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sexta-feira, 16 de novembro de 2012

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

ENTÃO É NATAL?!?!?!

Mais outra maluquice. Em pleno maio, comecei a pensar no Natal. Vê se pode? É porque nunca na história de anos passados, houve uma comemoração atrás da outra, como neste 2011. Páscoa, colada com dia das mães, um monte de outdoor de São João. Daqui a pouco é Natal, mesmo!

E como minha cabecinha não pára de pensar, já fui ficando incomodada com a rapidez do passar do tempo, com o consumismo desenfreado. Ô cabeça que não pára. Fiquei viajando (e sofrendo um pouco, é claro) com certa loucura que ocorre em todo dezembro (quiçá em toda brecha de tempo que a indústria encontra para vender). Todos criticam o comprar, comprar, mas também participam. Dentre este todo mundo é óbvio que eu me incluo até o último fio de cabelo. Já no final de novembro, faço listas de presentes e presenteados, vou ao comércio inúmeras vezes para comprar os presentes, gasto mais de 30 horas neste empreendimento. Compro embalagens, durex e fitilhos. Gasto em média... Deixa para lá. Nem eu mesma sei. E nem teria coragem de revelar mesmo.

Nessa fúria louca de comprar, comprar, embalar, embalar, fico a pensar no espírito que move/origina todos estes eventos... Como uma boa menina cristã e educada pelos dogmas católicos, apesar de ir com a multidão, algo fica martelando em minha cabeça: por que me envolvo de forma ensandecida nesta onda? Sei da superficialidade disso, sei que muitos dos presentes que compro são só para cumprir um papel, critico o consumismo excessivo, discuto a linha tênue entre amor, amizade e hipocrisia. Em suma, sou uma das chatas do politicamente correto.

Nessas viagens para responder a tal provocação desnecessária, mas insistente, lembrei dos natais que tive e talvez esteja aí a descoberta da pólvora. As coisas que lembrei estão nítidas na minha memória afetiva, mas eu nem mesma sei se elas de fato aconteceram ou se fazem parte daquilo que na memória é misto de realidade e invenção. Não tenho como as comprovar. Talvez compartilhá-las seja uma forma de ouvir alguém dizer: “foi mesmo, eu também me lembro”. E essas testemunhas oculares dessas minhas histórias de natal sejam as provas daquilo que vivi. Ou não, sei lá. O que importa?

Jamais me esquecerei, por exemplo, da vez em que meu pai muito seriamente nos disse, a mim e a Zau, que não teríamos presentes de Natal. Fiquei triste, pois o peso de ser uma boa menina foi sempre um fardo que tive de carregar, sendo assim não havia razão para tal decisão extremista. Depois, veio a explicação, iríamos a alguma loja de atacado de brinquedos, acho que era A.Gomes, compraríamos muitos presentes para meninos e meninas das nossas idades, e no dia da confraternização da enorme indústria da qual meu pai era dono (foi nisso em que sempre acreditei, é óbvio que não era verdade, mas também não era mentira – coisas da memória), eu e Zau daríamos aqueles presentes a cada funcionário para eles entregarem aos seus filhos. Me lembro de pegar cada presente e entregá-los. Me senti tão feliz, tão maravilhosa e importante, me senti uma pertencente verdadeira desta coisa imensa que chamam de humanidade. E não me venham provocar com aquela história de assistencialismo nem caridade. Eu era a menina com a mão extendida para o outro e um presente na mão. E como disse Clarice, hoje descubro que sou e sempre serei esta mesma menina de presente na mão e olhar fixo na mão do outro que se aproxima da minha. Que bom!
Não há como esquecer também dos Natais na casa de minha vó Benita em Lauro de Freitas. Ganhava tantos presentes. Minha família nunca foi rica. Éramos de uma classe média bem média, sempre labutando muito para não descer de padrão. Coisa bem brasileira. E os presentes eram vários, mas jamais os caríssimos jogos super-mega-master-plus-hi-tech.A casa era tão linda, tão cheia de gente. Meu avô estava lá para animar tudo, para receber as pessoas e fazer com que nós acreditássemos que aquilo era o mundo inteiro. Eu lembro da cor vermelha emanando de todas as coisas, lembro de um presépio colorido que ficava armado na enorme estantes da sala e lembro da areia que colocávamos no lugar onde ficaria o presépio. É impossível esquecer do algodão da árvore de natal, certamente para dar um ar mais europeu, já que meu avô Umbelino como todos sabem era sueco (de pais negros e de Maragogipe, mas era sueco).

