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terça-feira, 26 de maio de 2020

O CORPO DAS MULHERES COMO PAUTA DO FEMINISMO NEGRO


O corpo feminino sempre foi, para as mulheres, o primeiro território a vivenciar violências. Mais do que a família, do que o trabalho, do que as instituições educacionais ou religiosas, o corpo de mulher, no patriarcado, sempre foi alvo concreto de repressões, retaliações, proibições e marcas. Simplesmente porque não há como se apartar dele. Estamos presas a ele, ele denuncia nosso ser feminino, ainda que sejamos mulheres cis ou trans. Por isso, certamente foi e continua sendo importante pauta do feminismo negro. Entretanto, as questões reprodutivas - o direito por parir, por não parir, por saber quando parir ou o direito ao aborto - sempre vieram na frente de outras tantas questões que cabem no corpo, como a alimentação, padrões de beleza, o repúdio aos corpos gordos, o racismo, a branquitude como ideal de beleza, a obrigatoriedade das mulheres serem sempre jovens. E, por isso, toda uma sorte de violência patriarcal que nos oprime e nos condena acaba por se materializar em estupros, abusos na infância, violência doméstica, exploração sexual etc.
Infelizmente é fato que o patriarcado legisla desde sempre sobre nossos corpos femininos. As mulheres em algum tempo e de alguma forma já ouviram expressões que desqualificam ou seu jeito de vestir ou algum atributo de seu corpo ou algum comportamento ligado a ele. Eu, por exemplo, já ouvi expressões como roupa de vadia, roupa de periguete, roupa de mulher casada. Quando ouço isso, rastreio mentalmente as lojas de departamento que existem onde vivo e me recordo que em nenhuma delas há seções para as putas, para as santas, para as “belas, recatadas e do lar”... As roupas simplesmente estão lá numa seção feminina, o que realmente há é uma segmentação por faixa etária, perfil socioeconômico e por tamanho do corpo. Apenas isso. Ou tudo isso!
Além das vestimentas somos sancionadas sobre os comportamentos com o corpo. Qual menina brasileira no auge da sua liberdade infantil e espontânea de ser não ouviu um “fechas as pernas”, um “senta direito, menina”? Eu, menina, que amava ficar só de calçola, cabelos desgrenhados ao vento, invejava os meninos sem blusa até a eternidade. Lembro de uma viagem que fizemos ao Rio de Janeiro e a imposição de usar blusas dado os primeiros calombinhos de peito. Fui presenteada com um sutien rosa de algodão para amenizar o desejo infantil de andar sem blusa pela paisagem carioca. Ali, as fotos comprovam, estou eu menina moleca no Corcovado só de sutien de algodão e os cabelos crespos ao vento bem livres. Apesar de uma acentuada liberdade infantil, havia a censura: “Isso é um sutien, menina, tem que botar a blusa”.
No depois, tantas observações sobre o meu corpo de mulher. Eu, ainda menina, mas já grande e cedo ouvindo: “corpo de moça, hein?!?!” Não entendia objetivamente o sentido daquela fala. Com o tempo, ao viver as primeiras emoções de andar sozinha para ali e acolá bem pertinho (comprar um pão, quem sabe?) comecei a entender esse incômodo de ter tão cedo o tal “corpo de mulher”. Eram os assobios de homens, já velhos até, eram os gracejos sem graça ou os apelos pretensiosamente pornográficos e vulgares. Hoje na vida adulta, usando meu crachá de feminista e me afirmando identitariamente como mulher negra, não sigo o rito. Não faço conforme o combinado, porque a ordem quando ouvir as cantadas masculinas na rua é usar sisudez, fazer cara de séria. E eu só tenho vontade de explodir em risada, de tão bizarras que considero as cenas. Queria que o patriarcado não existisse para eu dizer: “Venha cá, velho. Você...  Você mesmo aí... Me chamando de gostosa, dizendo querer chupar a manga que carrego entre as mãos como se fosse a que está entre as minhas pernas... Você acha que essa é a melhor técnica de convencimento para atingir uma relação sexual ou você só quer me constranger mesmo”? Ou: “Quando vc diz: que saúde. Você acha que eu já não sei que sou uma pessoa saudável”? Ou: “quando você diz: vou te chupar todinha, você acha que minha libido vai explodir em êxtase e eu na rua mesmo vou transar com você”? Juro que queria segurar esses homens, olhar dentro dos olhos deles e aguardar a resposta que viesse. Desconfio que fugiriam de mim e me chamariam de louca, puta ou má. Assim, como por outra via, eu, jovem estudante de Letras, passando diariamente pela Lapa, quis olhar fundo nos olhos daquele menino negro, vendedor ambulante, que me disse entre risos: “você não anda, você desfila”. Eu o teria namorado, sim. Se não houvesse machismo... Simplesmente porque aquela cantada me fez mais mulher, não me feriu, nem me ofendeu, nem me invadiu, apenas levou poesia para meu dia.
