde e alimentação adequada, a ausência da família, acabei por aprender que eram mais conseqüências do que causas do fracasso escolar.

Para agravar a situação, a representação do professor é desmotivadora. Atualmente na Bahia é difícil até se aposentar, o salário é alvo legítimo das críticas e também serve como justificativa para o desleixo de muitos profissionais. Tal desapreço ao professor está na mídia, no senso comum. A sociedade geralmente enxerga o professor como um coitado, mal remunerado, com formação precária. Os alunos, como um chato-repressor.

No entanto, sei da possibilidade de transformar esta realidade que, às vezes, parece intransponível. E tenho visto e encontrado as faces da mudança ao longo destes anos de docência, nas inúmeras vezes que vejo meus ex-alunos tendo acesso a em situações sociais melhores do que aquelas que viviam, porque conseguiram concluir o ensino médio, fazer um curso técnico ou ingressar numa faculdade. Isso é fato e esta mudança não depende de um herói político, mas depende do esforço de muita gente e acontece como uma reação em cadeia que faz a diferença no final. O grande problema é que um médico quando termina a cirurgia sabe se o resultado foi satisfatório ou não, já nós professores só vamos ser compreendidos, valorizados e respeitados muito tempo depois, quando o aprendente colhe os frutos deste trabalho árduo e perene chamado EDUCAÇÃO.

Não é preciso criar escolas, mas ainda é cada vez mais preciso cuidar da formação do professor, valorizá-lo profissional e financeiramente para que se provoque uma reação em cadeia e o professor também se preocupe com a formação do aluno, com sua valorização enquanto indivíduo que pertence a uma etnia, religião, cultura local e global, buscando ampliar o reconhecimento positivo e orgulhoso da identidade deste aluno.

Não é um trabalho fácil e rápido; é paulatino e nunca se esgota. É urgente. Não há mais tempo em nossa sociedade para esperarmos a próxima geração. Temos que construir as mudanças do agora. A prática pedagógica que em seu cotidiano está envolvida com a responsabilidade social e com a crença na transformação do quadro educacional vigente é extremante exaustiva, mas faz sim a diferença. E é tendo como ferramentas diárias a crítica, a ação e a esperança que eu exerço meu fazer educacional, não como se fosse um sacrifício nem uma missão sagrada, mas como uma profissão.

* Escrevi este texto em 2004, mas ele narrava uma situação vivida em 1997, quando ao 19 anos, entrei pela primeira vez numa sala de aulas como professora. É ingênuo, mas fiquei admirada com o ser que um dia fui! Ele foi publicado pela EDUNEB, num livro chamdo "Professor e alunos, construindo uma cultura da paz".

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

SOCIALMENTE BRANCA

No espelho que me vejo refletida
Há uma menina, na verdade, olho de menina
Corpo de mulher: bunda grande, boca grande
O cabelo duro,bem encaracolado
A Beleza é Natural, comprada na feira, mas natural
A pele é plural: escura de sol, morena de sempre
Por que não pode morena, mesmo sendo preta?

Olho e rio, plenitude de mar!
Nem sempre foi assim.
Satisfação construída a duras penas
Satisfação construída com guanidina e amônia
Poucas tranças, muito permanente afro
O nada agora. Na química vazia do cabelo cheio
Aprender em suas ausências, em suas permanências
Lembrar do bobis, dos cocós, das toalhas na cabeça.
Memória viva, sem rancor, provocadora do riso
Pelo ridículo inevitável

Só depois, bem depois, entendi
É uma melanina preta redundante, retumbante
Que escorre pela alma
É uma brancura alva que condena minha culpa
É tudo isso que faz de mim quem sou.
É pele, é cabelo, mas é mais
É família, religiosidade, festa
Língua, afeto, afago e junção!

É a História esquecida; é a História lembrada
É a história colocada debaixo do tapete
São as estórias que ainda ecoam em meus ouvidos.
São todas elas que dizem deste ser
Era um lá fora, eu intuía
Mas uma coisa que bulia lá dentro,ordenava:
“Vá, menina, buscar uma História”
História que eu via não via
Olhava que olhava, para todos os lados
Pressentia distante, presente, minha, vazia!

Até que um dia, danei a ver, perguntar, conversar
Primeiro, vi que nasci num lugar que era meu lugar
Mas força do trabalho dos outros, mudei para outro lugar
Não era lá meu lugar. Mas agora é
Sou de todo e qualquer lugar?
Sou de um todo lugar qualquer!

Nesse esforço de ver-compreender,
Vi que o lugar que não era, era!
Nele cabiam todos os estrangeiros, gente de terra, como eu
Mas dependia das paralaxes
O problema não era o lugar, mas era a luneta por onde o olhava
Branquitude, roupas de marca, escola burguesa
Era tanta gente que tinha tanta coisa
Era tanta gente que debutava em Disney
Era tanta gente com Mochila da Company
Era amar Olodum, só depois de Simon
Era tanta coisa e um vazio na alma

Desconfiava que desconfiava
Primeira pista, era a casa com gritos, palavrões festivos
Risos, carurus, muitos santos
Ritos para tudo: para juntar, sobretudo
Palavra ‘porreta’ que podia em casa não podia em outros lugares
Nestas incertezas, as velhas olhavam
Mais que olhavam, diziam histórias belastristes
Não eram histórias para criança
Era história herança, para boi nem dormir nem esquecer.

Histórias que apontavam para desorgulhos, sofreguidões.
Seriam verdades, seriam acontecidas ilusões?
Estelita, tia-avô, falava da avó dela portuguesa
Era dona de escravos e má, frisava: era má a outra velha!
Tão má que um dia a escrava entrou na sala de jantar
Era hora de jantar, gente branca a mesa
Escrava preta para servir não podia
Era petulância entrar sem ordem, entrar sem vocativo.
A avó de minha avó, nem pestanejou
Nem reclamou, a velha má
Pegou a velha mão, muniu-se de garfo de prata
Atirou nas costas da escrava.

Agora, me pergunto, envergonhada:
- Como uma menina preta se desvencilha desta história?
- Como menina preta, orgulhosa do espelho, negligencia este enredo?
Menina preta, que não é preta,
mas é preta
Tem avó sinhá. E sinhá cruel, viu?

Mas tem bisa, filha de sinhá cruel, que vê além de cores
Como pode? Eu me pergunto!
Rupturas...
Mas tem bisa que é a própria genealogia de mim mesma
Bisa que cuida de escrava ferida, caída no tacho
Bisa Catarina, catarata, cega
Bisa que, quem sabe, um dia virará filha?
Bisa tirou criança escrava da morte
Curou feridas de escrava pela primeira vez
Para ir, vida afora, curando feridas de outras gentes
Só não sei, acho que sei, que nunca teve quem curasse as suas
A menina escrava, cheia de feridas,
virou amiga para o todo sempre
E foi a casa de cinco mulheres:
Catarina, Josefa, Adriana, Estelita, Benita
Todas brancas, menos Josefa

Havia ranço de escravidão nas mentalidades
Adriana mesmo casou com português rico
Foi trocada por negona amante,
Até o gajo ser deixado pelo taxista para Adriana recuidar
“Não foi ela quem ouviu até que morte os separe?
Agora cuide, então”, dizia a nêga.
Estelita casou com poeta, teve viuvez dura
Nunca se rendeu, mas na língua dizia com graça as filhas
-“Se casar com preto, não vou pentear cabelo de neta?”
Mas há outras coisas mais difíceis, do que desemaranhar cabelo rebelde
Há ódios, rejeições, ausências, mas duras, mais crespas.

Benita, casou, grávida e com preto de Maragogipe
Benita transgressora era neta da sinhá,
era irmã das irmãs, era filha da mãe, era filha da menina ferida
Sofreu também, fez escolhas estranhas para a mulher que ora sou
Mais foi forte como jamais soube ser
E me deu de presente um Araújo distante que nem me sinto
Só sinto quando ecooam em meus ouvidos
estas histórias que ela ajudou mesma a me contar.

A história que me sinto, pressinto, me revejo, antevejo
É Sacramento, toda Sacramento e mulher Sacramento
Sempre soube antes mesmo de saber
Sempre soube antes mesmo de cientificamente comprovar
É Umbelino, que eu vejo no espelho para espelhar quem sou
Sua risada, safadeza, humor, brincantices
Sua cachaça, sua dança, sua sensualidade
É no menino de história triste, órfão de mãe mais que cedo
Que vejo meus atos, meus dons, meus receios.

Foi por ele que atravessei a cidade,
Adentrei o Gabinete Português de Leitura
Para pesquisar o verbete “Sacramento”
No Dicionário das Famílias Brasileiras
E estava lá: era gente escrava, era gente do Recôncavo baiano
Era gente que nem eu, que um dia existiu e que um dia despareceu/rá

Foi ele que me deu pistas e que começou a me convencer de uma pretitude
Foi ele, sua cidade, suas celebrações
Que me deram as primeiras pistas.
Mas, não nego, meu nêgo, não foi só ele
Foi o imbricamento da graça e da crueldade
Do preto e do branco, do preto no branco
Quem me fez ser quem sou.
Não nego, esse ranço, esse banzo que é meu
Nem morta, nem nem, nem nada
Afirmo-o entrelugares, entre vazios
São eles quem sou
É neles que encontro meus fs
De festar, fartar, forjar, fuder e amar


São mais que eles, há um outro lado
Tão escondido, tão deslembrado, tão camuflado
De origem honrada, importante, européia, viu?
EU-RO-PÉ-I-A.
Mas tem cabelo duro e beiço grande na Espanha, tem?
Tem pele morena bem queimada de sol, na Espanha tem?
Mas essa já era uma história de um outro Moreno lado
Era do outro lado: uma ilha enorme. Ilha Grande.
Sobrenome lembrado: MO-RE-NO de Antônio
Sobrenome esquecido: DÓ-CIO de Maria
Seria uma questão de gênero ou de cor?
Das duas coisas, minha menina
Foi deste lado da ilha que me vi princesa
E desconfiei: se sou princesa, se sou preta, se sou gorda?
Se sou posso ser? Sim, se sou, posso ser, sim!