Natais como aqueles nunca mais senti. Em um Natal, recebi de meu avô, uma caixa enorme com fantoches maravilhosos de todos os personagens da história de chapeuzinho vermelho. Não era um brinquedo, era um convite a fantasia, a criação, a contação de histórias. Talvez por isso, eu ame tanto as palavras, estude-as com a minha alma e adore conta-las. Inesquecível também uma boneca bebê japonesa (olhinhos puxados e tudo) que Zau ganhou. Eu que falo tanto em diversidade, em respeito as múltiplas identidades, jamais vi uma boneca japonesa para presentear aos meus trocentos sobrinhos. Como será quando nascer um bebê Fugiwara, onde mesmo acharei tal presente? Onde é que eles arrumavam estes brinquedos? Eram coisas tão magníficas, tão ímpares. Onde estão estes brinquedos? Se eles não vendem mais, será que eles existiram um dia?

Depois, vi inúmeras vezes minha avó, minha mãe e minha tia Lúcia fazendo as listas de presentes. Nelas estavam as pessoas muito amadas, as queridas e as nem tanto. Elas iam juntas a velha e boa Avenida Sete comprar os presentes. Passavam o dia inteiro na rua, nos levavam, riam muito, se divertiam, brigavam também, sempre se perdiam uma da outra, usavam aqueles instantes para celebrar o amor que tinham umas pelas outras. Depois era a casa cheia de presente. E isso, era mais magia para os meus olhos, pois uma casa farta e cheia de presentes é tudo que uma criança quer. Júlia e João o Pedro que o digam.

O próximo movimento é embalar e levar os presentes. Por muitos anos, minha mãe fez e faz uma peregrinação para a entrega dos presentes. E na lista estão desde dona Anita, ex-servente do Colégio Kleber Pacheco, até a secretaria de Bem estar Social da prefeitura de Lauro de Freitas. Para minha mãe, mais do que entregar o presente ao presenteado; é a hora de se sentar no quintal da casa de d. Anita e falar sobre o tempo (de outrora, de agora e de sempre).

Há alguns anos, veio o primeiro emprego e aí tive uma vontade imensa de fazer a primeira lista. Nela havia somente sete nomes: GUIDO, NORMA, ZAU, LÚCIA, SUELI, SANCI, CARMINHA. Depois a família aumentou, chegaram muitos novos amores e a lista também cresceu. Então acho que é por tudo isso. Creio que a resposta para essa fúria desenfreada na qual me insiro seja uma enorme vontade de retribuir às pessoas que me proporcionaram essas memórias novas histórias para contar. Desejo mesmo que em cada presente esteja o meu amor e o meu agradecimento por todas essas historinhas, sejam elas inventadas ou acontecidas.

UMA HISTÓRIA MINHA DE LEITURA

Lauro de Freitas, Bahia, 20 de janeiro de 2012.

Oi, Pepeu! Depois de uma semana em Salvador, já estou cá de volta a Porto Alegre, lembrando-me da nossa despedida no aeroporto. Todos com olhos vermelhos de lágrima e só você bem alegre. Pensavas que viria comigo, não era? Até tentou entrar no saguão de embarque e quando me viu chorar, disse bem alto: “Vamos ser alegres em Porto Alegre”. Todos caímos na risada, menos você, porque já percebia que eu entrava por aquela porta sozinha, sem você, sem Mamá, sem nossa família. Foi só ai que se desesperou e acho que de tudo entendeu bem pouco...

Mas enfim, nem tudo é tão alegre aqui em Porto Alegre, como você pensa. Há coisas bem estranhas por estas bandas. E você, como bom detetive que é, sabe o quanto eu, medrosa de carteirinha, fico assustada com coisas misteriosas. Pois bem, contando ninguém acredita. Estava na casa onde moro, quando do nada, bateram na porta: toc-toc. Perguntei quem era e a voz disse apenas: “Correio”. Abri a porta bem devagarzinho, já que não tenho olho mágico nem na porta nem na cara. Então vi aquela figura assustadora: era um velho mal encarado, com uma cicatriz no nariz, barrigudo, de capa preta e... Sem farda dos Correios Brasileiros. Ele rapidamente me deu um papel, pediu que eu assinasse (e assim o fiz). Entregou-me um livro bem pequenininho com capa de madrepérola. Parecia um breviário. Você sabe o que é um breviário? É um livro em que os religiosos colocam suas orações.

