O corpo feminino sempre foi, para as
mulheres, o primeiro território a vivenciar violências. Mais do que a família, do
que o trabalho, do que as instituições educacionais ou religiosas, o corpo de
mulher, no patriarcado, sempre foi alvo concreto de repressões, retaliações,
proibições e marcas. Simplesmente porque não há como se apartar dele. Estamos
presas a ele, ele denuncia nosso ser feminino, ainda que sejamos mulheres cis ou
trans. Por isso, certamente foi e continua sendo importante pauta do feminismo
negro. Entretanto, as questões reprodutivas - o direito por parir, por não
parir, por saber quando parir ou o direito ao aborto - sempre vieram na frente
de outras tantas questões que cabem no corpo, como a alimentação, padrões de
beleza, o repúdio aos corpos gordos, o racismo, a branquitude como ideal de
beleza, a obrigatoriedade das mulheres serem sempre jovens. E, por isso, toda
uma sorte de violência patriarcal que nos oprime e nos condena acaba por se
materializar em estupros, abusos na infância, violência doméstica, exploração
sexual etc.
Infelizmente é fato que o patriarcado legisla desde sempre sobre nossos corpos femininos. As
mulheres em algum tempo e de alguma forma já ouviram expressões que
desqualificam ou seu jeito de vestir ou algum atributo de seu corpo ou algum
comportamento ligado a ele. Eu, por exemplo, já ouvi expressões como roupa de
vadia, roupa de periguete, roupa de mulher casada. Quando ouço isso, rastreio
mentalmente as lojas de departamento que existem onde vivo e me recordo que em
nenhuma delas há seções para as putas, para as santas, para as “belas,
recatadas e do lar”... As roupas simplesmente estão lá numa seção feminina, o
que realmente há é uma segmentação por faixa etária, perfil socioeconômico e
por tamanho do corpo. Apenas isso. Ou tudo isso!
Além das vestimentas somos
sancionadas sobre os comportamentos com o corpo. Qual menina brasileira no auge
da sua liberdade infantil e espontânea de ser não ouviu um “fechas as pernas”,
um “senta direito, menina”? Eu, menina, que amava ficar só de calçola, cabelos
desgrenhados ao vento, invejava os meninos sem blusa até a eternidade. Lembro
de uma viagem que fizemos ao Rio de Janeiro e a imposição de usar blusas dado
os primeiros calombinhos de peito. Fui presenteada com um sutien rosa de
algodão para amenizar o desejo infantil de andar sem blusa pela paisagem
carioca. Ali, as fotos comprovam, estou eu menina moleca no Corcovado só de
sutien de algodão e os cabelos crespos ao vento bem livres. Apesar de uma
acentuada liberdade infantil, havia a censura: “Isso é um sutien, menina, tem
que botar a blusa”.
No depois, tantas observações sobre o
meu corpo de mulher. Eu, ainda menina, mas já grande e cedo ouvindo: “corpo de
moça, hein?!?!” Não entendia objetivamente o sentido daquela fala. Com o tempo,
ao viver as primeiras emoções de andar sozinha para ali e acolá bem pertinho
(comprar um pão, quem sabe?) comecei a entender esse incômodo de ter tão cedo o
tal “corpo de mulher”. Eram os assobios de homens, já velhos até, eram os
gracejos sem graça ou os apelos pretensiosamente pornográficos e vulgares. Hoje
na vida adulta, usando meu crachá de feminista e me afirmando identitariamente
como mulher negra, não sigo o rito. Não faço conforme o combinado, porque a
ordem quando ouvir as cantadas masculinas na rua é usar sisudez, fazer cara de
séria. E eu só tenho vontade de explodir em risada, de tão bizarras que
considero as cenas. Queria que o patriarcado não existisse para eu dizer: “Venha
cá, velho. Você... Você mesmo aí... Me
chamando de gostosa, dizendo querer chupar a manga que carrego entre as mãos
como se fosse a que está entre as minhas pernas... Você acha que essa é a
melhor técnica de convencimento para atingir uma relação sexual ou você só quer
me constranger mesmo”? Ou: “Quando vc diz: que saúde. Você acha que eu já não
sei que sou uma pessoa saudável”? Ou: “quando você diz: vou te chupar todinha,
você acha que minha libido vai explodir em êxtase e eu na rua mesmo vou transar
com você”? Juro que queria segurar esses homens, olhar dentro dos olhos deles e
aguardar a resposta que viesse. Desconfio que fugiriam de mim e me chamariam de
louca, puta ou má. Assim, como por outra via, eu, jovem estudante de Letras,
passando diariamente pela Lapa, quis olhar fundo nos olhos daquele menino
negro, vendedor ambulante, que me disse entre risos: “você não anda, você
desfila”. Eu o teria namorado, sim. Se não houvesse machismo... Simplesmente
porque aquela cantada me fez mais mulher, não me feriu, nem me ofendeu, nem me
invadiu, apenas levou poesia para meu dia.