Moreno é espanhol, com certeza. Que orgulho, é espanhol!
Que alegria! Fui educada a crer exultante nesta herança
Ninguém contava com a minha plena desconfiança
E eu tentava que tentava ver que não via
E eu tentava que tentava esconder minha alegria
Porque a alegria vinha de outras certezas...
É espanhol? Com certeza?
Pesquisa que pesquisa, pergunta que pergunta,
“Menina, não tem o que fazer, não?”
É de mouro, minha preta, esta herança
Pele tão queimada como os trigais
Gente perseguida pela inquisição
Origem outra tão marginal como a de agora
Era judeu, convertido em cristão
Que comia carne de porco
Não por querer, mas para provar
Para provar que a fé se prova com a boca
Mesmo que boca sangre e cuspa escondida
A fé, ninguém sabia, se prova com a pulsação de dentro
Poucos ouvem este batuque. Que bom?

Mas os meus Morenos
São tão engraçados
Negam as fotos, mas não negam os laços
Como não conheci estes avós
Os paternos
Só posso dizer do que ouvi dos seus
Dos ecos deixados, lançado a outro
Criando a teia tênue inatingível
Mas visível e pulsante

Muitas denúncias, muitas pistas
Nunca vi costa de dendê ser terra de gente de oliva
Livro de pai me revela outras histórias
Conta, sem querer, de uma mãe morena
Que afagava como preta velha e orava com sinhá cristã
Uma mãe morena que discipinava com a freira enclausurada
Uma mãe bem morena que curava feridas de alma e do corpo com folha
Como a preta rezadeira dos longes da senzala
Conta, sem nem perceber, de uma gente escura
Que fazia brincantices iguais ao preto Sacramento
E eu me alegro por achar e me achar neles
E eu me alegro por ler (e revisar) este entrediscurso.

Desculpa, pai, mas aquela negona matrona na foto
É minha avó: a Maria que é Dócio e merece trocadilho
Desculpa, pai, mas ver aquela foto foi ato de re-ligare
Eis minha ancestralidade ali imortalizada no papel fosco.
E que tá nas nossas caras, nos nossos corpos
Nos nossos atos, na nossa fé.

Mas não posso negar
Que esse movimento que conto agora
Vem de um antes
Vem de um Nelson Maca provocador, insuportável
Agressivo, radical, verdadeiro
Que com sal e vidro rasgava a ferida já há muito aberta
Me levando a crê-ver que toda aquela desconfiança
Todo aquele sentimento de que estava num lugar não-meu
Me conduzia a palavras incômodas, desconhecidas, estrangeiras
NEGRO? N-E-G-R-A. PRETO? P-R-E-T-A? eu?!?!

Oxe, que maluquice. Que certeza. Que desconfiança...
Depois de achar em mim mesma a resposta
Preta, negra, branca, morena, MESTIÇA PRETA
Era ora de ouvir e imbricar a dura resposta outra
Era hora de ser acusada de oportunista, maluca, hiperbólica
Era hora de pensar tanto, gastar tanto tempo, ir fundo tanto, ampliar tanto
Era hora de ouvir o que não queria de quem mais amava
Era hora da verdade, botar a cara na rua,

Levar tapa de escutar e dar tapa de gritar:
“ Não vai mais alisar cabelo, não, é? Tá maluca?”
Vou, sim, quando quiser. Agora não quero. Sou mais bonita.
“ Você é negra aonde, menina? Tá mais pra Parmalat”
Sou negra onde eu mandar, onde eu achar que sou e pronto
“Agora, Luciana, inventou essa história que todo mundo é negro?”
E é o quê, então? Hein, Eva???
“Pior, menina, ela tá dizendo que tudo é racismo”
Nem tudo, mas muita coisa que a gente nem saca é e um dos mais filhadaputas
“Logo eu, minha Lu, que acho todo preto bom dançarino de samba e afoxé”
E de ciência, matemática, literatura, política, também né, não é ?
“Quê? Você é a favor das cotas?”
Toda a favor, até a última ponta
“Sabe o que é que estes pretos radicais querem? Transformar isso aqui nos EUA?”
Não era isso que todos vocês queriam? Tão reclamando de quê?
“Ah, mais você é socialmente branca!!!”
E essa foi fundo, marcou, feriu, magoou

Tanto esforço para ser e mudar sendo sempre
E vem uma puta dessas, com crachá do MNU,
buscando uma essência para me nomear? Ah, tá!
Eu só conto esta história
Porque só sei contar de mim
Pelos caminhos por que passei
Nem quem veio comigo sabe-os como eu os sei
Também não sei os dizer dos trajetos dos meus companheiros e companheiras

Mas depois de tanto suor, tanta lágrima
Tanto ter que duela com ser, tanto buscar-procurar
Vem uma filha da puta me chamar de Socialmente Branca?
Chuva de tempestade da Pancada mais que Grande de Tremembé
Tromba d’água assustadora, desestabilizadora
Onde sou? De onde sou? Nem cá nem lá me querem
Solidão... S-O-L-I-D-Ã-O

Depois, do pau viola, a aprendizagem, o respeito
Será que essa louca tá certa no pensar?
Esforço doido e doído de desestabilizar pensamentos
Os meus próprios, os mais difíceis
Ainda exaustivo, apesar de cada vez mais intenso
Cada vez mais tranqüilo e sem sustos
Vendo novas marcas e novas possibilidades
Certa da mudança para o sempre
Mas feliz e plena da trajetória já percorrida.
Conscientemente, levando uma única certeza:
Mudanças nunca a prazo, sempre a vista, ‘in cash’

Maluca? Socialmente Branca?
Socialmente branca, o caralho
Sou o que muito mais gente, do que não se vê na minha pele
E do que também se vê na minha pele, no meu corpo, no meu espírito, na minha alma
Construíram neste ser que ora soul.
No que agora Rebel Soul.
Sou tudo isso e ninguém, – N-I-N-G-U-É-M
Vai me reduzir, me marcar
Até porque quem tem que aceitar, esconder, acolher minha próprias marcas
Sou este eu aqui, uma mosaico plural e confuso, inacabado
Mais preto, com branco, com mouro, português.
Mais eu! Mais eu, muito mais eu!


*Textos repleto das marcas fundadas em mim por Marcelino Freire, Helena Parente Cunha, Elisa Lucinda, João Cabral de Melo Neto, Bob Marley, Carlos Drummond de Andrade. Qualquer verso parecido não é mera semelhança; é cópia reconhecida, orgulhosa e patenteada.

Mar Português, autoria de Ngunga

Mania de explicação (ou introdução para o poema): este poema nasceu numa disciplina que fiz, chamada de Literatura e Imaginário. Nesta o professor nos provocava a pensar o imaginário a partir de obras da Literatura de Portugal, Brasil,Moçambique e Angola. Neste delicioso caminhar, entre discussões, a turma ficou perplexa com o apego dos portugueses a um passado glorioso e a falta de reconhecimento em pleno século XXI das mazelas produzidas pelo colonialismo em países do continente africano como também aqui no Brasil. Então, sensibilizada pelo jovem aventureiro, criado pelo angolano Pepetela, escrevi um Mar Português como se o órfão pioneiro do MPLA o tivesse criado. É apenas uma brincadeira. Com todo respeito a pessoa de Pessoa e, mais que isso, com todo amor a obra deste português ilustre, peço licença para aportar num outro mar:

Óh, mar salgado, quanto do teu sal São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarem, quantas mães em América ou no Reino do Congo foram separadas do seus filhos, cometeram infanticídios e sequer puderam chorar!
Quantos filhos foram separados de seus pais, pela guerra e orfandade!
Quantos filhos foram escravizados, mortos, mutilados, silenciados!
Quantas noivas foram estupradas antes mesmos de desposada por seus próprios amores!
Para que fosses, ó mar de terras Lusitanas!

Valeu a pena?
Não se pode responder, não há mais como voltar
Via de mão única
Alma imensa que transborda híbrida de dores,
mas também de amores e de novos sentidos.

Quem quer passar além do Bojador, Chuí ou Gilbraltar
Tem que passar além da dor,
Buscando no espelho-mar
Outras, múltiplas, plurais faces
Perigosas, abismai faces,
Próprias do entrelugar
Que, inevitável, se constiuiu em nós livres colonizados

domingo, 2 de outubro de 2011

QUANDO SUA PIOR INIMIGA É SUA MELHOR AMIGA

Ela arrancou meus dois dentes da frente, só porque eu peguei uma camiseta dela sem avisar. Me trancava na cozinha, quando minha mãe saia para trabalhar, e junto a sua melhor amiga, me dizia com olhos ferozes: “entra no forno agora, vamos comer uma porquinha assada”. Eu chorona desde sempre, abria o berreiro e elas com ar de cordialidade, fingiam, retroceder: “Tá, tá bom. Não vamos assar você, vamos só cortar um dedinho e fritar”. E quando meus pais saiam à noite, era outro o sufoco. Minha casa sempre foi farta de fantasias, pois éramos as duas dançarinas, bailarinas, artistas. Casa e escola eram nossos palcos. Desempenhei papéis importantes como a Gota D’àgua e a russa (afro-nordestina, mas russa). E ela foi o Simbolismo. Olha que profundo!!! Só que havia uma fantasia de cigana que ela adorava, bem na época em que a novela Carmem fazia sucesso na TV Manchete. Então, era só o carro dos meus pais sumir do nosso portão para ela se ausentar da sala onde assistíamos TV. Voltava, vestida de cigana, com um coque e rosa no cabelo, batom bem vermelho na boca, saltos altos. Entrava bem séria na sala e eu, sempre besta, perguntava: “o que é, Isaura?”. Ao que ela respondia: “Não me chame de Isaura. Meu nome é Carmem”. E vivia o personagem, dançava, fazia os sons de castanholas com a boca e fingia estar possuída pela personagem. Isso, é claro, até ouvir o barulho do carro dos meus pais, se aproximando. Ai, ela saia, botava a camisola e retornava com carinha inocente.