Entrei em casa e fiquei pensando de onde viera aquele livrinho tão pequeno, sem identificação do remetente. Tomei coragem e abri-o. De lá de dentro, Pepeu... Você não vai acreditar... Aliás, você eu sei que irá compreender, mas se fossem seus pais ou sua avó. Hahaha. Duvido que acreditassem nessa história. Iriam dizer que era um sonho ou mais uma das minhas invencionices... Pois bem, lá dentro, só havia a imagem de um longo caminho vazio. Não havia nem flores, nem bichos, nem florestas, nem gentes. Achei tão esquisito, mas quando tentei folheá-lo, saíram das páginas pós brilhantes. Eu de grandona que sou fiquei pequenininha feito o Polegar e cai dentro do livro. Pode? Meu coração saltava de tanto medo. Eu suava que nem um cuscuz. Olhei para todos os lados e nada vi. Tentei buscar uma saída, mas só havia o nada em minha frente. Meus olhos se encheram de lágrimas, mas, como não existia outra opção, decidi seguir pelo caminho para descobrir onde chegaria e como faria para voltar para casa. Há poucos metros, avistei uma enorme placa, onde se podia ler: OS LIVROS ONDE SE DESEJA MORAR. Achei engraçado, apesar de toda aquela confusão e angústia. Onde já se viu? Livros para morar?

Seguindo a placa, encontrei uma casa enorme, parecia uma velha fazenda, cheia de janelas grandes e toda avarandada, mas não havia viva alma. Bati na porta delicadamente, e ninguém atendeu. Como achava que não havia ninguém lá mesmo, abri a porta. Ledo engano... Lá estava um monte de gente, amordaçados, amarrados, com olhares entristecidos. Eram conhecidos, mas eu não me lembrava bem de onde. Havia uma lesma[i], bem gordona, com roupa de festa, que parecia estar se arrumado para ir a um aniversário. Do outro lado, estava um grupo de crianças pequenas, todas amarradas umas nas outras, uma fedia tanto que não sei como os outros podiam suportar e a outra, aos prantos, segurava um coelhinho[ii]. Bem, no centro, estava uma menina. Devia ser a mais perigosa, pois estava ela e outra mais velha, amarradas de cabeça para baixo, com vara de condão nas mãos, um relâmpago no pescoço e um enorme bolinho de chuva enfiado na boca[iii]. Espalhados pela sala estavam vários bichos de estimação, até um bicho de pé, todos eles amarrados ao pé de Sua Avó. Calma, não me refiro a Vovó Norma, mas ao cãozinho basset que não podia nem se coçar e muito menos latir.[iv] Pepeu, não fique assustado, mas não eram só esses bichos: tinha mosquito, pingüim, leão, galinha d’ángola. E o pobrezinho de Assis... Isso mesmo! São Francisco, descalço, de mão e pés atados, literalmente.[v] Que heresia, meu Deus, que heresia! Por último, vi uma galinha, um jumento, um cachorro e uma linda gata[vi]... Estavam amontoados um em cima do outro, parecendo formar um horrendo monstro. Fiquei a pensar de onde os conhecia e sem contar conversa, comecei a soltá-los. Por que você sabe, não é, Pepeu? Corajosa eu não sou, mas injustiça eu não tolero. E aí, menino, foi aquela algazarra. Todos ficaram a falar, a fadinha começava a ter idéias para me agradecer, os bichos queriam festejar, a lesma no seu jeito devagar, agradecia e perguntava se ainda daria tempo de chegar a festa. E cada um tomou a sua direção. Todos arrumaram um lugar no entorno da casa e de uma forma barulhenta juntos começaram a providenciar suas moradias. Só que agora livres a cantar, brigar, bagunçar e correr. Eram muito animados aqueles seres encantados, viu?