E se falarmos de práticas sexuais, a questão não se apazigua. Pelo contrário, o problema se potencializa. Os meninos desde sempre cobrados ao namoro e ao sexo com uma mulher, já as meninas sempre sugeridas que deixassem tais práticas para cada vez mais tarde. Isso me trazia uma questão: se os meninos devem transar logo cedo em relações heterossexuais e as meninas devem retardar essa prática, com quem eles transarão? Na minha adolescência, virgindade ainda era um valor para as mulheres. Um valor diferente da época da minha mãe. Ser virgem era um problema para a minha geração. Era importante experienciar o sexo antes do casamento, mas não se podia ter muitos parceiros. Os meninos eram incentivados a não ter namorada fixa, a trepar muito e com diversas mulheres. O que só comprova que o sexismo também dificulta a vidas dos homens porque os obriga a ser uma máquina de sexo que está à disposição de toda e qualquer investida de uma mulher.
Já as mulheres deveriam se preservar, não podiam ser fáceis. Transar no primeiro encontro? Nem pensar. E essa conta não batia. Para eles, possuir o selo de “os putões” era uma qualidade. Para nós mulheres, ser puta era e ainda é tratado como um demérito. E tome-lhe idealização do masculino pelas mulheres, tome-lhe ficcionalização pelo homem perfeito. Muitas mulheres ainda esperam um príncipe encantado... E com o avanço da nossa presença na esfera pública, o crescimento nosso no mercado de trabalho e nas formações especializadas/ acadêmicas, muitas de nós travamos quando percebemos que nossos candidatos a companheiros não têm os mesmos salários que a gente, não galgaram a mesma titulação stricto sensu que a nossa ou não avançaram tanto profissionalmente como nós. Muitas de nós se intimida em ser a provedora de uma casa, porque simplesmente ainda anseia ser tutelada, cuidada pelo macho. Ou melhor, salva da torre por ele para ir viver no castelo dele. Isso sim, um perigo. Entretanto, homem nenhum por mais intelectualizado ou abastado financeiramente que seja se constrange em casar com uma mulher mais pobre e/ou com menor grau de instrução que o dele. Para o machismo, uma mulher casável só precisa ser bonita, a partir da ideia de um binômio absurdamente limitador: se bonita, burra X se inteligente, feia e perigosa.
E aí vem outro elemento opressor para as mulheres: uma certa obrigatoriedade em ser bela e leia-se ser bonita como aquela que se conforma ao padrão estabelecido de beleza. Havia um pagode que descrevia um indivíduo feminino com aspectos designados pela voz narrativa como feiura e um dos versos afirmava: “ela não era uma mulher, era uma assombração”. Ou seja, se não possui a beleza normativa sequer o signo de mulher pode carregar. Eu mesma vivi essa dicotomia que foi mais um motivo para me afastar do corpo. Na minha casa, havia essa diferenciação entre mim e minha irmã. Eu, a inteligente e ela, a bela. Isso gerou uma disparidade nociva entre corpo e intelecto, isso rompeu com o caráter holístico de todo indivíduo que, hoje sei, abarca em si inteligências, belezas, comportamentos, espiritualidades. Tudo junto e misturado. Tudo no plural. Somos mais complexas que uma coisa ou outra e ninguém condensa em si a completude de uma coisa só. Também ouvi por vários segmentos da cultura que os homens teriam medo ou repúdio a mulheres como eu. E eu na minha insegurança achava que falavam de uma possível falta de beleza minha, mas na verdade, queriam afirmar que minha capacidade de me posicionar, meu potencial para estar com segurança nos espaços públicos e minha autonomia gerariam certo desconforto aos homens imersos no patriarcado. E o pior: era verdade!