Minha irmã! Era o que ela sempre fora: minha única irmã. Naquela época, ninguém falava em boulling nem violência infantil. Por outro lado, eu também tinha minhas artimanhas e vinganças. Minha arma fundamental sempre fora a pirraça. Arte em que sou praticamente uma PhD.

Éramos como gato e cachorro na infância, mas na adolescência por pressão paterna, fomos obrigadas a nos aproximar, pois uma só podia sair em companhia da outra. Lembro-me do dia, ou melhor, da madrugada, em que fui consolá-la de uma das inúmeras brigas com meu pai, por causa do primeiro namorado. Acho que foi ai que minha pior inimiga se tornou minha melhor amiga. Mas, apesar desta aproximação, jamais paramos de brigar feio, com palavrões, puxões de cabelos, tapas e ofensas graves. Ultimamente, por certa vergonha de nossos companheiros e da nossa faixa etária é que a violência física diminuiu, mas ainda temos a delicadeza de bater o telefone uma na cara da outra, de gritar uma com a outra.

Somos diferentes em tudo e é esta disparidade que nos completa e faz dela uma das mais importantes almas gêmeas de minha vida. Os amigos dela são sempre engomadinhos. Os meus são sempre amalucados. Eu nunca tenho muita paciência para ser cordial com os dela. Tem uns que nem me disponho a falar ou ser gentil. Já ela, no primeiro encontro se torna amiga de infância dos meus. Eu sou avoada, meio alternativa, do contra em quase tudo, silenciosa, introspectiva, um pouco rebelde e bastante egoísta. Ela é toda antenada, gosta do que é bom, sabe das coisas e gentes chiques, fala que nem a nega do leite, extremamente extrovertida, resolve os problemas de todo mundo, está sempre disponível e atenta para pensar no coletivo. Ela é muita católica. Sempre foi a garota propaganda dos grupos de jovens, dava palestras, sensibilizava os fieis, abraçava o ‘irmão’. E eu, sempre desconfiada de dogmas e verdades, me coçava só em ouvir falar de grupo de jovens, em Igreja, em religião. Odiava abraçar o ‘irmão’, cantar com as mãos pro alto. Apesar da fé que tenho, acho uma libertação (incomoda para alguns), dizer: “não tenho religião”.

Quando nos juntávamos para sonhar com o futuro, imaginávamos que eu ia morar na Aldeia Hippie de Arembepe e ela, no Horto, bairro nobre de Salvador. Eu teria cinco filhos, todos com nomes relativos a natureza ou África, algo do tipo, Lua Dandara ou Munanga das Águas. Ela teria apenas uma filha cujo nome seria Catarina Angélica de Albuquerque Figueroa. Os meninos iriam sujos, desgrenhados, sem pentear o cabelo passar férias com ela e voltariam limpos e passados a ferro. Já Catarina quando viesse toda engomadinha passar férias em minha casa, voltaria bem queimada de sol, com os cabelos trançados e diria: “Meu nome não é mais Catarina Angélica Albuquerque Figueroa, me chame de Nana Shara”. Nada disso aconteceu. Ainda... Mas quando inventávamos esse futuro tresloucado, ríamos muito e nos uníamos mais ainda em nossas diferenças.

Só muito depois que eu entendi que essa inimiga, na verdade tinha um imenso complexo de Felícia, aquela do Loney Tones que ama os bichinhos, mas de tantos cuidados quase os mata asfixiados. Depois é que entendi que toda aquela violência sufocante era um amor exagerado, de umas das pessoas que mais me ama na vida. Então a partir dessa compreensão pude compartilhar com ela dos meus momentos mais importantes e dos momentos mais importantes delas. Ela esteve comigo em cada concurso que fiz, em cada seleção, em cada defesa; organizou mais meu casamento do que eu mesma, comemorou cada vitória alcançada e chorou comigo em cada decepção, frustração ou percalço da vida. Eu também estive com ela em cada formatura, emprego, em cada relato das mazelas sociais seja de uma enfermaria de oncologia pediátrica seja de uma comunidade popular da região metropolitana de Salvador. Estive com ela no casamento, momento que chorei copiosamente, daquele modo nada contido que aprendi a chorar e também na noite que ela deu a vida ao menino solar e na manhã que ela deu a vida a menina lunar. Estive e sei que sempre estarei perto dela. Estamos coladas uma na outra para o sempre.

Talvez só possa entender essa complicada relação de amor quem tem duas mulheres irmãs dentro de casa. Talvez só quem tenha visto tanta calçola estirada no varal, tanto salto espalhado bela casa, possa entender essa difícil relação de duas mulheres. Mulheres, educadas para competirem uma com a outra, seja pelo amor dos pais, seja pelo lugar ao sol, mas que passam a descobrir ao longo da vida um amor fraterno tão intenso e inigualável, um amor tão vital que parece que há um cordão que me cola a ela eternamente. Talvez, não. Com certeza, essa inimiga me jogou nas maiores fogueiras, me impôs os piores desafios, mas ela também, sempre se converteu na amiga que curou as dores, trouxe os bálsamos e os aplicou nas mais fundas feridas. Essa inimiga-amiga foi a maior professora de vida que a existência me deu. Foi ela que me ensinou que há muitos caminhos e cumpriu a difícil tarefa de passar primeiro por muito deles; foi ela quem também quis fechar alguns caminhos com a vã intenção de me proteger; foi ela quem sempre cuidou de mim como se eu sua primeira e mais viva boneca fosse; foi ela quem descobriu tardiamente que eu era gente de carne e osso, não um frágil bibelô de louça, e portanto poderia ser jogada no mundo porque não quebraria fácil.

Foi com ela que eu me fiz o que sou e ela também pode dizer que a recíproca é verdadeira.Foi com ela que tal qual as irmãs Mercury, descobri minhas manias, fantasias e maluquices. Tudo isso sempre irmanada, protegida, amparada por este ser que de tão inimigo trasnformou-se em maninha, em cumadre, em amiga!!!

domingo, 21 de agosto de 2011

ÉRAMOS TÃO JOVENS, TÃO JOVENNNNNNSSSS

Eu nunca fui pequena, já nasci grandona e gordinha. Mas sempre fui a caçula das duas famílias Moreno e Sacramento. Então ai, já viu, sempre fui tratada como a pequeninha, princesinha, toda inhazinha. Acho que foi na minha família que descobri que princesa podia ter cabelo duro e ser gorda, mas essa é outra história.
Minha irmã mais velha que eu sofria como minha pequeninice, pois ela, como sempre pavio curto, não tinha paciência para as minhas maluquices e, principlamente, para as minhas pirraças. Então, sempre que ia revidar, tinha que , de quebra, ouvir o apelo de minha mãe: "Ela é tão pequeniniiiiiiinha". Eu adorava e, como toda criança, usava isso ao meu favor, me safando e indo aninhar-me com carinha inocente nos braços de D. Norma.

O problema é que não ficou por ai, como meu aniversário é no meio do ano, apesar de maior do que os colegas de sala, era sempre a mais nova. E hoje eu entendo perfeitamente a diáletica de João Pedro, meu sobrinho de três anos e meio, quando alguém pergunta se ele é grande ou pequeno, e ele responde: "Eu sou grande (e para um pouco, fazendo cara de quem está fazendo uma profunda reflexão e continua) e pequeno". Acho que é isso que sempre fui: grande, apesar de pequena.

Então, eu me acostumei e confesso:comecei a gostar muito de ser sempre a pequenininha, a jovenzinha. Um complexo de Peter Pan danado.Há vários episódios em que se deflagrava esta situação. Quando passei no Concurso do Estado para Educação Básica e fui assumir meu cargo de professora no Colégio Estadual de Portão, a diretora ficou entusiasmada ao me ver e disse para os quatro cantos: "olha, gente, é um bebezão". Achei engraçado, apesar da enorme vergonha.Depois, na minha primeira aula num cursinho pré-vestibular, ao entrar na sala e subir no tablado, os alunos, quase da minha idade, ficaram achando que eu estava de presepada, fazendo gozação com eles...Foi difícil convencê-los de que era eu mesmo a professora. Não foi diferente quando eu fui dar aula no Ensino Superior, mas as histórias eram, sem dúvida, menos divertidas.
O problema é que o tempo passa, o tempo voa, e tudo muda (até a poupança Bamerindus deixou de existir, dando provavlemnte lugar ao sorriso de um outro Banco mais rentável). Comigo não foi diferente, né??? O tempo passou e minha idade, meu corpo, meu ser foi mudando. Eu também não dei por esta mudança, como Cecília. Mas não percebi mesmo...

Até pouco tempo atrás... Em julho, fui para um show do Jota Quest. Amei!! Cantava todas as músicas, me joguei literalmente. Só que ai, o Rogério inventou de dizer que eram os 15 anos da banda, e apesar da festa, havia um tributo a Legião Urbana, por conta da passagem dos também 15 anos da morte do Renato Russo. Ai, velho, entram abruptamente no palco Marcelo Bonfá e Dado Villa-Lobos. Primeiro impacto: aqueles homens outrora jovens lindos já apareciam grisalhos e com pé de galinha ao redor dos olhos. Tive uma dor física, bem no coração (não é exagero) e ai soaram os acordes de Tempo Perdido: "todos os dias quando acordo, não tenho mais o tempo que passou". Velho, pense na Epifania!!! Eu cantando as músicas - acho que gritando e, como diria o Faustão: "passando um filme na minha cabeça". Enxergava cenas da escola, das festas, das angústias,de ouvir trocentas vezes uma fita cassete do Legião, trancada no meu quarto, de tentar decorar a letra todinha de Faroeste Caboclo.

