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segunda-feira, 8 de outubro de 2012

ESCURIDÕES EM DIAS SOLARES

“Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio” (Fernando Pessoa, Chuva Oblíqua).

Tem dias que o queixo teima em ficar encostado rente ao peito e leva nosso olhar para perder-se no abaixo. Nada de amplidão de céu azul. Só se tem a pequenez do chão marrom na nossa frente. E não adianta as pessoas dizerem que se é filha de Oxum, que se tem íris ponta de lança; já ter feito trocentos anos de terapia ou estar convencida de que se gosta do ser que se é. Nada nos convence a arrebitar narizes e brilhar olhos. Nada nos acende a alma.

Fazemos mil avaliações do porquê do olhar melancólico; do porquê da cara amarrada. Buscamos rejeições na infância, buscamos tanta coisa e nos deparamos com o olhar desafiador do outro. É ele que nos maltrata, que nos exclui. É ele que nos invade e nos habita. É preciso digerir esse olhar. Compreendê-lo. Interpretar o mistério da energia que ele – o olhar do outro – desprende, atingindo-nos. E não adianta dizer: “nem te ligo, sou mais eu”, pois nessas horas tudo é menos. Tudo é ausência.

Não tem jeito, o corpo fala. Morde-se o lábio, balança-se a perna, franze-se a testa. O bicho carpinteiro se apossa de nós e nos denuncia. Descobre-se uma dor corporal. Logo abaixo do peito. É tão forte. É física, concreta. Vê-la tão palpável nos ameaça e coloca não só o olhar no chão, mas a nossa inteireza... Sair desse lugar é um exercício árduo de achar essa outra mais solar, mais confiante, mais segura que também é de nós. Cadê ela? Onde ela se esconde? Por que o olhar desse outro a eclipsou? Aí, lembramos, acertando contas com o real:“existe alguém em nós e muitos dentre nós esse alguém que brilha mais do que milhões de sóis, e que a escuridão conhece também”...

Sim, me afirmo solar. Apresento-me assim e bato a carteira radiante na mesa. Sou dessas expansivas, que fala com as mãos, que sorri largo, que faz piadas de minhas certezas e das verdades outras. Canto, danço e sapateio no meu diário. Mas, impossível negar: escondo em mim escuridões... As conheço não só porque as vivi, mas, sobretudo porque já me escarafunchei de corpo e alma em seu lamaçal. Já bebi de suas águas, já me acomodei nelas e resisti em sair de suas entranhas. Já gostei da escuridão. Na verdade, não era um gosto; era um hábito.

Um rápido olhar para cima outrora me salvou... Nem estava planejado. Mas era a hora da cabeça rodar... Piruetas outras. Porque dor não tem hora marcada. Vai embora tão sorrateira como chegou. Ver luzes multicores nos dá asas. É tão fugaz o renascer. É tão célere fazer de cinzas brasas. No tempo do escuro, escolhi-o porque a literatura me convenceu que para cruzar caminhos de contramão era preciso zangar-se com a vida; aborrecer-se com as ofertas mundanas, irritar-se bravamente com os sentimentos mais humanos. Era preciso perguntar com ferocidade. Mas a idade – tão bela, tão certa, tão decisiva – mostrou-me espelhos feito de verdades. E fez-me enxergar que ser melancólico num mundo tão cruel é fácil, banal, ordinário. É o óbvio! Heróico mesmo, gauche de verdade é aquele que consegue gostar de sol; refestelar-se em águas abundantes; abraçar o humano, comendo-o. Este que se alegra é quem ousadamente decide ir pelo caminho inusitado. É aquele risonho que segue o percurso de quem nunca foi e de quem viu com olhos de primeira vez. Até porque quem tem heranças que atravessaram o Atlântico Sul sabe que alegria nunca é alienação; é antes de tudo uma resistência possível para poucos. É uma forma de inquirir: “não me quer? Não me olha? Não me toca?” E depois, espocar risos abundantes e fundos. Incontroláveis. Sinceros. Ora gargalhadas. Ora só risos de Monalisa. Talvez seja uma defesa. Mas, certamente, a mais bela, corajosa e saudável arma.

No agora, o queixo se desprende levemente do peito. Ainda não se ouvem sons festivos, nem se regala em mesa larga de fundo de quintal com abundante ceia. Ainda não, mas se sabe que o tempo que nos afasta de tudo isso mora no bem ali e para quem é do dia, sóis chegarão... Plenos. Abundantes.