Eu
atraio gente louca. Ou como diz Suassuna: “como sou do ramo, identifico os
doidos logo”. E nem falo metaforicamente, falo de doido com CID, laudo médico e
receita tarja preta. Desde menina, seja estudando na Lapa ou transitando por
espaços do Centro, sempre eu era abordada por uma dessas pessoas para pedir
algo ou até mesmo para conversar. Por isso, atualmente, sou eu a primeira que
faz questão de falar, dar bom dia. Assim, minha aprendizagem sobre não
invisibilizar essas pessoas se deu porque, de algum modo, eu nunca fui
invisibilizada por elas.
Mas
entre tantos e tantas, uma delas marcou minha alma profundamente. Ao contrário
de Drummond, nunca soube onde ela habitava. Ela era, na minha cidade, a louca
folclórica, conhecida por todos, afastada dos lugares e colocada num espaço
entre o escárnio e o temor. Eu a via, circulando pelas ruas. Era magra, alta e
negra, cabelos escorridos, ora presos, ora soltos. Devia ter no máximo uns 40
anos e transcendia nela uma imperatriz escondida na mendiga. Vestia sempre um
maiô surrado e uma canga rota. Nas mãos, levava arames e um alicate. Dizia-se
artesã e tentava empurrar a qualquer preço os produtos que inventava. Alguns falavam
que ela era hippie e enlouquecera graças às drogas.
Eu
sempre a via e de algum modo a respeitava. Um dos lugares onde mais a
encontrava era na missa dos domingos na Igreja Matriz. Um dia, estávamos nós
quatro, meu pai, minha mãe, eu e minha irmã numa pizzaria. Era um momento bem
nosso aos finais de semana e ela entrou no restaurante. De cara, quando percebi
que ela se dirigiu a nós, pensei: “vai pedir dinheiro ou comida”. Mas como num
passe de mágica, ela rapidamente se recompôs, se empertigou, ajeitou a roupa e
dirigiu-se a minha mãe:
-
Professora Norma Moreno.
Minha
mãe, entre assustada e surpresa, apertou os olhos e tentou enxergar a mulher
que vinha antes de a louca ser a louca, ao que no silêncio de minha mãe, ela
continuou, com voz mansa:
-
Fui sua aluna no Instituto Federal de Biologia. Eu sou Benedita.
Os
olhos de minha mãe se arregalaram e eu pude sentir seu coração murchar e
bombear sangue até os olhos que rapidamente incendiaram e se alquebraram. Mas
como minha mãe não é dada a esmorecimentos, imediatamente, levantou-se,
abraçou-a:
-
Meu Deus. Me lembro sim. Quanto tempo?
Benedita
então conversou como se pessoa sã fosse, lembrando com minha mãe memórias da
professora e da aluna. Portou-se com a educação da imperatriz que eu sempre
achei que ela era, nada pediu, disse já ter incomodado bastante e se foi... E
ninguém pense que ela se curou e voltou a ser quem era. Ela continuou sendo a
louca da cidade, praguejando alto, andando suja e drogadiça pelas ruas, ora
xingando as pessoas, ora aproximando-se para vender algo sem valor e sem
beleza. No entanto, apesar disso, toda vez que via minha mãe era a mesma coisa.
Começava dizendo: “Professora Norma Moreno”, parecia voltar a si, conversava
com total equilíbrio e seguia vivendo a vida perturbada que talvez para ela se
tornara sua masmorra.
É
obvio que eu, meu pai e minha irmã, no dia da pizzaria, após a saída dela,
fizemos uma imensa cara de interrogação, apesar de termos ficado em silêncio e
perplexos durante toda a conversa. Foi aí que minha mãe, boa contadora de
história que é, abriu seus fios de tecelã e nos narrou que Benedita era uma
jovem pobre que ingressara na Universidade e havia sido uma aluna brilhante,
dedicada e promissora. Belíssima como era, despertou o interesse de muitos
homens, mas acabara se apaixonando por um estudante de Medicina, jovem também,
branco e uma das maiores fortunas da cidade. O desejo foi mútuo entre ambos.