Foi ai que eu comecei a suspeitar... Na verdade, eu acho que entendi: tenho 34 anos e ninguém mais se surpeende se entro ou saio de qualquer lugar, se dirijo carro ou trator. Já falam até que tô ficando velha para parir. E me sinto inapta para cantar: "somos tão jovens", porque acho que o verbo está no tempo errado. Meu conforto é ouvir: "mas temos muito tempo". Sei que agora já não tenho mais todo o tempo do mundo, apesar disso posso perder tempo, me dou este contraditório direito. Talvez tenha sempre sido assim!!! Eu é que não compreendia!!! Quando era mais jovem nem ligava para o tempo que insistia em escorrer pelos dedos, apesar de ter uma pressa eufórica enorme.

Hoje, sei que não adianta fugir, nem correr tresloucada: "temos nosso próprio tempo, temos nosso próprio tempo, temos nosso próprio tempo". É um mantra que me conduz ao espelho e me mostra esta jovem mulher em que me tornei. Por quanto tempo serei ela??? Só até daqui a pouco. Inevitável. Inevitável. Mas bonito como a própria vida!!!

segunda-feira, 13 de junho de 2011

POR AMOR A ANTÔNIO (e a outras gentes também)

Minha avó Benita morou no bairro Santo Antônio, além do Carmo. Bairro que ainda hoje acho lindíssimo e tenho uma vontade nostálgica de morar. Foi lá que ela conheceu meu avô Umbelino e sempre que passo por aquela pracinha fico inventando que foi lá também que eles enlaçaram suas mãos, passearam e deram o primeiro beijo. Certamente numa quermesse de Santo Antônio. É óbvio que ninguém me contou estas memórias adocicadas, mas as memórias imaginadas são minhas e eu dou a elas o sabor e cor que eu bem entender.

Meus avós (isso é fato acontecido mesmo) se casaram na Igreja de Santo Antônio da Barra. Coisa que muito me intriga, porque se eles moravam no bairro cuja igreja era dedicada ao insigne português, porque atravessaram Nazaré, Avenida Joana Angélica, Avenida Sete, Corredor da Vitória e desceram a Ladeira da Barra para casar??? Talvez (e isso é elucubração da minha mente inquieta) porque eles já tivessem se adiantado um pouquinho e comido o mel que envolve a lua.

A partir de então, a ligação de minha avó com Santo Antônio foi eterna, amorosa e de grande longevidade. Sempre ouvi dizer que minha avó Benita e sua irmã, minha tia-avó, Estelita eram devotas do Glorioso Taumaturgo e onde quer que estivessem sempre se aproximavam por força da fé de sua devoção. Minha tia avó Estelita, mulher de história de coragem, ousadia e tristeza, por exemplo, morou em Belo Horizonte num bairro cujo nome só podia ser Santo Antônio, é claro!!!

Daí, não foi difícil que a filha de Benita, Lúcia Sacramento, por ser uma pessoa de intensa graça e fé, continuasse a devoção ao santo casamenteiro. É óbvio que esta mulher (única pessoa cujo sobrenome é Sacramento de tez branca e cabelo loiro) incluía em suas trezenas toda sua alegria, capacidade de juntar gente e de fazer festa. Minha mãe, sua irmã, conta que minha tia Lúcia na época da trezena fazia competição de altares com suas amigas. Esmeravam-se para fazer o altar mais bonito e mais cheios de flores de papel crepom. No final, a junção de velas e papel sempre gerava um pequeno incêndio...

O tempo passou, minha avó se foi, minha tia Lúcia começou a rezar silenciosamente, mas sem jamais deixar de fazê-lo. Sobre minha tia Lúcia, ainda ressoa em meus ouvidos, a voz de meu avô, dizendo que eu, neguinha de cabelo duro, era muito parecida com minha loura tia, simplesmente porque sempre eu e ela fôramos inquietas, gaiatas e sapecas. Entretanto, quando ouço as artimanhas de meu avô e de minha tia Lúcia, sinto que nunca fiz um décimo do que eles fizeram, porque jamais tive a ousadia de sapecar na vida como eles sapecaram...O que importa é que nesse amor ensinado e aprendido por ela, foi que praticamente morei em sua casa (para estudar e também para puder ir e voltar de festas bem de madrugada). E nessa situação de inquilinato foi que na conversa e no olhar, aprendi estas histórias. Aprendi que ela rezava para o Santo Antônio. Aprendi que ela tem uma fé intensa e diz a boca pequena que ela tem uma ligação direta com o povo lá de cima, faz promessa pelos outros e, geralmente, é atendida. E então mais uma ponte se fez, porque eu não aprendi isso sozinha, aprendi acompanhada de Isaura, minha irmã e de Maria Alaíde, minha prima – filha de Lúcia. E foi daí que, no final da década de 90 (do século passado), pedimos para fazermos a trezena de Santo Antônio juntas e assim termos mais um aprendizado: conhecer a vida e a fé por um santo que merece todos os louvores que lhes são oferecidos. Muitos laços se fizeram. Sou comadre de Maria que é comadre de Isaura que é minha madrinha e comadre ao mesmo tempo. 

Para incrementar minha relação com o santo do mundo inteiro, meu avô paterno chamava-se Antônio. Quiseram-me muito um menino e caso assim viesse ao mundo, meu nome seria Antônio Egídio. Mas isso não aconteceu. Quer dizer, na verdade, aconteceu. Eu vim menina e me nomearam Luciana, para, segundo minha mãe, homenagear, a minha tia Lúcia. Ou seja, deu no mesmo: SANTO ANTÔNIO NA CABEÇA!!!

Rezo do primeiro dia de junho ao décimo terceiro em intenção ao Santo do Mundo Inteiro. E faço isso com o coração quente, repleta de uma enorme felicidade, tentando propagar a fé e devoção pelo Nosso Amável Padroeiro. A cada ano tenho aprendido um pouco mais sobre a vida deste menino português que se dedicou a fé intensamente e se sentiu vocacionado para a vida religiosa. Foi cônego agostiniano, depois se encantou com a ordem do pobrezinho de Assis, S. Francisco, e seguiu sua vida pregando a humildade, simplicidade e pobreza. Soube como ninguém entender aos desígnios de Deus. Foi à luta como soldado bravo e forte, mas a doença o barrou e soube fazer algo que é tão difícil para mim: resignar-se diante do inevitável. Apesar disso, jamais se deixou abater.

Curou-se das doenças do corpo, retornou a ordem com imensa humildade e apesar de seu vasto saber e instrução, não se furtou a lavar pratos e realizar serviços domésticos. Para mim, eis uma das mais belas lições do íntimo amigo do menino Deus, considerado pelo seu grande conhecimento religioso, como Doutor da Santa Igreja. O que me leva a pensar na minha realidade de professora universitária em pleno processo de doutoramento: será que eu ou algum de meus colegas doutores chegaríamos num lugar estranho e omitiríamos nosso vasto currículo? Será que não gritaríamos aos quatro ventos para dizer nossos inúmeros títulos? Não desembolarámos o vasto papiro de nossos Lattes??? Quais de nós diríamos apenas: “Sou Antônio, vim para servir onde quer que seja”??? Quais de nós pegaríamos a vassoura estendida pelo superior do convento e varreria o chão, sem vociferar competência, conhecimentos e especialidades??? Quais de nós??? Mas foi isso que Santo Antônio fez: não deu muito ousadia para o conhecimento do intelecto, privilegiou ao sentimento da alma e foi o homem que imitou os apóstolos, propagou a fé, batalhou contra toda sorte de falsidade, auxiliou os aflitos (assim diz sua ladainha).

E é pela história da minha família, especialmente de suas mulheres fortes, e sobretudo pela vida vivida pelo homem Antônio que me orgulho quando chega o dia treze de junho de cada ano. Me orgulho pela minha origem, pela minha devoção e por tudo que aprendi pela imbricamento dos saberes do meu povo com os saberes do meu santo. E faço coro com um Veloso ai, cantando em voz alta (apesar de desafinada): “o que seria de mim, meu Deus, sem a fé em Antônio?”.



quinta-feira, 26 de maio de 2011

VIVA A SIMPLICIDADE QUE NOS ENTERNECE!!!

ORAÇÃO (Léo Fressato)
Meu amor, essa é a última oração
Pra salvar seu coração
Coração não é tão simples quanto pensa
Nele cabe o que não cabe na despensa

Cabe o meu amor!
Cabem três vidas inteiras
Cabe uma penteadeira
Cabemos nós dois

Cabe até o meu amor
Essa é a última oração pra salvar seu coração
Coração não é tão simples quanto pensa
Nele cabe o que não cabe na despensa

Cabe o meu amor!
Cabem três vidas inteiras
Cabe uma penteadeira
Cabe essa oração

ASSISTM AO CLIP DA BANDA MAIS BONITA DA CIDADE!!!
http://www.youtube.com/watch?v=QW0i1U4u0KE

sexta-feira, 20 de maio de 2011

ASSUNTO PROIBIDO

Religião virou assunto proibido. Geralmente quem se interessa a falar sobre a questão revela posturas intolerantes e preconceituosas, até porque sempre estão implicadas com alguma religião específica. De um lado, lembro-me quantos e-mails e scraps recebi na campanha de Dilma, de evangélicos dizendo que a mulher tinha parte com o demo. Atualmente, tenho recebido dos mesmos evangélicos homéricas moções de repúdio em torno da última conquista da sociedade brasileira – a união estável entre casais do mesmo sexo. De outro lado, ao ser madrinha de um casamento evangélico de uma amiga, meus outros amigos não-evangélicos me assustaram dizendo que iam gritar no meu ouvido, bater na minha cabeça e me obrigar a ser obreira. Parece engraçado, mas não é!
Isso para mim talvez se agrave mais, porque atualmente vivo entre duas divergências. Em um lugar por que transito se você não é do axé nem coloca despacho em encruzilhada, você é praticamente um ser desprezível. Em outro local por onde também transito qualquer pirimrimpompom é coisa do Demo. E ai, entre os (neo)pentencostais de carteirinha que pagam dízimo, andam com a Bíblia debaixo do braço, recitam capítulo, versículo e os que professam as religiões de matriz africana que sabem de um tudo sobre história do Brasil e da África, Direito, Antropologia, Sociologia, estou eu cheia de crenças, apesar de descrente e ressabiada com tudo. O pior é que de um lado ou de outro, parece que todos viram a luz. Menos eu!!!
E este cenário nefasto não se assemelha nem de longe a uma das minhas mais belas memórias de infância. De família catolícissima (meu pai é ministro da eucaristia e da palavra e minha mãe é ministra da eucaristia), morei por muito tempo num sítio com muitas árvores, cheias de flores e frutas. No loteamento, onde vivíamos havia três Terreiros de Candomblés. E lembro-me de em tempos de festa do povo de santo, muitos pais, mães e filhos do axé, circulando no meu quintal para pegar folhas, frutas e flores. Jamais ouvi de qualquer parente meu um comentário de segregação, maldade ou preconceito. Jamais.
Hoje parece que vivemos numa era em que todas as verdades são ditas acirradamente. E de todas os lados prega-se um respeito, uma tolerância que ninguém cumpre de verdade. Ou pelos menos exigem que apenas os outros cumpram. Mas pêra lá. Não sou ateia. Deus me livre! Sou agnóstica, mas ateia não. Nem pensar!Não tenho religião, mas tenho uma enorme religiosidade.Ah, e sou cristã! Ave Maria, Jesus!!! Misericórdia!!! Jesus é tudo e Santo Antônio é a quem eu recorro quando eu preciso que o “fraco torne-se forte; o doente torne-se são”.