Notei que naquele vuco-vuco, tornaram o local menos inóspito, mas o tempo passou e lá estava eu sozinha e perdida novamente. Na agonia, nem perguntei, porque estavam presos, nem como eu sairia daquele lugar. Mas cavucando a memória, lembrei que todos aqueles eram personagens das histórias que me faziam feliz na infância. Lembro-me que eu me agarrava a cada um daqueles livros e dormia com eles, comia com eles e pedia que os adultos os contassem várias vezes da mesma forma, sem esquecer nadica de nada. Eu queria viver intensamente lado a lado, quando menina, em cada um daqueles livros, com cada um daqueles personagens. Mas seguir era minha única opção. E fui. Até que outra placa apareceu: OS LIVROS QUE SAEM DA BOCA. Achei mais uma vez engraçado e decidi arriscar. Eu estava ali mesmo, perdida, sem noção de nada. Não custava descobrir.

Depois de alguns metros da casa, vi um mar enorme e uma casa grande, de pau a pique. O céu era de um azul intenso, mas o sol de rachar deixava o calor abrasador. Nem bati na porta. Fui logo entrando. E dessa vez, o susto foi maior. Era uma cena de terror de verdade. Então, se prepare, Pepeu, porque tem que ter muita coragem para ouvir o que agora eu vou contar. Havia uma mesa. Nela estavam sentados velhos e velhas com as bocas costuradas e o olhar perdido no nada. Meu Deus, eu não sabia bem o que fazer. Como descosturar bocas costuradas? Você sabe? Eu também não sabia, mas como dizem os antigos: “necessidade faz mulé véia parir”. Com o peito apertado, fucei a casa toda e achei uma faca afiada. Tive tanto medo de cortar os pobres velhos, mas com delicadeza, tirei as linhas de cada boca, cuidando para não sangrar ou ferir. E uma lágrima abundante correu do olhar deles em agradecimento. Tinha a mesma sensação da casa anterior: achava que os conhecia. Até que ao sair a última linha, os quatro velhos saltaram sobre mim, me apertando num abraço já sentido. Foi a vez das lágrimas caírem dos meus olhos... Eram meus avós, os seus bisavós, Pepeu. Você pode acreditar nisso? Há quanto tempo não os via? Há quanto tempo não os ouvia? Nem posso contar nos dedos. Maria, Antônio, Benita e Umbelino. Lá estavam eles, levantando-se da mesa, sorridentes e já colocando a boca liberta no mundo para contar histórias. Foram à cozinha da casa que ficava nos fundos e tinha uma enorme mesa. Do nada, surgiram bolo de puba, cuscuz de tapioca, banana da terra cozida e frita, um fruta-pão quentinho, um mingau de milho, tapioca seca, café, suco e muita siriguela, pitanga, manga. Que mesa farta! Não havia dúvidas. Eram meus avós mesmos!

Umbelino já começou fazendo graças e jurando de pé junto ser um rico fazendeiro em cuja fazenda há um rio cheio de bacalhau. Afirmou também que nas suas terras existia somente uma vaca (“para que mais?” ele perguntava) que num dia dava leite, no outro, dava leite condensado, no seguinte, produzia queijo e, no último dia, o queijo já saia na cuia. Depois, a vaca descansava, porque era uma trabalhadeira retada. Maria vinha docilmente aconselhando, dizendo que rezar era importante. A cada conselho aparecia um dito popular reflexivo: “quem a boca do meu filho beija, a minha adoça” ou outros cheios de picardia: “quem é dono dos beijos é dono dos peidos”. Antonio falava das histórias de seu irmão Manoel, tão diferente dele. Contava da raiva que o irmão sentiu em não ter sido convidado para o forró, porque o povo das redondezas achava que festa com Manoel sempre dava em confusão. Foi a deixa para mais uma das suas muitas artimanhas safadas. Dizia meu avó que o irmão se escondeu do lado de fora de uma das janelas. O arrasta-pé, comendo no centro, o povo suando e ele colocando pimenta malagueta de uma em uma no salão. Até que o povo começou a pisar nas danadas e a se coçar e foi um levantar de saias, foi um arde-arde que todo mundo acabou a festa e dali por diante aprenderam que folia com Manoel era bem mais tranqüila do que sem o sapeca. Por último, falou Benita sempre tão delicada, tão meiga. Uma mulher tímida, cuidadosa, mas que na hora de contar histórias só sabia assombrar. E começava a falar da menina que mesmo morta chamou o médico na estrada pra salvar a mãe; falou da madrasta que enterrou a enteada vivinha da silva só porque a pobre menina se descuidou da figueira; falou de um homem belo e sedutor todo de branco, que na verdade era o diabo. Por último, me chamou perto dela, colocou-me no colo como se criança ainda fosse e pegou debaixo da cadeira de balanço onde estava sentada várias gravuras de lendas brasileiras. Ela me mostrava as belas imagens e contava cada uma das narrativas. A do Boitatá, Caipora, Vitória Régia, a dos Bandeirantes, do Negrinho do Pastoreio, da Iara, da Mandioca, do Guaraná[vii].