Sempre lembro das recorrentes listas das dez mais bonitas da escola como fator de opressão. E pensar que elas ainda vigoram nas academias, nos locais de trabalho. Antes, eu ficava curiosa para saber quem aparecia nelas na esperança de me ver lá dentro. Nunca tive coragem de saber se eu havia sido uma das eleitas. Agora finjo as ignorar. E a palavra é fingir mesmo, porque elas continuam me inquietando e me chamando atenção. Quando alguém me fala da existência das listas, logo penso que se eu não estiver dentro dela, vou ficar mal, porque não estarei sendo considerada bela e beleza é sim para mim aspecto importante. E também penso que se eu estiver dentro dela, eu também ficarei mal, porque se as listas obedecem ao normativo, caso eu esteja nelas é justamente porque estou formatada, adequada, conformada a um padrão que recrimino.
A parte pior e talvez mais vexatória é que essas listas são produzidas por homens, completamente defensores do sexismo e do patriarcado. E pasmem? A maior parte deles misóginos, ou melhor, podem até gostar de buceta, de trepar com pessoas que tem vagina, mas não gostam de mulher, não gostam do cheiro, das conversas, dos comportamentos, da existência feminina. Admiram mesmo, coçando seus sacos e cuspindo no chão, os homens e uma pretensa força bruta inventada sobre eles. São “homossocializados”, ou seja, mulher é um detalhe na vida deles, pois o que amam mesmo é se agregar entre seus iguais. E dentro do padrão de beleza masculina, a maior parte dos homens que conheci que faziam essas listas eram baixinhos, barrigudos, carecas, cheios de espinha na cara, eram feios para a normatividade de beleza masculina. Mas ainda assim se sentiam poderosos para definir quem eram as mulheres belas, as aceitáveis, as casáveis, as trepáveis...
Tardiamente, confesso, passei a considerar meu corpo e a beleza física como aspectos fundamentais da existência humana. Por longos anos de minha vida, desprezei falsamente tudo isso. Investi fortemente no intelecto e tratei como superficialidade tais questões. E até dizia que mulheres que se importavam com isso era fúteis e serviam ao patriarcado. E até podia ser. Mas eu na verdade, não estava sabendo compreender meu próprio discurso. O que eu queria dizer e não sabia é que meu combate não era a beleza e ao meu corpo físico. Minha briga era e é cada vez mais com a normatividade, com um padrão imposto como único e verdadeiro e este padrão vem a ser o da branquitude, da magreza, da juventude. Digo e repito isso didaticamente para que “entendedores entendam”.
Essa minha demora em considerar meu corpo de mulher como elemento fundamental da minha plenitude tinha um motivo legitimo. Hoje, sei. Eu o negligenciei por medo. Eu o calei e coloquei meu mental a frente dele, como medida protetiva. Não tolerava ser associada a alguém vazia e precisava lidar com a esfera pública com elementos como segurança, expressividade, coragem, ousadia. Não podia ser confundida com uma mulher bonita e sem conteúdo. Como se essas duas forças precisassem ser antagônicas ou precisassem uma anular a outra. Ouvi de uma colega que muito admiro, mulher negra, professora de um idioma estrangeiro, que costumava usar roupas antiquadas para dar aulas, para não ser desrespeitada, ou melhor, descreditada por parte dos alunos. E eu pensava: “será uma questão de gênero ou raça”? Eu mesma, certa vez, e já com outra perspectiva sobre tais questões, fui convidada a ministrar uma palestra sobre os resultados da minha tese na UFBA. A professora que me convidara, apesar de nunca ter estado comigo presencialmente, tinha lido meu trabalho na internet e o considerou interessante. Ela, uma mulher mais velha e branca, ao me ver, olhou-me de cima abaixo e me perguntou: “Você é mesmo, Luciana Moreno? Tão jovem". Eu apenas ri. E eu já contava 37 anos.