Nunca confiei naquela máxima que religião, política e futebol são assuntos proibidos. Dizer o que penso com segurança e incisivamente, não é nem de longe uma tentativa de convencer o outro a pensar como eu. É apenas, ao meu ver, uma necessidade humana de aproximação. Conhecer as razões, loucuras, crenças do outro é uma oportunidade de me reconhecer ou desconhecer no outro. É um intenso exercício de auto-conhecimento. Por isso, queria muito parir num mundo onde as pessoas fossem o que são e nós gostassemos de sabê-las do jeitinho que elas são e quiçá que nós admirássemos a imensa diferença entre elas e nós.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

ENTÃO É NATAL?!?!?!

Mais outra maluquice. Em pleno maio, comecei a pensar no Natal. Vê se pode? É porque nunca na história de anos passados, houve uma comemoração atrás da outra, como neste 2011. Páscoa, colada com dia das mães, um monte de outdoor de São João. Daqui a pouco é Natal, mesmo!

E como minha cabecinha não pára de pensar, já fui ficando incomodada com a rapidez do passar do tempo, com o consumismo desenfreado. Ô cabeça que não pára. Fiquei viajando (e sofrendo um pouco, é claro) com certa loucura que ocorre em todo dezembro (quiçá em toda brecha de tempo que a indústria encontra para vender). Todos criticam o comprar, comprar, mas também participam. Dentre este todo mundo é óbvio que eu me incluo até o último fio de cabelo. Já no final de novembro, faço listas de presentes e presenteados, vou ao comércio inúmeras vezes para comprar os presentes, gasto mais de 30 horas neste empreendimento. Compro embalagens, durex e fitilhos. Gasto em média... Deixa para lá. Nem eu mesma sei. E nem teria coragem de revelar mesmo.

Nessa fúria louca de comprar, comprar, embalar, embalar, fico a pensar no espírito que move/origina todos estes eventos... Como uma boa menina cristã e educada pelos dogmas católicos, apesar de ir com a multidão, algo fica martelando em minha cabeça: por que me envolvo de forma ensandecida nesta onda? Sei da superficialidade disso, sei que muitos dos presentes que compro são só para cumprir um papel, critico o consumismo excessivo, discuto a linha tênue entre amor, amizade e hipocrisia. Em suma, sou uma das chatas do politicamente correto.

Nessas viagens para responder a tal provocação desnecessária, mas insistente, lembrei dos natais que tive e talvez esteja aí a descoberta da pólvora. As coisas que lembrei estão nítidas na minha memória afetiva, mas eu nem mesma sei se elas de fato aconteceram ou se fazem parte daquilo que na memória é misto de realidade e invenção. Não tenho como as comprovar. Talvez compartilhá-las seja uma forma de ouvir alguém dizer: “foi mesmo, eu também me lembro”. E essas testemunhas oculares dessas minhas histórias de natal sejam as provas daquilo que vivi. Ou não, sei lá. O que importa?

Jamais me esquecerei, por exemplo, da vez em que meu pai muito seriamente nos disse, a mim e a Zau, que não teríamos presentes de Natal. Fiquei triste, pois o peso de ser uma boa menina foi sempre um fardo que tive de carregar, sendo assim não havia razão para tal decisão extremista. Depois, veio a explicação, iríamos a alguma loja de atacado de brinquedos, acho que era A.Gomes, compraríamos muitos presentes para meninos e meninas das nossas idades, e no dia da confraternização da enorme indústria da qual meu pai era dono (foi nisso em que sempre acreditei, é óbvio que não era verdade, mas também não era mentira – coisas da memória), eu e Zau daríamos aqueles presentes a cada funcionário para eles entregarem aos seus filhos. Me lembro de pegar cada presente e entregá-los. Me senti tão feliz, tão maravilhosa e importante, me senti uma pertencente verdadeira desta coisa imensa que chamam de humanidade. E não me venham provocar com aquela história de assistencialismo nem caridade. Eu era a menina com a mão extendida para o outro e um presente na mão. E como disse Clarice, hoje descubro que sou e sempre serei esta mesma menina de presente na mão e olhar fixo na mão do outro que se aproxima da minha. Que bom!
Não há como esquecer também dos Natais na casa de minha vó Benita em Lauro de Freitas. Ganhava tantos presentes. Minha família nunca foi rica. Éramos de uma classe média bem média, sempre labutando muito para não descer de padrão. Coisa bem brasileira. E os presentes eram vários, mas jamais os caríssimos jogos super-mega-master-plus-hi-tech.A casa era tão linda, tão cheia de gente. Meu avô estava lá para animar tudo, para receber as pessoas e fazer com que nós acreditássemos que aquilo era o mundo inteiro. Eu lembro da cor vermelha emanando de todas as coisas, lembro de um presépio colorido que ficava armado na enorme estantes da sala e lembro da areia que colocávamos no lugar onde ficaria o presépio. É impossível esquecer do algodão da árvore de natal, certamente para dar um ar mais europeu, já que meu avô Umbelino como todos sabem era sueco (de pais negros e de Maragogipe, mas era sueco).

Natais como aqueles nunca mais senti. Em um Natal, recebi de meu avô, uma caixa enorme com fantoches maravilhosos de todos os personagens da história de chapeuzinho vermelho. Não era um brinquedo, era um convite a fantasia, a criação, a contação de histórias. Talvez por isso, eu ame tanto as palavras, estude-as com a minha alma e adore conta-las. Inesquecível também uma boneca bebê japonesa (olhinhos puxados e tudo) que Zau ganhou. Eu que falo tanto em diversidade, em respeito as múltiplas identidades, jamais vi uma boneca japonesa para presentear aos meus trocentos sobrinhos. Como será quando nascer um bebê Fugiwara, onde mesmo acharei tal presente? Onde é que eles arrumavam estes brinquedos? Eram coisas tão magníficas, tão ímpares. Onde estão estes brinquedos? Se eles não vendem mais, será que eles existiram um dia?

Depois, vi inúmeras vezes minha avó, minha mãe e minha tia Lúcia fazendo as listas de presentes. Nelas estavam as pessoas muito amadas, as queridas e as nem tanto. Elas iam juntas a velha e boa Avenida Sete comprar os presentes. Passavam o dia inteiro na rua, nos levavam, riam muito, se divertiam, brigavam também, sempre se perdiam uma da outra, usavam aqueles instantes para celebrar o amor que tinham umas pelas outras. Depois era a casa cheia de presente. E isso, era mais magia para os meus olhos, pois uma casa farta e cheia de presentes é tudo que uma criança quer. Júlia e João o Pedro que o digam.

O próximo movimento é embalar e levar os presentes. Por muitos anos, minha mãe fez e faz uma peregrinação para a entrega dos presentes. E na lista estão desde dona Anita, ex-servente do Colégio Kleber Pacheco, até a secretaria de Bem estar Social da prefeitura de Lauro de Freitas. Para minha mãe, mais do que entregar o presente ao presenteado; é a hora de se sentar no quintal da casa de d. Anita e falar sobre o tempo (de outrora, de agora e de sempre).

Há alguns anos, veio o primeiro emprego e aí tive uma vontade imensa de fazer a primeira lista. Nela havia somente sete nomes: GUIDO, NORMA, ZAU, LÚCIA, SUELI, SANCI, CARMINHA. Depois a família aumentou, chegaram muitos novos amores e a lista também cresceu. Então acho que é por tudo isso. Creio que a resposta para essa fúria desenfreada na qual me insiro seja uma enorme vontade de retribuir às pessoas que me proporcionaram essas memórias novas histórias para contar. Desejo mesmo que em cada presente esteja o meu amor e o meu agradecimento por todas essas historinhas, sejam elas inventadas ou acontecidas.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Luciana, Paulo Victor e Damião: um encontro irreverente!

Dia do trabalho. Mil reflexões, tantas reflexões que acho que nem vou saber colocá-las aqui.Um monte de viagem maluca que só de pensar nelas me dá uma enorme vontade de rir. É porque eu sou assim mesmo: para chegar no sentido, dou uma volta imensa e acabo me perdendo no meio do caminho. Quando volto e chego ao ponto de partida, nem sei mais do que estava falando. A propósito, de que mesmo eu falava???

Ah, claro!!! O Trabalho! Sempre fui leitora de contos de fadas e fábulas. Amo-os, adoro-os. Acho-os tão amplos, plenos, definitivos. Penso sobretudo que desvelam algo estupendo escondido em sua aparente ingenuidade e infantilidade. Por isso, nunca me conformei com a Fábula da Cigarra e da Formiga, recontada por La Fontaine. Qd. a formiga, via a cigarra tiritando de frio e respondia: "Cantavas, pois agora dança" e batia a porta na cara da cantora vagabunda, eu pensava: "Filha da puta, desta formiga! Que nigrinha, kd a compaixão desta vadia???" Ao passar do tempo, fui lendo as atualizações da fábula e vi que a formiga passava de cruel, a solidária e depois tornava-se a operária explorada. E isso tinha a ver com os sentidos construídos para o Trabalho na História da Humanidade.