Adormeci e quando percebi já era de manhã e eu estava sozinha na varanda. Olhei para dentro da casa e estavam todos em seus afazeres, cozinhando, cosendo e conversando. Percebi que muitas crianças tinham aparecido e ouviam felizes as histórias dos meus avós. Fiquei sem jeito de falar a eles da minha partida e com o coração aos pedaços decidi ir embora silenciosamente. Já na estrada, vi-me sozinha mais uma vez. Ao olhar para trás, vi todos eles rodeados de crianças, acenando para mim. De suas bocas saiam livros inventados e livros de verdade. Muitas de suas histórias me aninhavam, me assombravam, me faziam rir e adormecer. Nos seus rostos, havia felicidade e compreensão.

Mais uma vez, a emoção me impedira de buscar as razões que explicassem porque os havia encontrado daquele jeito e de que forma conseguiria retornar para casa. Mas meu coração estava pleno de gratidão pelo efeito que aquelas bocas contadoras de histórias haviam desde muito plantando em mim. Mas como seguir era mesmo minha única opção... Lá fui eu de novo. Olha, Pepeu, foi bom parar na casa dos nossos antepassados. Além de ajudá-los a sair daquele sufoco, pude descansar e recarregar minhas baterias para prosseguir. Você deve estar orgulhoso de mim, não é, Pepeu? E achando até que eu tenho os super-poderes dos heróis que você adora. Que nada, menino. Sou gente de carne e osso.

E estava mais uma vez completamente desnorteada. Andei léguas e nada de placas. Até que vi um muro branco, cercando toda uma casa, cheia de grades e um enorme portão. Parecia uma escola... Ou uma prisão? Confesso que tive muito medo, pois nenhumas das opções eram agradáveis para mim. Aproximei-me do local. Não havia placas. Apenas uma pichação na parede que dizia: “LIVROS DE CONFORMAÇÃO”. Aproximei-me do portão e logo veio um homem fardado que me inquiriu: “Quem é? De onde vem? O que faz? O que deseja? Volte depois”. Falou tudo num rompante, sem esperar resposta e me deu as costas. Que deselegância, Pepeu. Você sabe que sou medrosa, mas indelicadeza eu não suporto... Então, com as mãos nas cadeiras e dedo em riste, respondi tudinho: “Sou Luciana. Venho da Bahia. Estou perdida. Preciso de ajuda. Não posso voltar depois. Me ajude agora, logo e rápido”. E sabe o que eu descobri? Para um mal educado, um mal educado e meio. Só foi falar grosso e ríspido, o talzinho voltou e sem pestanejar destrancou os portões. Lá dentro eram muitas salas e em cada sala havia crianças, sentadas em fileiras em total silêncio com ouvidos enormes e sem bocas. Crês, Pepeu? Existia também em cada sala uma mulher, com um chicote numa das mãos, na outra, livros ‘embolorados’ e sem ouvidos nem olhos. As mulheres eram só boca. E como falavam. Liam dos livros maneiras de ser educado, não escarrar no chão, não arrotar na mesa, ser bom menino. “Eita, vida besta, meu Deus”.