No agora, pela busca em torno do meu ser mulher e por questões de saúde, passei a me dedicar com certo constrangimento a alimentação saudável e a atividade física frequente. Falo desse constrangimento porque ainda permanecem em mim e fora de mim certa cobrança pela polaridade: como uma pesquisadora, doutora, professora da Universidade, pode ter mais fotos com roupas de malhar e de biquíni nas redes sociais, do que fotos com os trajes designado estereotipadamente para as professoras? Me inquirem. Como uma feminista negra pode dar tanta atenção ao corpo? Como se essas práticas de autocuidado e de consideração central do físico não fossem também importantes pautas do feminismo negro...
Mas confesso que ainda me aflige pensar que o normativo quando se fala em beleza do corpo feminino está associado a uma pele quanto mais clara melhor, a um cabelo liso ou alisado, a narizes finos, a olhos azuis ou verdes. Me preocupo quando me estresso com os meus fios brancos que já insistem em denunciar que já passei dos 40. Nem sei se me aflijo mais com os fios ou com a minha própria neurose em escondê-los. Essa insatisfação significa que envelhecer não cabe na norma de beleza. Numa fase de pouco autoamor, ouvi de uma colega aparentemente feminista, ao ver meus cabelos não pintados, que eu corresse para empretecer os brancos porque aquilo me fazia parecer desleixada. Certamente, ela não diria o mesmo das garotas escovadas e com mechas, que apesar dos cabelos poucos saudáveis, sujos, enfraquecidos e cheios de química se adequam mais ao tal do padrão. Por fim, sempre olhei para mim - uma mulher nunca magra, sempre cheia de pernas, braços e bunda - com dúvidas e temores. O 36 tão sonhado nunca vi passar pelos meus quadris que no auge da minha rara magreza comportam apenas o 42. Me entristece ver as fotos da minha infância e adolescência em que eu me julgava uma pessoa imensa, e eu era apenas uma menina com largos quadris, pernas e braços longos, seios fartos. Tinha no máximo um sobrepeso que não me prejudicava a saúde física, mas massacrava minha saúde mental.
Tenho uma amiga negra um pouco mais velha, com sobrepeso e solteira que diz de forma jocosa uma violência sofrida... Ela afirma que na Balada quando vê jovens, magras e brancas, fala para si mesma: “fudeu”. Então, espera os caras escolherem as brancas, depois as magras, depois as jovens. E ela fica num dos últimos lugares da fila à espera de um boy que a deseje. E eu fico a pensar se está no campo do desejo mesmo esse preterimento a ela. E chego à conclusão que a tardia escolha por essa amiga nas festas se dá mais por racismo, gordofobia e questão de faixa etária do que por ausência de afeto, atração física, tesão, excitação.
Uma das provas disso é que essa amiga não tem namorado, mas ela trepa muito. Ela tem muitos amantes. Mesmo na solidão de seu apartamento, está sempre com uns boys, seja em casa, nas redes sociais ou na rua. Os caras a procuram, ligam para ela. Ela tem uma vida sexual bastante ativa, mas tem dificuldades para arrumar um namorado, um companheiro, um esposo, um marido seja lá como se nomeie essa pessoa que além de trepar com você trancafiado nas paredes de um quarto, também desfila com você nas ruas, te apresenta para a família e muda o perfil de relacionamento do facebook.
Então, eu penso que há uma contradição aí, porque esses corpos femininos fora do padrão hegemônico atraem o desejo e também o afeto do outro para si e atraem muito. Essa amiga diz que quando quer dar um basta naquele cara que sempre a procura para sexo que já não se pode mais ser considerado como casual, dada a frequência, os caras simplesmente enlouquecem, fazem cena de filme romântico americano, prometem amor eterno. E eu me pergunto: se fazem isso, porque não assumem essas mulheres para além do espaço íntimo, ainda que elas queiram? Então, eu reafirmo que essa não escolha pelas mulheres pretas, gordas, mais velhas não se dá na maior parte das vezes pela ausência de desejo e afeto, mas sobretudo por algo mais do social do que do íntimo. Também entendo que quanto mais a gente fala disso mais mulheres negras, gordas e mais velhas questionam o padrão excludente, tomam a ideia de beleza para si e rompem com o sexismo, se vendo como bonitas e defendendo seus próprios padrões de beleza.