Por muito tempo, o trabalho foi compreendido como algo menor, até porque o grande lance era não trabalhar. Trabalho era coisa de escravo, os nobres ficavam naquele ócio totalmente improdutivo, sendo servidos e isso era o melhor e mais correto. A escravidão, por exemplo, foi justificada como um favor que se fazia aos escravizados que estavam naquela situação, afirmava a Igreja para expurgar os pecados. Com as mudanças radicais impostas pelo advento de uma sociedade capitalista, a sociedade se transformou na sociedade do trabalho e a ordem também se inverteu. É desta época a versão de La Fontaine para a fábula da Cigarra e da Formiga, em que o autor francês supervaloriza o trabalho, em detrimento da arte e do lazer, considerados como atos de loucura, inconseqüência e irresponsabilidade. Assim, não é mais o trabalhador o inferiorizado e sim o vagabundo. É tb neste período que a humanidade começa a dizer: “é o trabalho que dignifica o homem” ou “tempo (de trabalho) é dinheiro”. Traduzindo quanto mais trabalha mais digno e rico, você se torna.

Hoje, o trabalho continua sendo bastante valorizado. Há mais gente viciada em trabalho do que vagabundos. E estes últimos são odiados e discriminados, sim, ainda! Entretanto, a cigarra/artista se profissionalizou. Em sua versão pós-moderna a chamaremos de Ivete Sangalo ou até Carla Perez. E elas tem dado na cara de muitos médicos, industriários e advogados com seus vultosos mega-salários, que pagam desde bolsas da Louis Vitton a mega mansões em qualquer Condomínio Super-luxuoso deste país. Assim, não é a nossa sociedade que mudou e passou a respeitar as pessoas que cantam enquanto os outros “trabalham”; é o cantar que foi se profissionalizado e se transformando em trabalho (não no seu sentido antropológico, mas no seu sentido capitalista mesmo).

E eu cá do meu cantinho fui educada pela escola e pela família, principalmente a trabalhar e sentir orgulho disso. E confesso, encho minha boca para dizer, que mesmo sem precisar, dou aula desde os 14 anos, e de lá para cá nunca fiquei sem trabalho ou emprego. Me formei aos 21 anos e, por dez anos da minha vida, tive, ao mesmo tempo, de cinco a dois empregos. O ano de 2009, foi o primeiro ano (em 18 anos de trabalho) que trabalhei em apenas um lugar. Bem, mas como este lugar é a UNEB e acumulei os trabalhos de professora, coordenadora e estudante, continuei na vibe de alucinação total, trabalhando intensa e malucamente.

Por isso, para mim trabalho é sim parte essencial da minha vida. Amo o meu trabalho de verdade, tenho paulatinamente conquistado minhas metas, sonhos, desejos a partir do meu trabalho e acredito que o meu fazer no mundo (remuneradamente) tem uma importância singular na minha vida, na vida das pessoas que são atingidas pelo que faço e no tempo e lugar onde atuo. O meu trabalho definitivamente me realiza.

Entretanto, (e sempre há tantos entretantos), muitas coisas tem me feito repensar na noção de trabalho. A primeira é o conflito de escolher uma profissão, vivido atualmente por Paulo Victor (meu filho-enteado). Para quem não o conhece é um gatinho de 18 anos, malhado, que ama futebol (inclusive achávamos que seria jogador de futebol), adora esportes, é pagodeiro. Como sua geração, tem posturas individualistas e gosta de consumir. Entretanto, escondido nesta aparente superficialidade, é alguém que se interessa pelas coisas do gueto e do mundo, se preocupa com questões sociais, questiona muitas coisas, é solidário com os amigos (ele tem muitos e diversos amigos), sabe dialogar com as pessoas e tem um poder de sedução interessante, porque sabe conquistar a todos (até a uma madrasta má). É o autêntico Gato de Botas do filme Sherek (e digo isso como um elogio). Esperto que só ele! A questão é que PV surpreendeu a mim e ao pai, quando se demonstrou maduro ao dizer: “Eu não quero o que vocês estão dizendo que eu quero. É verdade que não sei o que quero, mas sei o que não quero”. Confesso que tive medo!!! Pensei: “esse menino, meu Deus, convivendo com um pai viciado em trabalho vai ser vagabundo?!?!?!”. Mas depois, fiquei orgulhosa: “esse menino está virando um homem e eu tô é ficando velha e ainda nem pari”. Por um lado, bombardeio ele de informações, faço pressão, mas por outro, acho que ele está no caminho certo: trabalho é importante, entretanto tem que ser a profissão que a gente quer, precisa e deseja. Tem que ser algo que dê dinheiro e prazer. Tem que ser algo que nos realize. E cobrar isso de forma tão instantânea de menino-homem de 18 anos é algo minimamente escroto, mas urgente e necessário.

A outra coisa é que depois de 18 anos de trabalho (que engraçado a idade de PV) estou afastada do meu trabalho por quatro anos para estudar. E a primeira coisa que fiz foi construir um cronograma com horários de leitura, escrita e o diabo a quatro. Acho engraçado, porque mostra o quanto estou presa a esta dinâmica do trabalho. E PV (acho que vou dedicar este texto a ele) para me sacanear, a toda hora repete uma gracinha bem assim: “e ai, fofi, como é ficar de prega o dia todo?”. Ô, que descarado!!! Ao que eu repondo: “estou produzindo conhecimento para este país, cabeção. Minha profissão é pensar e divulgar pensamentos.” HAHAHAHA!!! Acredito nisso mesmo, mas descobri até em mim este preconceitos com a aparente falta de trabalho. Talvez o grande movimento agora deva ser colocar algumas horas de contemplar ao meu cronograma.

Para botar um ponto final nesta prosa, hoje de manhã pesquisando na internet sobre a cidade de Lauro de Freitas – meu lócus da pesquisa – descobri que o único filho ilustre da cidade, referenciado pela Wikipédia é um cantor, considerado um dos músicos mais incompreensíveis da música brasileira, chamado Daminhão Experiência. Um cara geralmente associado com um vagabundo (dizem que inclusive a pessoas na rua pensam que ele é mendigo). Entenderam? O caro mais célebre da cidade onde moro por 27 anos é nada mais nada menos do que uma cigarra, um vagabundo. A ironia é que não é Leão nem Moema, nem qualquer trabalhador o filho ilustre. É o cantor-mendigo. Que lição bacana para nós as efêmeras formigas.
PS: amigos historiadores, antropólogos e sociólogos, se houver erros conceituais no meu texto, apontem-nos para eu consertar.

domingo, 24 de abril de 2011

Minha pequena Miss Sunshine

Segundo os médicos, Mariana chegaria no dia dezenove de abril, uma terça-feira, às 11h da manhã. E para isso, todos nós nos preparamos. A mãe deveria ir ao salão na segunda, fazer unha e cabelo e , principalmente, fazer jejum. De manhã, tomaríamos café com Paulo para comemorarmos o aniversário dele e depois devotaríamos o dia a espera de Mariana. Mas Mariana não quis esperar. Depois de um longo domingo de orgias alimentares, em plena madrugada, mais precisamente, às quatro da manhã, Zau nos liga para informar que a bolsa tinha partido, que ela já ligara para o médico e já estava a caminho do hospital. Eu cá, só fiz me arrumar e tomar o mesmo rumo: a maternidade.

Zau e Gustavo já estavam no centro obstétrico quando chegamos eu, meu pai e minha mãe, e ficamos do lado de cá da janela, vendo por mais uma vez o milagre da vida irromper. Foi tudo tão rápido e cheio de lágrimas. A emoção era mais uma vez imensa, transbordante, intensa. Meu Deus, que menina linda e saudável. E mais lágrimas e risos brotavam. Tome-lhe fotos, filmagens e ligações. Acho que acordamos a Bahia inteira depois das seis e seis da manhã daquela segunda-feira, 18 de abril, com mensagens, telemensagens, scraps, e-mails.

Por algumas horas, fiquei me sentindo plena e vazia, ao mesmo tempo. Por um lado, Mariana era mais uma das minhas a chegar ao mundo e ajudar a escrever uma história que é Moreno; é Sacramento, é Carvalho, é tanta gente. Por outro lado, entretanto, e bem ao meu modo maluco de ser, comecei a pensar porque estávamos tão radiantes. Mariana, uma princesa rosada de negros cabelos, estava chegando a um mundo muito complicado. Do quente e confortável útero materno, vinha de cara para uma sala fria cheia de gente estranha, carregando estranhos instrumentos cirúrgicos. Seria vasculhada de cima para baixo, limpariam a sua pele, enfiariam tubos em todos os seus buracos. Além disso, a partir dali só encontraria novos desafios. Teria de aprender desde os sons mais simples a contas de multiplicar, dividir.

Puxa, era tanta alegria ver mais uma menina chegar ao mundo, mas também eram tantas incertezas, tantas novas e essenciais aprendizagens. Valeria a pena tanto esforço? Essa reflexão me acompanhou por alguns dias, até que finalmente consegui assistir (até o fim) ao filme Pequena Miss Sunshine e encontrei a resposta.
No filme, a família pareceu para mim o símbolo de tudo que é ruim: o pai que supervaloriza a competição e o vencer sempre; o irmão atrelado a extrema solidão para chegar onde quer, o avô tem um quê de rebeldia, mas alimenta-se de ilusões e oferece as a neta de forma cruel e oportunista, o tio é um suicida, a mãe tenta enganar-se, forjando não enxergar a catástrofe que é a sua própria família. Olive, a candidata a pequena Miss Sunshine, é o único sopro de vida que aparece naquele lar, tem autoestima, bom-humor, crê nas pessoas (por mais improvável que elas sejam). É por ela que todos estes desastrosos seres se reunirão e empreenderão uma longa e complicada viagem numa velha Kombi para chegar ao concurso. Olive, durante todo o percurso, acredita piamente que todo aquele esforço valerá a pena.