Notei que havia um enorme pátio e nele estavam amontoados diversos livros. Fui até a pilha e encontrei livros que amava. Vi logo os livros da Coleção Vagalume, como O Caso da Borboleta Atíria, Meninos sem pátria, Açúcar Amargo, Sozinha no mundo. Depois, vi todos os volumes da Coleção para Gostar de Ler. Olhei para cada um deles e lembrei-me dos contos e das crônicas que li de Drummond, Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos. Havia também aquela coleção linda de capa dura, cor bege com letras douradas que minha mãe certa vez me presenteou: O Mundo da Criança. Ah, espalhados estavam os lindos poemas de Olavo Bilac, Cecília Meireles, Vinícius de Moraes, Henriqueta Lisboa. Meu Deus, naquele amontoado, havia um manancial de prazer e saber! Desejei me jogar na montanha bagunçada, quando novamente apareceu o homem do portão, com fósforo e garrafa de álcool em punho. Fiquei perplexa, sem entender bem qual seria o próximo movimento dele. E sabe o que ele começou a fazer, Pepeu? Resmungava, jogando o liquido perigoso nos livros: “Mais porcarias para queimar. Isso não deve estar aqui. Não educa. Não conforma. Sem utilidade alguma”. Por que livros tão maravilhosos tem de ser úteis? Aí, aquela ousada que habita em todo ser vivente, se apossou de mim novamente e puxei a caixa de fósforos das mãos daquele louco. Na minha raiva, abri as salas, puxei as crianças com força e disse que pegassem os livros que quisessem, sentassem-se onde quisessem e começassem a ler. Afirmei que caso a leitura não as agradasse, escolhessem outro e outro livro até encontrarem aquele por que se enamorassem. Empurrei as resistentes mulheres e disse que fizessem o mesmo. Acho que eram todos tão obedientes que nem pestanejaram e fizeram o que ordenei. A partir dali e, nem me pergunte como, Pepeu, mágicas aconteceram... Apareceram bocas nas crianças e olhos e ouvidos nas mulheres. O homem timidamente começou a se aproximar da montanha e foi buscar seu livro também. E pasme, meu lindo menino! As grades se transformaram em janelas, o portão desapareceu, dando lugar a uma linda ponte e cores e flores e frutos e árvores irromperam do vazio. Havia uma “silenciosa algazarra[viii]” de olhos, bocas e ouvidos que iam de um lado a outro lendo e lendo...

Fiquei a olhar aquele movimento e me lembrei que li muito poucos livros indicados pela escola. Na verdade, os achava chatos e sem graça. Pedia que os colegas os resumissem. Depois, fazia o teste e era aprovada. Simples assim. Entretanto, aquela montanha a ser jogada no lixo eram os livros que moravam nas estantes de minha casa e me embeveciam. Eram desprezados pela escola e amados por mim. Nunca me serviram para fazer provas ou para passar de ano, mas me fizeram feliz, constituíram-se em experiência de vida e leitura, não apenas passaram por mim, mas me transformaram neste ser que hoje sou.

Bem, Pepeu, não preciso lhe dizer que saí mais uma vez sorrateiramente, solitária e sem respostas. E também, não preciso lhe dizer que segui em frente por ser esta a única opção que me restava. E fui... Dei alguns passos e vi uma placa, caída no chão cujos dizeres eram: “CABEÇAS INVENTORAS DE LIVROS”. Só que não havia casa, nem muros, nem nada. Andei pelo caminho e vi alguns jovens sentados no chão. Eram mais uma vez conhecidos e dessa vez não tive a menor dúvida. Sabia exatamente quem eram cada um deles. Não havia sido apresentada a eles na infância. Infelizmente. Mas a vida adulta e minha vocação de professora tinham há muito os colocado em meu caminho. Fiquei um pouco a olhá-los. Mesmo inertes, eles eram tão sedutores... Digo isso, pois suas mãos estavam atadas por detrás das costas. A frente deles, havia um enorme piquenique. Havia também máquinas de escrever, computadores, canetas, papéis. Mas tudo intocado por eles. E lá fui eu mais uma vez, já acostumada a desatar nós, a empurrar meninos, a cortar linhas de bocas. Desatei as mãos atadas e das mãos soltas saíram livros. As mulheres se apresentaram: Lígia[ix], Ana[x], Ruth[xi], Elisa[xii], Eva[xiii], Maria Clara[xiv]. Os homens, garbosos, diziam seus nomes: Ziraldo[xv], Lobato[xvi], Ricardo[xvii], Charles[xviii], Hans[xix] e dois irmãos que não se desgrudavam e falavam tudo juntos[xx]. Nem eram necessárias as apresentações, sabia cada nome. E os amava como se amiga de infância deles fosse. Fiquei mais uma vez a ouvir suas histórias. Estavam animados e não paravam de parir novos contos, novas fábulas, novas histórias...