Começaram a namorar e, em plena revolução social e libertária dos anos 60,
decidiram se unir apesar do repúdio da família dele ao casamento. O noivo a
priori decidiu franciscanamente largar tudo e viver com Benedita que logo
engravidou. Benedita afirmava amá-lo, mas dizia-se radiante por aquela
plenitude que agora habitava seu ventre. Era uma lua cheia de afeto por aquela
que daria continuidade a sua existência na Terra. Mas depois, bem próximo ao
término da graduação de ambos, ninguém nunca mais os viu. Desapareceram
completamente. E circulou um boato de que Benedita havia parido em condições
precárias e que a mãe do namorado tinha pego a força a criança recém-nascida e
a levado para o Europa. O pai seguiu atrás de sua filha e Benedita, uma Iracema
negra, sozinha, não morreu de tristeza, mas jogou-se no mundo em busca da
filha. Ao que parece, para sempre, perdeu a filha. Perdeu a lucidez, perdeu o
rumo, perdeu-se de si.
E
talvez essa história devesse parar aqui porque ela já é triste demais. Mas
outro evento com a louca também envolveu a mim e a minha família. Numa dessas
missas de domingo, a que íamos religiosamente, ela entrou na igreja muito
contrita, sentou-se próxima a nós e permaneceu atenta e entregue a todos os
momentos do rito. Na hora da comunhão, entramos todos na fila para receber a
hóstia consagrada e ela, como qualquer fiel, fez o mesmo. O padre lá na frente
procedia como orienta o dogma e colocava o “corpo de cristo” nas mãos de cada
pessoa, entretanto quando se deparou com a louca, de forma agressiva, cenho
franzido e lábios rijos em forma de bico, balançou como o ponteiro de um
relógio o dedo indicador num retumbante não e, ainda sem qualquer sinal sonoro,
chacoalhou as mãos, enxotando-a dali. A louca saiu da fila, voltou-se a sentar
próxima a nós, que olhávamos aquilo entre assustados e entristecidos. Ela não
contou conversa, começou a bradar num grito mais intenso do que a voz do padre
blindada pelo microfone:
-
Que corpo de Cristo é esse que não alimenta quem mais precisa dele? Que Igreja
é essa que não sabe acolher a única alma aqui que realmente precisa de alimento
e cuidado? Que padre é esse que expulsa aquela que mais precisa ser incluída e
abraçada?
Meu
pai e minha mãe num gesto de proteção foram para perto dela na tentativa de
alentá-la. E ela abruptamente pegou o alicate com a mão para atirá-lo no padre.
Meu pai a conteve, a levou para fora da Igreja em seus braços, acompanhado de
minha mãe e nós duas os seguimos de olhos arregalados. Lá fora, meus pais a
afagaram, conversaram tempos a fio, até que ela se acalmou e se foi. Não ficou
por aí, meu pai e minha mãe, cristão radicais, sentiram-se aviltados com
aquilo, bradavam com certa raiva que ainda que o padre não desse a hóstia, ele
tinha que ter sido protetivo e amoroso. Fizeram carta de repúdio para a
paróquia, marcaram reunião com o padre e, até onde sei, apenas ganharam uma sacra
inimizada.
E a louca, ou melhor, Benedita, eu, ainda jovem, desapareceu de nossos dias para todos sempre. Desapareceu, digo, dos nossos olhos que enxergam a materialidade das coisas, porque nas vistas da memória, ela fincou sua história em nós. Plantou em mim um desprezo por muitas das práticas de religiosos da igrejas cristãs. Mas também por isso me mostrou quem são meus pais e que talvez eles sejam tão cristãos como o foi o próprio Cristo e como nunca foram a maioria de seus seguidores. E mais que tudo isso me fez ver que uma mãe sem sua filha é alguém que nunca terá paz, sanidade, alento. É alguém eternamente a procura, com olhar fixo para o além, perdido num porvir. É alguém sempre disposta a atravessar um oceano para encontrar seu rebento.