Eu é que como espectadora desconfiava e questionava: a menina é engraçada, mas não tem nem de longe a beleza perfeita requerida obsessivamente nestes concursos de beleza infantil americana. Olive é desengonçada, está mais para uma artista circense do que para uma leve bailarina. Para piorar o quadro é bem gordinha e usa óculos. O tempo todo me perguntava se a família dela não enxergava a total improbabilidade da vitória. No filme, eles só caem em si, da imensa roubada e da desnecessária exposição a qual Olive estava se colocando quando a menina já está nos bastidores pronta para entrar no palco. É claro que antes ela já havia percebido o quão diferente ela é de todas aquelas belíssimas garotas, super-talentosas.

O mais brilhante do filme é que contra tudo e contra todos, Olive vai ao palco e se entrega inteiramente. É claro que não agrada, a coreografia é ousada demais para o modelo de concurso, mas ela está visivelmente feliz e certa de que fez a melhor coisa. Entendem? Olive não é ingênua, ela sabe da total improbabilidade da vitória, todavia a garota nos faz ver que para ela a viagem conturbada, a participação e união da família eram de fato o que contava. É um clichê, mas Olive sinceramente não queria o louro da vitória, ela queria era viver, ela queria fazer a viagem, treinar a coreografia, rir, sofrer, aprender e finalmente subir no palco. Ela queria apenas subir no palco e dançar como disse Chacal até o sapato pedir pra parar. E Olive fez o mesmo que anunciou o poeta: parou, tirou o sapato e dançou o resto da vida.

Eis a resposta. Não há o que temer. A gente se encanta quando as Marianas chegam ao mundo, porque elas são uma pista de que tudo vai começar sempre e de que, pode haver morte, competição, oportunismo, solidão, ilusão. Pode haver tudo isso. Pode sim, sabe por quê? Porque sempre existirão verdadeiras misses que mesmo sem a roupa da moda ou sem se encaixar no padrão, se jogarão na vida e beberão tudo que estiver em seu cálice até a útlima gota. Por que o melhor da vida é viver. O melhor da vida é experimentar.
E é por isso que intensamente damos as boas-vindas a Mariana, minha pequena Miss Sunshine, porque a vida é o trajeto, a vida é o palco, a vida é o percurso e essa sim é a parte que vale cada gota de nosso sangue, cada suor de nosso rosto, cada lágrima derramada.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

PROMESSAS...

A partir de hoje, decreto e declaro para os devidos fins e para quem interessar possa que não pretendo mais:
- Dormir para passar o tempo;
- Sorrir para não ser excluída;
- Fingir que ouve, balançando a cabeça daquilo com que discorda;
- Concordar para ser aceito;
- Engolir o choro quando a lágrima brota de todos os póros;
- Ler o que dizem que é bom, mas não tem nenhuma motivação utilitária ou prazerosa para mim;
- Ajudar a quem explicitamente precisa de um sonoro NÃO;
- Ser indelicado quando for desnecessário;
- Ser delicado e cortês quando for somente por fazer parte da obrigação;
- Controlar o que é instintivo, intuitivo e louco;
- Comer doces para saciar outras fomes;
- Prometer para mim mesma o que não preciso cumprir;
- Descumprir o que é urgente realizar;
- Amar ansiosa pela sintonia e aceite do outro;
- Realizar qualquer coisa almejando a coroa de louros ao final;

-Esquecer minha condição suprema, inegável de centauro, esfinge ou qualquer coisa híbrida que exista no mundo!!!

RISOS!!! ESSA FAZ JUS AO BLOG!!! QUE MALUQUICE!!!!

A LITERATURA: UM FIO DE ARIADNE NO LABIRINTO DO ENSINO NESTE LIMIAR DE MILÊNIO?

Há um texto de Nely Novaes Colho, em que a autora nos questiona se a literatura seria o fio de Ariadne em seu uso nas práticas pedagógicas neste conturbado início de século XXI. Confesso ter sido futucada por esta questão. Por razões inúmeras: sou professora, amo ler literatura e sou um ser vivente destes tempos. Li e reli o texto de Coelho, li e reli o mito de Ariadne e viajei. Ou melhor respondi com um taxativo SIM!

A literatura pode, sem sombra de dúvidas, ser um fio de Ariadne nas práticas educacionais do século XXI. As razões são inúmeras. Não só pelo fio, mas por todo o tecido. Trocando em miúdos: para mim o fato da literatura ser o próprio fio de Ariadne, ou melhor, o condutor de um movimento de transformação, é um dos principais argumentos que fundamentam minha resposta afirmativa. Porém com base no mito, também outras relações são percebidas, para confirmar a possibilidade da leitura do texto literário na escola ser um espaço privilegiado de ressignificação do nosso tempo, quiçá da nossa existência.

Primeiro o mito nos conta sobre o herói Teseu. Um aventureiro! Um homem que quer desbravar, descobrir, solucionar, resolver um problema de seu tempo: a existência de um monstro terrível, chamado Minotauro que vivia encerrado num labirinto construído por Dédalo e a cada ano se alimentava de sete rapazes e sete moças, escolhidos mediante sorteio, como castigo por causa de contenda com o rei Minos. É neste momento que encontramos o primeiro aspecto, o ato da leitura literária em si consiste um desafio; implica um jogo em que a coragem é imperativa, pois muitos obstáculos se materializam neste processo seja para compreender as tramas em que o texto se desenrola, seja para descobrir os seus sentidos, seja para aceitar a possibilidade da existência daquela perspectiva. O texto literário exige de seus leitores a coragem de Teseu e o interesse do herói-leitor para solucionar problemas individuais ou coletivos, de um tempo ou de um lugar.

Outra convergência do mito com o ato de leitura literária é a própria Ariadne que além de corajosa e apaixonada; é uma estrategista nata. É ela quem, por amor, torna possível a vitória de Teseu, ao ter a idéia do fio e da espada. A leitura requer um movimento; exige intensidade, entrega; pede encarecidamente ao leitor certa devoção. A isto, chamamos de Paixão. Além disso, ler necessita de ações inteligentes e perspicazes que delinearão a maneira do leitor chegar a uma compreensão ampla do sentido construído pelo autor e presente no texto. Para ler é preciso construir estratégias; é preciso imaginar as diversas maneiras possíveis para matar Minotauros, colocá-las em prática e avaliar se seu resultado foi satisfatório ou não. Caso haja sucesso, é preciso seguir em frente, passar a outras leituras. Caso haja insucesso é preciso rever as estratégias e construir novas.

Quem disse que a leitura de literatura tem a ver com bons modos? A estratégia de Ariadne foi exitosa. O Minotauro foi morto por Teseu e assim dois problemas foram resolvidos: o da cidade e o de Ariadne. O da cidade porque o Minotauro já estava deixando a vida dos atenienses muito estressantes. Rapazes e moças já deviam estar depressivos, pensando se seriam as próximas refeições do monstro. O de Ariadne porque ela impõe ao herói uma troca: os louros da vitória por noites de amor calorosas. Mal sabia ela que o amor possui artimanhas e é dono de suas próprias vontades. O que importa é que Ariadne não era uma altruísta. Tudo que ela fez foi para satisfazer aos seus próprios desejos. Com a literatura também é assim, lemos a palavra e o mundo, porque desvendar estes mistérios é condição sine qua non para viver com plenitude.

Bem, depois de todos os esforços e do começo de um final feliz, sabemos que Teseu parte de Creta, levando consigo a bela moça para posteriormente abandoná-la na Ilha de Naxos, retornando sozinho a sua terra natal. E aqui, mais uma vez, entra a leitura literária. Sem dúvida, ratifico que ela é uma forma de ampliar mundos, desvendar mistérios, matar monstros, sobretudo aqueles que estão dentro de nós. Entretanto, pode também, ao solucionar um problema, inventar outros. Até maiores. E por incrível que pareça, eis um aspecto bastante positivo, porque a leitura de literatura nos tira de uma zona de conforto e nos impõe tomada de decisões. O labirinto é uma excelente metáfora para compreendermos que ler literatura nos tira do lugar da passividade. Ao nos mostrar um universo próximo, distante, conhecido, desconhecido, real, surreal ou irreal, ela nos coloca em ação. A literatura, assim como o labirinto do rei Minos, é repleta de corredores, curvas, caminhos e encruzilhadas, onde é possível se perder para se achar ou, até mesmo, para jamais encontrar saídas.

Para finalizar as minhas aproximações entre mito e leitura de literatura, trago o fio que Ariadne entrega a Teseu para ingressar no labirinto e conseguir retornar dele vitorioso. Este para mim é o principal argumento que fundamenta minha resposta. O fio é uma analogia para a própria literatura, porque ela possibilita ao indivíduo conhecer o desconhecido, aventurar-se em mundos distantes e perigosos. Ou mais vulgarmente, ao mesmo tempo, que nos tira dos nossos mundos tão cômodos e de trajetórias tão conhecidas, ela não nos faz nos perdermos a esmo. É certo que acaba nos levando a lugares confusos, nos impondo mistérios, nos obrigando a lidar com monstros reais ou imaginários e a vencê-los. Entretanto a mesma literatura que nos dá o labirinto, também nos dá o fio e este fio nos faz regressar destes mundos tão diferentes dos nossos, nos trazendo de volta a nossos lares. Todavia, não somos mais ingênuos, apesar de conseguirmos retornar a nossa vida anterior tão certa e tão nossa, ela já não é mais a mesma depois que trilhamos o labirinto e vencemos o Minotauro.