Até que a mais querida, Ana, pediu silêncio e dirigiu-se a mim com ares de sabedoria: “Sabes o porquê de tantos desafios, menina professora?”. Meu olhar afirmava um não, mas “boca não disse palavra”... E ela continuou: “Foi aquele tal de Celso Sisto, contador de histórias e colega nosso no ofício de escrever. A culpa é todinha dele. Estávamos todos adormecidos em sua memória e não é que o danado lhe aperreou até que você seguisse sozinha esse belo caminho?”. É verdade, Pepeu, tenho um professor novo que colocou como dever de casa o exercício de lembrar. E Ruth pegou a deixa de Ana e continuou: “Mas você, subversiva como é, menina professora, percorreu um caminho maluco, cheio de prolixas páginas... E vai dar um trabalhão danado ao pobre”. Ziraldo, com objetividade masculina, aquietou meu coração: “Não se avexe. Essa é a última placa dessa estrada. Na verdade, a penúltima. Olhe pra frente que voltarás para casa e nem vai precisar bater os pezinhos como Dorothy”.

E eu olhei. Havia sim mais uma placa, onde estava escrito: LIVROS DO PORVIR. Fui pelo caminho e lá estava a casa onde moro aqui em Porto Alegre, Pepeu. Entrei nela com satisfação e tranqüilidade. Ao abrir a porta, deparei-me com uma enorme estante repleta de livros nunca lidos. Aí, meu amor, foi só acariciar uma daquelas lombadas, tirá-las da estante e começar novamente a trilhar novos caminhos. Mas essa, meu lindo menino, é uma história que nem sei aonde vai dar. O importante é que retornei sã, salva e doida pra te contar essa deliciosa aventura...

Um grande beijo cheio de saudades da dinda que muito lhe ama;

Luciana Moreno.

[i] Lúcia Já vou indo, Maria Heloisa Penteado. [ii] Histórias em Quadrinhos da Turma da Mônica. [iii] A fada que tinha idéias, Fernanda Lopes de Almeida. [iv] Os bichos que tive, Tatiana Berlinky. [v] A Arca de Noé, Vinícius de Moraes. [vi] Os Saltimbancos, Chico Buarque. Na idade adulta, li os Músicos de Bremmen, recolhidos e escritos pelos Grimm.. [vii] Minha mãe contava muito a história da Dona Baratinha, cantando as canções, inclusive. Mas não cabia inclui-la aqui. [viii] Expressão usada por Ana Maria Machado em livro de mesmo nome. [ix] Lígia Bojunga (A bolsa amarela). [x] Ana Maria Machado (Raul da Ferrugem Azul, Menina Bonita do Laço de Fita, Bisa Bia Bisa Bel, Abrindo Caminhos, Do outro lado tem segredos, No país dos prequetés...). [xi] Ruth Rocha (Marcelo, Marmelo, Martelo; O dono da Bola; Terezinha e Gabriela, As coisas que a gente fala, O Barba Azul...). [xii] Elisa Lucinda (A menina transparente). [xiii] Eva Furnari (A bruxinha atrapalhada). [xiv] Maria Clara Machado (Pluft, o fantasminha; Eu chovo, tu choves). [xv] Ziraldo (Menino Maluquinho, Flicts, As anedotas, A menina Nina, o Menino Marrom, Um professora muito maluquinha, A bela borboleta...). [xvi] Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho, As caçadas de Pedrinho, Negrinha). [xvii] Ricardo Azevedo (Baú do Folclore, Histórias de enganar a morte, Histórias de bobos, bocós, burraldos e paspalhões). [xviii] Charles Perroult (Cinderela, Chapeuzinho vermelho...). [xix] Hans Crhistian Andersen (A sereiazinha, Patinho Feio, A princesa e a ervilha, A pequena vendedora de fósforos). [xx] Os Irmãos Grimm (Branca de Neve, os Músicos de Bremen...).