E se falarmos de práticas sexuais, a
questão não se apazigua. Pelo contrário, o problema se potencializa. Os meninos
desde sempre cobrados ao namoro e ao sexo com uma mulher, já as meninas sempre
sugeridas que deixassem tais práticas para cada vez mais tarde. Isso me trazia
uma questão: se os meninos devem transar logo cedo em relações heterossexuais e
as meninas devem retardar essa prática, com quem eles transarão? Na minha
adolescência, virgindade ainda era um valor para as mulheres. Um valor
diferente da época da minha mãe. Ser virgem era um problema para a minha
geração. Era importante experienciar o sexo antes do casamento, mas não se
podia ter muitos parceiros. Os meninos eram incentivados a não ter namorada
fixa, a trepar muito e com diversas mulheres. O que só comprova que o sexismo
também dificulta a vidas dos homens porque os obriga a ser uma máquina de sexo
que está à disposição de toda e qualquer investida de uma mulher.
Já as mulheres deveriam se preservar,
não podiam ser fáceis. Transar no primeiro encontro? Nem pensar. E essa conta
não batia. Para eles, possuir o selo de “os putões” era uma qualidade. Para nós
mulheres, ser puta era e ainda é tratado como um demérito. E tome-lhe
idealização do masculino pelas mulheres, tome-lhe ficcionalização pelo homem
perfeito. Muitas mulheres ainda esperam um príncipe encantado... E com o avanço
da nossa presença na esfera pública, o crescimento nosso no mercado de trabalho
e nas formações especializadas/ acadêmicas, muitas de nós travamos quando
percebemos que nossos candidatos a companheiros não têm os mesmos salários que
a gente, não galgaram a mesma titulação stricto
sensu que a nossa ou não avançaram tanto profissionalmente como nós. Muitas
de nós se intimida em ser a provedora de uma casa, porque simplesmente ainda
anseia ser tutelada, cuidada pelo macho. Ou melhor, salva da torre por ele para
ir viver no castelo dele. Isso sim, um perigo. Entretanto, homem nenhum por
mais intelectualizado ou abastado financeiramente que seja se constrange em
casar com uma mulher mais pobre e/ou com menor grau de instrução que o dele.
Para o machismo, uma mulher casável só precisa ser bonita, a partir da ideia de
um binômio absurdamente limitador: se bonita, burra X se inteligente, feia e
perigosa.
E aí vem outro elemento opressor para
as mulheres: uma certa obrigatoriedade em ser bela e leia-se ser bonita como
aquela que se conforma ao padrão estabelecido de beleza. Havia um pagode que
descrevia um indivíduo feminino com aspectos designados pela voz narrativa como
feiura e um dos versos afirmava: “ela não era uma mulher, era uma assombração”.
Ou seja, se não possui a beleza normativa sequer o signo de mulher pode
carregar. Eu mesma vivi essa dicotomia que foi mais um motivo para me afastar
do corpo. Na minha casa, havia essa diferenciação entre mim e minha irmã. Eu, a
inteligente e ela, a bela. Isso gerou uma disparidade nociva entre corpo e
intelecto, isso rompeu com o caráter holístico de todo indivíduo que, hoje sei,
abarca em si inteligências, belezas, comportamentos, espiritualidades. Tudo
junto e misturado. Tudo no plural. Somos mais complexas que uma coisa ou outra
e ninguém condensa em si a completude de uma coisa só. Também ouvi por vários
segmentos da cultura que os homens teriam medo ou repúdio a mulheres como eu. E
eu na minha insegurança achava que falavam de uma possível falta de beleza
minha, mas na verdade, queriam afirmar que minha capacidade de me posicionar,
meu potencial para estar com segurança nos espaços públicos e minha autonomia
gerariam certo desconforto aos homens imersos no patriarcado. E o pior: era
verdade!