Ao finalizar minha extensa resposta, busquei a de Nelly Novaes Coelho e percebi que, apesar da resposta também afirmativa, a argumentação dela é bem diferente da minha. Entretanto, não se configura, no meu entender, uma divergência. Como vivemos num momento de caos, ou seja, momento que há uma potência transformadora e de comportamento imprevisível na nossa sociedade, precisamos construir uma nova ótica, sobretudo nos espaços educacionais. Para a autora, a literatura é uma complexo exercício de vida que se realiza com e na linguagem, por isso pode congregar os diversos componentes constituintes do currículo escolar, se colocando como eixo organizador de determinadas unidades de estudo e, consequentemente, da vida das sociedades contemporâneas. Nos dizeres de Coelho (2000), a literatura é “uma espécie de ‘fio de Ariadne’ que poderia indicar caminhos não para sairmos do labirinto, mas para conseguirmos transformá-lo em ‘vias comunicantes’ que a concepção de mundo atual exige”.

Coelho ratifica a famosa afirmação de Roland Barthes (1978), que se todas as disciplinas um dia desaparecessem dos currículos universitários, bastaria que ficasse a literatura, uma vez que ela contém todas as outras disciplinas. Ao sugerir um projeto multidisciplinar a partir das peças teatrais que compõem a obra de Gil Vicente, ela nos mostra como a literatura pode fomentar uma reflexão sobre o nosso tempo em comparação com um momento anterior da história, analisando a problemática-eixo: o novo como fusão da herança com a invenção. A história não se repete, mas também é possível observar momentos passados em que houve situações similares às vividas hoje para daí retiramos estratégias de compreender a vida presente e até mesmo de nos posicionarmos diante dos fatos. Também fica evidente a partir desta ação que diversas disciplinas como ciências sociais, matemática, geografia e história (e eu incluiria artes) possuem “motivos de sobra” para incluir a discussão da obra literária em suas práticas pedagógicas.

O fio de Ariadne belo, confuso, antagônico é a própria literatura e, certamente, uma metáfora da vida. Tomemo-lo nas mãos avidamente e trilhemos o labirinto!

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Conto de eterna separação, 2004


Mal Frida estacionou o carro na garagem, já o viu, de paletó e gravata, sentado na escada com a pasta de executivo no colo. Achou a cena engraçada, mas sabia que teriam mais uma vez que discutir, brigar, sofrer. Só depois de um mês da separação, ele, Rivanilton Rivera, ligara para ela, pedindo para apanhar os objetos que deixara em seu apartamento. Parecia que aquele esquecimento era proposital. No fundo, ele queria permanecer presente na casa dela através de seus objetos pessoais a fim de tentar persuadi-la a continuarem juntos. Clandestinamente, mas juntos. Frida respirou fundo, trancou o carro e se dirigiu a ele:

- Demorei?- A pergunta era irônica, pois o encontra havia sido marcado às 19h e já eram 22h.

- Que nada! O que eu faço é irrelevante diante do seu plano de salvar o mundo do maléfico poder branco, cristão e machista. Além do mais, sei que sua demora foi uma tática para atrapalhar os projetos políticos do DEM, pautados na falocracia elitista, já decadente desde a colonização – sorriu com sarcasmo.

Sabia como irritá-la: era só repetir os discursos em que ela acreditava piamente, de forma jocosa. Frida engoliu a seco a resposta à sua provocação. Entraram no elevador, calados e assim permaneceram. Até que um susto: o elevador parou. Eles se entreolharam assustados. Nada poderia ser pior. Não era claustrofobia nem medo, mas a angústia provocada pela imposição de estar trancada com alguém tão íntimo. “Devia ser proibido por lei que dois ex-amantes ficassem sozinhos, presos em local fechado”, pensou Frida. Antes que emitissem qualquer enunciado, o elevador voltou a funcionar. Respiraram aliviados sincronicamente. Saíram do elevador. Parecia que o tempo brincava preguiçosamente de passar. Frida colocou a chave na fechadura da porta e se entreolharam mais uma vez. Ao abrir a porta, ela nada falou, só gesticulou, balançando seu braço em direção a entrada do apartamento. Seu gesto era apenas sarcasmo. Rivera entrou no apartamento e o olhou com tristeza por tanto tempo que nem a viu sair e retornar, carregando uma caixa grande de papelão. Ela ergueu a caixa na direção dele para que a tomasse nas mãos e fosse embora de uma vez. O silencia pairava no ambiente.

- Aqui está tudo que deixou... Quer dizer quase tudo!

- Ah, então, a defensora da verdade e da justiça, roubou algum dos meus objetos para poder se lembrar de mim, cheirá-lo, senti-lo e encontrar-me nele, hein?

- Jamais ficaria com quaisquer dos seus objetos, de gosto extremamente duvidosos e escolhidos a dedo por sua esposa. No entanto, o sentido da palavra “deixar” é amplo e quando me refiro a ela falo de decepção, arrependimento, descrença. Só isso ficou.

- Não é o que parece. A verdade é que nós dois sabíamos da impossibilidade de unir convencionalmente dois mundos tão diferentes.

Esta era uma verdade inquestionável. Uma artista plástica de esquerda, que acredita na possibilidade de transformar o mundo num lugar livre, justo, igual, de respeito à diversidade e um vereador de direita, vinte anos mais velho, que possui como maior preocupação preservar sua imagem de homem solidamente casado, sério, cristão a fim de angariar votos de seus eleitores só poderiam ser inimigos, nunca amantes.
Rivera fechou a porta que permanecera aberta, sentou-se nas almofadas espalhadas pelo chão. Frida olhou-o e balançou a cabeça sem acreditar no que via. Bravejou alguma coisa inaudível, mas ele a interrompeu, apontando para a rede que ficava na varanda.

- Como você pode se separar de mim e continuar ostentando aquele rede na varanda?

Frida franziu a testa e sorriu. Pensou que era muita maluquice ou prepotência para um homem só. Ele continuou a falar:

- Se você continua expondo um objeto que marca o início do nosso relacionamento na parte central da sua casa, eu posso inferir que eu também tenho importância central em sua vida. Isso é psicologia, querida. Junguiana.

Ela, com olhar descrente, indignou-se com a eloqüente e súbita intelectualidade de almanaque:

- Não estou ouvindo isso... Logo você que sempre caracterizou quaisquer estudos em torno da psicologia como babaquice. Logo você que quando um amigo meu gay relatou como a terapia o havia feito “sair do armário”, você disse que isto só confirmava que terapia era coisa de “veado”, mesmo. Ah, não!!! Você está querendo destruir o meu fim de dia, não é ?

Rivera sem sequer prestar atenção ao que Frida dissera, continuou:

- Só você mesmo para comprar uma rede em pleno desfile do Dois de Julho. Foi muito engraçado te ver, lembro-me claramente, de blusa vermelha, calça jeans, bandeira do PT em uma mão e uma rede na outra. Eu não poderia perder a oportunidade de ironizar uma militante consumista.

- Não sou consumista. Só aprecio como qualquer artista plástica a arte popular. Esta rede é feita por uma cooperativa de mulheres da Costa do Dendê que vem a Salvador um vez por ano, e no dia do desfile. Sua cantada foi muito infeliz e só ratificou sua cafajestice.  Me elogiar, dizendo que as donas de casas deveriam prestigiar o dia da Independência da Bahia era um acinte.

- Naquele dia, eu pensei que você sonhava em casar... Queria “ter um homem para chamar de seu”, como canta o Erasmo.

- E eu pensei que você era militante de esquerda. Só por isto te dei papo. Achei que aquilo de dona de casa era brincadeira. Só muito tarde, entendi que era sério e aí...

 - Já estávamos envolvidos, nos amando.Nos idealizamos e quando nos descobrimos já era tarde. Pensei  que só amaria alguém igual a mim, mas tenho que assumir: sua rebeldia me encanta. Talvez, um dia ,possa ser como você.

- Impossível, você já está velho demais. Entretanto, olhando, você aí, sentado no chão, vejo o quanto, você é frágil. Acho que foi isto que me encantou. Acreditei ser mais velha do que você. Só depois entendi que era justamente o contrário. Sou apenas mais madura.

- Então, queria cuidar de mim? Toda mulher é mãe, mesmo.

Frida abaixou a cabeça. Ele não entendia mesmo como ela o amava. Não valia a pena insistir.

- Rivera, só você sabe me irritar. Não desejo ser mãe nem casar. Só quero respeito.

Rivera também abaixou a cabeça. Não conseguia compreender como era possível crer em futuro, sonhos e ideais. A vida é tão prática. Ela não entendia mesmo como ele a amava. Não valia a pena insistir.

- Frida, além de te respeitar, te admiro, mas não sei, não aprendi a ser diferente do que sou. Eu não posso me separar de mim mesmo para ficarmos juntos.

- Não vamos falar nisso agora. A separação já estava marcada desde o nosso encontro. Só fizemos adiá-la. Insistimos, nos rebelamos contra o óbvio. Foi “dor e delícia”, mas não podemos mais. Não insista. Suma, por favor. É um apelo: nos amamos, mas não sabemos como fazer isto. Em toda literatura que li, os amantes são despojadas, mas nós não. Acho que Deus fez dois seres extremamente egoístas e Ele, para se divertir, fez com que estes seres se encontrassem para se desencontrarem para sempre. Assim, somos nós dois.

Ela se ajoelhou para ficarem mais próximos, olharam-se. Ele tirou os fios de cabelo que encobriam o rosto dela, puxou o pescoço de Frida em sua direção e se beijaram. A mão de Rivera já abria o primeiro botão da blusa, quando o celular dele tocou:

- Alô, querida. O jantar na casa dos Magalhães? É, hoje? Ainda dá tempo, estou indo- Ele se levantou apressado e sem jeito.
   
Frida abriu a porta. Sequer se olharam, estavam envergonhados da impotência que tinham sobre si mesmos. Nada disseram. Ele entrou no elevador cabisbaixo. Ela entrou em casa ciente da separação. Triste, mas confortada. Agora era definitivo. Não haveria mais encontros, só desencontros. A separação estava consumada.

 Só, neste momento, Frida viu a caixa dos pertences de Rivera no chão ao lado das almofadas. No outro dia, com certeza, ele voltaria para continuarem a separar o que jamais se uniria.