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segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

AS MALUQUICES NOSSAS DE CADA DIA: À INCANSÁVEL!

AS MALUQUICES NOSSAS DE CADA DIA: À INCANSÁVEL!: Sempre que penso nela, fico confusa, porque desde o início da sua história de vida, ela rompe paradigmas. Contra tudo e contra todos...

À INCANSÁVEL!




Sempre que penso nela, fico confusa, porque desde o início da sua história de vida, ela rompe paradigmas. Contra tudo e contra todos, com a ousadia que lhe é peculiar, a menina religiosa da ilha casou-se com um homem desquitado, mais ou menos na década de 50 no interior da Bahia.
Neste tempo, viveu uma vida, como ela mesma afirma, de conto de fadas. Porém, esta foi logo interrompida, pela morte do amado, após sete curtos anos de casamento. Daí, experienciou tristemente sua viuvez. De certa forma, fez como “escolha-penitência” viver em prol dos seus. E deles cuidou, mas também interferiu em suas vidas. Foi quem curou. E muitas vezes, inconscientemente, foi quem feriu. Porque qualquer um cuja chaga está aberta e sangra jamais pode sarar o outro sem deixar escapar o sangue que escorre em suas mãos de cuidados.
É comum muitos falarem dela com um misto de admiração e rancor, graças a sua forma incisiva e radical de defender seus posicionamentos. Apesar disso, acho que todos a reconhecem como a pessoa que os ajudou a ser quem são; que os deu a mão derradeira e os amou incondicionalmente.
É uma Aracne genuína. Costuma dizer que vive do que costura. E assim é. A tecedeira ousada escolheu percorrer sua trajetória, desafiando quem cruzar seus caminhos, fossem deuses ou rainhas!
Na minha adolescência, tinha medo e um pouco de ciúmes dela. Sempre me chamou de princesa, apesar disso não cansava de falar o quanto eu deveria emagrecer para entrar nos belos vestidos de noiva que costurava e o quanto deveria espichar meus cabelos duros para parecer-me com a princesa dos contos. Ela também insistia que devíamos ter modos e saber de etiqueta. Mas até hoje junta farinha nos caldinhos de comida que sobram. Dizem que ela come de mão. Eu jamais afirmaria isso. Vai que este texto cai nas mãos dela...
Com o tempo, aproximei-me mais dela. Não por ser o que ela impunha, mas justamente por defender ser o que eu queria ser, que era uma forma de seguir os caminhos que ela mesma havia trilhado: o caminho de ser quem é de cabeça erguida. Talvez ela nem desconfie, mas eu acho que, no fundo, é uma feminista de carteirinha. Nunca foi acanhada. Pelo contrário, é a pessoa mais altiva que conheço!
Hoje, essa mulher envelheceu e eu tenho por ela um amor convertido em carinho e admiração que são enormes. Tenho descoberto nela uma graça irônica que está também presente em mim. Deixou de ser a costureira das ricas socialites estrangeiras. Disse que a última costura que faria seriam os vestidos de casamento meu e o da minha irmã. E assim os fez: impecáveis, como os de princesas que nos convenceu a sermos.
Agora, virou construtora. É uma trabalhadora incansável. Construiu das cinzas e do terreno abandonado um condomínio. É uma João Romão de saias. Sai às cinco da manhã do bairro nobre onde mora, pega vários ônibus (não por causa da distância, mas simplesmente porque como tem passe para idoso e não aguenta esperar os enormes engarrafamentos soteropolitanos, ponga de um ônibus a outro para ver se chega mais rápido). Lá, faz de um tudo: constrói, se precisa construir; cobra se precisa cobrar; briga se precisa brigar.
Sua idade é guardada em sigilo. E não é por vaidade feminina. Ao contrário. Ela precisa parecer mais velha (apesar de ser mais nova) para assegurar seu lugar de matriarca da família.
Sua ousadia já virou mito e piada. É católica apostólica romana. Religiosa em excesso, para ela todos os dias às dezoito horas, esteja onde estiver, é preciso ficar contrita, acender velas e rezar o terço. Conta a boca pequena, que a despeito do que as religiões neopentecostais tem agressivamente feito contra os fiéis de outras religiões, essa senhorinha, retornando de “trabalho”, em mais um dos engarrafamentos, deu-se conta que em dois minutos já seriam dezoito horas e que ainda estava dentro de um ônibus em frente à Catedral da Fé da Igreja Universal do Reino de Deus...
Não contou conversa, desceu do ônibus, terço em punho, entrou na Igreja do Bispo Edir Macedo. Antes de sentar-se para rezar, avisou ao Pastor: “Oh, meu filho, vou rezar meu terço aqui”. O pastor óbvio ficou perplexo e silenciou. Não iria contrariar aquela senhora, no mínimo, maluca.
Conto essa história engraçada, porque penso o quanto isso a traduz. Essa é a imagem que tenho dela e vou guardar sempre em mim como lição de vida. Não há portas que a impeçam de fazer o que acha devido. Ela vai, segue, entra onde sabe que deve entrar. Numa família onde os homens pensam mandar, ninguém dá um passo sem consultá-la, ou melhor, obedecê-la. Geralmente, se traveste da senhorinha meiga e delicada. Até pisarem em algum calo dela ou dos seus, e esta incansável mostrar garras e dentes afiados. Daí transforma-se rapidamente numa leoa e ruge alto, demarcando seu lugar e dizendo pra que veio.
Tê-la por perto é um presente. De grego, talvez. Porque com ela se aprende muito, mas por caminhos tortuosos, complexos. Compreende-se que a vida é mesmo uma trajetória difícil e que nós todos, especialmente, aquelas que vieram ao mundo com um vazio entre as pernas, não devemos nos acanhar. Devemos antes de tudo ser, como ela, incansável em seus propósitos. E quem tiver olhos para ver que repare!