Sempre lembro das recorrentes listas
das dez mais bonitas da escola como fator de opressão. E pensar que elas ainda
vigoram nas academias, nos locais de trabalho. Antes, eu ficava curiosa para
saber quem aparecia nelas na esperança de me ver lá dentro. Nunca tive coragem
de saber se eu havia sido uma das eleitas. Agora finjo as ignorar. E a palavra
é fingir mesmo, porque elas continuam me inquietando e me chamando atenção.
Quando alguém me fala da existência das listas, logo penso que se eu não
estiver dentro dela, vou ficar mal, porque não estarei sendo considerada bela e
beleza é sim para mim aspecto importante. E também penso que se eu estiver
dentro dela, eu também ficarei mal, porque se as listas obedecem ao normativo,
caso eu esteja nelas é justamente porque estou formatada, adequada, conformada
a um padrão que recrimino.
A parte pior e talvez mais vexatória
é que essas listas são produzidas por homens, completamente defensores do
sexismo e do patriarcado. E pasmem? A maior parte deles misóginos, ou melhor,
podem até gostar de buceta, de trepar com pessoas que tem vagina, mas não
gostam de mulher, não gostam do cheiro, das conversas, dos comportamentos, da
existência feminina. Admiram mesmo, coçando seus sacos e cuspindo no chão, os
homens e uma pretensa força bruta inventada sobre eles. São
“homossocializados”, ou seja, mulher é um detalhe na vida deles, pois o que
amam mesmo é se agregar entre seus iguais. E dentro do padrão de beleza
masculina, a maior parte dos homens que conheci que faziam essas listas eram
baixinhos, barrigudos, carecas, cheios de espinha na cara, eram feios para a
normatividade de beleza masculina. Mas ainda assim se sentiam poderosos para
definir quem eram as mulheres belas, as aceitáveis, as casáveis, as
trepáveis...
Tardiamente, confesso, passei a
considerar meu corpo e a beleza física como aspectos fundamentais da existência
humana. Por longos anos de minha vida, desprezei falsamente tudo isso. Investi
fortemente no intelecto e tratei como superficialidade tais questões. E até
dizia que mulheres que se importavam com isso era fúteis e serviam ao
patriarcado. E até podia ser. Mas eu na verdade, não estava sabendo compreender
meu próprio discurso. O que eu queria dizer e não sabia é que meu combate não
era a beleza e ao meu corpo físico. Minha briga era e é cada vez mais com a
normatividade, com um padrão imposto como único e verdadeiro e este padrão vem
a ser o da branquitude, da magreza, da juventude. Digo e repito isso
didaticamente para que “entendedores entendam”.
Essa minha demora em considerar meu
corpo de mulher como elemento fundamental da minha plenitude tinha um motivo
legitimo. Hoje, sei. Eu o negligenciei por medo. Eu o calei e coloquei meu
mental a frente dele, como medida protetiva. Não tolerava ser associada a
alguém vazia e precisava lidar com a esfera pública com elementos como
segurança, expressividade, coragem, ousadia. Não podia ser confundida com uma
mulher bonita e sem conteúdo. Como se essas duas forças precisassem ser
antagônicas ou precisassem uma anular a outra. Ouvi de uma colega que muito
admiro, mulher negra, professora de um idioma estrangeiro, que costumava usar
roupas antiquadas para dar aulas, para não ser desrespeitada, ou melhor,
descreditada por parte dos alunos. E eu pensava: “será uma questão de gênero ou
raça”? Eu mesma, certa vez, e já com outra perspectiva sobre tais questões, fui
convidada a ministrar uma palestra sobre os resultados da minha tese na UFBA. A
professora que me convidara, apesar de nunca ter estado comigo presencialmente,
tinha lido meu trabalho na internet e o considerou interessante. Ela, uma
mulher mais velha e branca, ao me ver, olhou-me de cima abaixo e me perguntou:
“Você é mesmo, Luciana Moreno? Tão jovem". Eu apenas ri. E eu já contava
37 anos.