Eu sei que mulheres brancas, magras a até jovens também possuem reclamações legítimas. Nenhuma mulher cabe em padrão tão limitante e irreal, nem as super top moldels. Elas também são achincalhadas quando escapa nas fotos uma estria na bunda. As fotos delas também passam por uma série de aplicativos para a adequação de seus corpos pretensamente perfeitos. Mas há de se pactuar que umas mulheres – justamente por questões de raça, classe e faixa etária – são mais preteridas que outras.
Nesse caos repressivo por qual os corpos femininos têm passado na história do patriarcado, há um reencontro. Aliás, um enamoramento. E essa paquera sensual, erótica e intensa é de mim para o meu próprio corpo feminino. Nada tem a ver com estratégias para potencializar o desejo do outro – geralmente um macho – sobre o meu corpo. O fato é que a duras penas e olhando para o meu corpo sem véus nem subterfúgios, comecei a perceber que há um corpo que me abriga, me acolhe, me conforta. Há um corpo no qual me sinto segura e dona de mim. Esse corpo não está dentro da normatividade, porque ele não é magro, não é branco e não é mais tão jovem. Entendi – ou inventei – que esse corpo tem que ser fora de qualquer padrão mesmo, porque a ordem do universo é a diversidade e só existe uma eu no mundo. Eu não caibo e me esforço para nunca querer caber num padrão, seja ele da superioridade magra ou do empoderamento gordo, por exemplo. A minha terapeuta sempre me chama atenção do quanto eu quero me filiar a esse ou outro bloco e a resposta talvez seja eu perceber que o meu corpo de mulher pode muito, ele é livre, não cabe em caixas, não tem limites.
Entretanto, se eu parar por aqui, terei uma visão ingênua e descontextualizada, pois ao mesmo tempo que meu corpo é livre, eu vivo num mundo que não é livre, que é sexista, patriarcal, racista, gordofóbico etc. Para além disso, vivo num mundo onde pessoas enriquecem construindo limites e insatisfações sobre e para o meu corpo. Por isso, esse corpo livre também precisa ser político e se rebelar. Esse corpo precisa perguntar-se a si mesmo e lançar perguntas ao mundo sobre as razões de tantos limites, repressões e violências. Esse corpo precisa não se conformar nem se confinar. Ele deseja se expandir e se afirmar cotidianamente.
Não querendo desdizer o que eu já disse antes, afirmo: não descarto o outro como fundamental para eu me assenhorar do meu corpo. E no meu caso, esse outro ou esse alguém que eu quero despertar o desejo sobre o meu corpo é geralmente um homem. Que como diz uma amiga minha: “homem é bom, mas eu não recomendo para ninguém”. E eu não recomendo justamente por esse homem na maior parte das vezes estar imerso no sexismo,  ser defensor de um padrão e juiz da normatividade dos corpos femininos. Eu não quero isso para eles também. Não quero que os corpos deles sejam escravizados por uma norma de beleza masculina. Até porque no meu ideal de beleza dos homens para além do corpo físico, me chama a atenção a inteligência, a sensibilidade, o bom humor, a sedução.
Só que apesar da minha identidade ser construída também a partir desse olhar masculino, eu sei que esse processo de afirmação de mim não só perpassa pelo olhar do outro. Eu descobri que invisto fortemente no corpo que me sustenta não apenas para mero prazer do macho. Quem se deleita e goza no meu corpo sou eu mesma, por isso, devo tratá-lo como um templo sagrado, como uma pauta política e ideológica de minha existência. Meu corpo é pauta do feminismo negro e cuidar dele e amá-lo e querer que ele seja saudável e pleno é uma ação política. Não é justo que, tendo cinquenta trilhões de células que desempenham inúmeras funções no espaço do meu corpo, eu o negligencie, o maltrate ou o violente, prendendo-o a padrões limitadores e até impossíveis de me encaixar. Deus me livre de entrar numa fôrma e aniquilar a liberdade deste lugar que é a única morada de minha alma.