sábado, 10 de novembro de 2012

ALUMBRAMENTOS

AS (antes-scriptum): Tenho elencado as coisas boas que Porto Alegre colocou em minha bagagem. Certamente, isso se transformará em texto. Todavia, já adianto uma coisinha: as atividades paralelas promovidas na Feira do Livro. Na semana passada, fiz uma oficina, chamada SOLTANDO A LÍNGUA, com o escritor pernambucano Mercelino Freire (outro texto relato para produzir). Muito bom. Maravilhoso mesmo. Dentre as mil viagens e maluquices que ele nos ofertou como provocação, veio essa. Pediu que dissessémos uma palavra que achávamos bela e a partir dela torceu de nós um texto. Um texto que revelasse nosso olhar singular sobre o que todo mundo vê no mundo. Amo a palavra ALUMBRAMENTO, conhecida por mim, ao ler EVOCAÇÃO AO RECIFE, de Manuel Bandeira (http://www.casadobruxo.com.br/poesia/m/evocacao.htm) e a escolhi... Desse encontro, entre as minhas maluquices e as de Marcelino Freire, saíram minhas imagens de alumbramento. Sirvam-se!

ALUMBRAMENTO 1 (DA AUSÊNCIA)
  • Acho que nunca o vi...

ALUMBRAMENTO 2 (DA MEMÓRIA)
  • Vestida de rumbeira, meus pais me puxavam pela mão. A frente, um céu de azul intenso E um mar de gente preta a dançar como se aquele fosse o último dia de toda existência.

AULMBRAMENTO 3 (DO NASCIMENTO)
  • Na madrugada, da bolsa partida, irrompia a vida.

ALUMBRAMENTO 4 (DA APRENDIZAGEM?)
  • Jamais vi Pôr-do-sol Corpo humano Nascimento Mais alumbramento Do que aquele... Plantado em mim por Bandeira.

sábado, 3 de novembro de 2012

10 INFALÍVEIS CONSELHOS PARA FUTUROS ESCRITORES DE LITERATURA INFANTIL

'ANTES' SCRIPTUM: Como se não bastasse uma tese para escrever, envolvi-me num Laboratório de Escrita para produção de textos de literatura infantil, com o Prof. Dr. Celso Cisto. Por conta disso, toda semana, somos convidados (ou convocados?) por ele a escrever texto. Assim, vou postar algumas das minhas produções neste curso a partir de hoje.
1. Escreva. Escreva bastante. Assim, como curar doenças qualifica os médicos; projetar casas, os arquitetos; ensinar gentes, os professores, a única ação que caracteriza a existência de um escritor é a prática constante da escrita.
2. Ao escrever, pense em seus leitores e exponha a eles os seus escritos... É o leitor quem dá sentido (ou não) às idéias que você coloca no papel. Sem ele, você não existe.
3. Ouça sem fazer bicos, muxoxos ou esperneios as críticas e sugestões dos seus leitores. Você escreve para crianças, mas não deve ter o mau comportamento de algumas delas. Saiba ouvir com entrega e educação.
4. Filtre as críticas. Ouça-as com atenção e carinho, mas tenha consciência que nem tudo o que dizem sobre seus escritos deve realmente ser levado a sério.
5. Viva o mundo da criança. Goste do universo infantil; divirta-se com coisas típicas da infância; comporte-se como um brincante. Esta é uma ótima maneira de inserir-se, por dentro, na perspectiva infantil de compreender o mundo e também um jeito barato de viver com mais saúde e alegria.
6. Nunca subestime as pontecialidades das crianças. Não é porque elas não aprenderam tudo sobre linguagem, conhecimentos matemáticos e geográficos, por exemplo, que elas não podem compreender questões mais elaboradas. Até porque nós adultos, tais quais as crianças, nunca sabemos de muitas coisas, apesar de nos fazermos de entendedores de desde parição de formiga a enterro de anão.
7. Conheça a fundo a criança. E para isso a leitura de bons artigos científicos, o estudo aprofundado de dissertações e teses, a presença em eventos acadêmicos sobre infância não bastam (apesar de terem sua relevância). Vá até elas e ouça suas demandas, observe suas preferências e modos de agir.
8. Seja leitor de literatura infantil. Os seus colegas escritores te darão algumas “réguas e compassos” para seguir. É o que se produziu no mundo nesta seara literária que lhe dará nortes e caminhos para trilhar ou para ir à contramão.
9. Não escreva para ser útil ou pedagógico. Não caia na tentação de ensinar a criança a ser boa e educada. A dimensão de vida e humanidade que aportam em seu texto são professoras cuidadosas e competentes e se encarregam sozinhas deste ofício.
10. Faça suas regras. Invente seus conselhos. Ignore os que estão acima. Até porque se conselho fosse bom mesmo, ninguém dava. Vendia-se. E caro!