No agora, pela busca em torno do meu
ser mulher e por questões de saúde, passei a me dedicar com certo
constrangimento a alimentação saudável e a atividade física frequente. Falo
desse constrangimento porque ainda permanecem em mim e fora de mim certa
cobrança pela polaridade: como uma pesquisadora, doutora, professora da
Universidade, pode ter mais fotos com roupas de malhar e de biquíni nas redes
sociais, do que fotos com os trajes designado estereotipadamente para as
professoras? Me inquirem. Como uma feminista negra pode dar tanta atenção ao
corpo? Como se essas práticas de autocuidado e de consideração central do
físico não fossem também importantes pautas do feminismo negro...
Mas confesso que ainda me aflige
pensar que o normativo quando se fala em beleza do corpo feminino está
associado a uma pele quanto mais clara melhor, a um cabelo liso ou alisado, a
narizes finos, a olhos azuis ou verdes. Me preocupo quando me estresso com os
meus fios brancos que já insistem em denunciar que já passei dos 40. Nem sei se
me aflijo mais com os fios ou com a minha própria neurose em escondê-los. Essa
insatisfação significa que envelhecer não cabe na norma de beleza. Numa fase de
pouco autoamor, ouvi de uma colega aparentemente feminista, ao ver meus cabelos
não pintados, que eu corresse para empretecer os brancos porque aquilo me fazia
parecer desleixada. Certamente, ela não diria o mesmo das garotas escovadas e
com mechas, que apesar dos cabelos poucos saudáveis, sujos, enfraquecidos e
cheios de química se adequam mais ao tal do padrão. Por fim, sempre olhei para
mim - uma mulher nunca magra, sempre cheia de pernas, braços e bunda - com dúvidas
e temores. O 36 tão sonhado nunca vi passar pelos meus quadris que no auge da
minha rara magreza comportam apenas o 42. Me entristece ver as fotos da minha
infância e adolescência em que eu me julgava uma pessoa imensa, e eu era apenas
uma menina com largos quadris, pernas e braços longos, seios fartos. Tinha no
máximo um sobrepeso que não me prejudicava a saúde física, mas massacrava minha
saúde mental.
Tenho uma amiga negra um pouco mais
velha, com sobrepeso e solteira que diz de forma jocosa uma violência
sofrida... Ela afirma que na Balada quando vê jovens, magras e brancas, fala
para si mesma: “fudeu”. Então, espera os caras escolherem as brancas, depois as
magras, depois as jovens. E ela fica num dos últimos lugares da fila à espera
de um boy que a deseje. E eu fico a pensar se está no campo do desejo mesmo
esse preterimento a ela. E chego à conclusão que a tardia escolha por essa
amiga nas festas se dá mais por racismo, gordofobia e questão de faixa etária
do que por ausência de afeto, atração física, tesão, excitação.
Uma das provas disso é que essa amiga
não tem namorado, mas ela trepa muito. Ela tem muitos amantes. Mesmo na solidão
de seu apartamento, está sempre com uns boys, seja em casa, nas redes sociais
ou na rua. Os caras a procuram, ligam para ela. Ela tem uma vida sexual
bastante ativa, mas tem dificuldades para arrumar um namorado, um companheiro,
um esposo, um marido seja lá como se nomeie essa pessoa que além de trepar com
você trancafiado nas paredes de um quarto, também desfila com você nas ruas, te
apresenta para a família e muda o perfil de relacionamento do facebook.
Então, eu penso que há uma
contradição aí, porque esses corpos femininos fora do padrão hegemônico atraem
o desejo e também o afeto do outro para si e atraem muito. Essa amiga diz que
quando quer dar um basta naquele cara que sempre a procura para sexo que já não
se pode mais ser considerado como casual, dada a frequência, os caras
simplesmente enlouquecem, fazem cena de filme romântico americano, prometem
amor eterno. E eu me pergunto: se fazem isso, porque não assumem essas mulheres
para além do espaço íntimo, ainda que elas queiram? Então, eu reafirmo que essa
não escolha pelas mulheres pretas, gordas, mais velhas não se dá na maior parte
das vezes pela ausência de desejo e afeto, mas sobretudo por algo mais do
social do que do íntimo. Também entendo que quanto mais a gente fala disso mais
mulheres negras, gordas e mais velhas questionam o padrão excludente, tomam a
ideia de beleza para si e rompem com o sexismo, se vendo como bonitas e
defendendo seus próprios padrões de beleza.
Eu sei que mulheres brancas, magras a
até jovens também possuem reclamações legítimas. Nenhuma mulher cabe em padrão
tão limitante e irreal, nem as super top moldels. Elas também são achincalhadas
quando escapa nas fotos uma estria na bunda. As fotos delas também passam por
uma série de aplicativos para a adequação de seus corpos pretensamente
perfeitos. Mas há de se pactuar que umas mulheres – justamente por questões de
raça, classe e faixa etária – são mais preteridas que outras.
Nesse caos repressivo por qual os
corpos femininos têm passado na história do patriarcado, há um reencontro.
Aliás, um enamoramento. E essa paquera sensual, erótica e intensa é de mim para
o meu próprio corpo feminino. Nada tem a ver com estratégias para potencializar
o desejo do outro – geralmente um macho – sobre o meu corpo. O fato é que a
duras penas e olhando para o meu corpo sem véus nem subterfúgios, comecei a
perceber que há um corpo que me abriga, me acolhe, me conforta. Há um corpo no
qual me sinto segura e dona de mim. Esse corpo não está dentro da normatividade,
porque ele não é magro, não é branco e não é mais tão jovem. Entendi – ou
inventei – que esse corpo tem que ser fora de qualquer padrão mesmo, porque a
ordem do universo é a diversidade e só existe uma eu no mundo. Eu não caibo e
me esforço para nunca querer caber num padrão, seja ele da superioridade magra
ou do empoderamento gordo, por exemplo. A minha terapeuta sempre me chama
atenção do quanto eu quero me filiar a esse ou outro bloco e a resposta talvez
seja eu perceber que o meu corpo de mulher pode muito, ele é livre, não cabe em
caixas, não tem limites.
Entretanto, se eu parar por aqui,
terei uma visão ingênua e descontextualizada, pois ao mesmo tempo que meu corpo
é livre, eu vivo num mundo que não é livre, que é sexista, patriarcal, racista,
gordofóbico etc. Para além disso, vivo num mundo onde pessoas enriquecem
construindo limites e insatisfações sobre e para o meu corpo. Por isso, esse
corpo livre também precisa ser político e se rebelar. Esse corpo precisa
perguntar-se a si mesmo e lançar perguntas ao mundo sobre as razões de tantos
limites, repressões e violências. Esse corpo precisa não se conformar nem se
confinar. Ele deseja se expandir e se afirmar cotidianamente.
Não querendo desdizer o que eu já
disse antes, afirmo: não descarto o outro como fundamental para eu me
assenhorar do meu corpo. E no meu caso, esse outro ou esse alguém que eu quero
despertar o desejo sobre o meu corpo é geralmente um homem. Que como diz uma
amiga minha: “homem é bom, mas eu não recomendo para ninguém”. E eu não
recomendo justamente por esse homem na maior parte das vezes estar imerso no
sexismo, ser defensor de um padrão e
juiz da normatividade dos corpos femininos. Eu não quero isso para eles também.
Não quero que os corpos deles sejam escravizados por uma norma de beleza masculina.
Até porque no meu ideal de beleza dos homens para além do corpo físico, me
chama a atenção a inteligência, a sensibilidade, o bom humor, a sedução.
Só que apesar da minha identidade ser
construída também a partir desse olhar masculino, eu sei que esse processo de
afirmação de mim não só perpassa pelo olhar do outro. Eu descobri que invisto
fortemente no corpo que me sustenta não apenas para mero prazer do macho. Quem
se deleita e goza no meu corpo sou eu mesma, por isso, devo tratá-lo como um
templo sagrado, como uma pauta política e ideológica de minha existência. Meu
corpo é pauta do feminismo negro e cuidar dele e amá-lo e querer que ele seja
saudável e pleno é uma ação política. Não é justo que, tendo cinquenta trilhões
de células que desempenham inúmeras funções no espaço do meu corpo, eu o
negligencie, o maltrate ou o violente, prendendo-o a padrões limitadores e até
impossíveis de me encaixar. Deus me livre de entrar numa fôrma e aniquilar a
liberdade deste lugar que é a única morada de minha alma.