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domingo, 27 de agosto de 2017

AS MALUQUICES NOSSAS DE CADA DIA: SOBRE CICATRIZES E O QUE SE PODE APRENDER COM ELAS...

AS MALUQUICES NOSSAS DE CADA DIA: SOBRE CICATRIZES E O QUE SE PODE APRENDER COM ELAS...: Ela me disse que, em outros tempos, morria de medo de mostrar o corpo, seja na praia, seja na intimidade com um parceiro. Assustava a ela ...

AS MALUQUICES NOSSAS DE CADA DIA: SOBRE CICATRIZES E O QUE SE PODE APRENDER COM ELAS...

AS MALUQUICES NOSSAS DE CADA DIA: SOBRE CICATRIZES E O QUE SE PODE APRENDER COM ELAS...: Ela me disse que, em outros tempos, morria de medo de mostrar o corpo, seja na praia, seja na intimidade com um parceiro. Assustava a ela ...

SOBRE CICATRIZES E O QUE SE PODE APRENDER COM ELAS

Ela me disse que, em outros tempos, morria de medo de mostrar o corpo, seja na praia, seja na intimidade com um parceiro. Assustava a ela a ideia de revelar o escondido.
Eu concordava, balançando a cabeça, porque despir-se para quem tem mais intimidade com o outro do que consigo mesmo parece mesmo assustador. O medo é de frustrar o que a imaginação do outro construiu sobre nós. Sermos menos do que aquele que nos desejou idealizou. E aí vem outra questão: nosso corpo é sempre tratado mais como objeto de prazer do outro do que de nós mesmas. Custa para nós entendermos que não temos o menor poder sobre os gozos alheios. A gente pode até mediar, envolver, mas cada um só lida com o próprio desejo.
Tudo isso ela me dizia como ares de que já aprendeu a lidar com suas próprias cicatrizes. Me contava, meio garbosa, que celulites e estrias a assustavam menos. Mas ao distanciar o olhar ao longe, ela constatava com pesar: as cicatrizes sempre a intimidaram... Na infância, ela foi a que subia em árvores, vivia em quintais, tomava banho de chuva, ia para a praia à pé, onde ficava esticada ao sol, “lagarteando”. Por isso, desde cedo, marcas diversas povoaram seu corpo.
Um dia me falou sobre um texto que recebera via whats app. Narrava uma tradição oriental de não descartar louças quebradas, mas corrigi-las com uma tinta dourada e, quanto mais marcas houvesse, mais a louça era reconstituída, mais tinta iluminada era colocada e mais valorizada se tornava a peça. Ela me disse que o corpo dela é como essas porcelanas. E hoje narra-se assim.
Num antes, sempre tivera medo de que a vissem despida. Sem casca. Na superfície. “Olhar meu corpo nu no espelho é conquista da idade adulta. E cada vez com mais tranquilidade. E pior mais costumeira, pois como se fala na Bahia, descarei...” Me dizia isso, rindo alto. E assegura que em seu corpo há várias cicatrizes. E todas elas contam história... São as primeiras tatuagens que carrega.
No punho do braço direito, ela tem um raiozinho. Foi uma vez em casa, antes dos seis anos. A mãe na rua, trabalhando. Era professora, trabalhava fora desde sempre. Ela e a irmã só com a babá. Ela corria como correm as crianças e ainda tinha nas mãos uma xícara cheia de doce de leite. Então, a lei da probabilidade foi certa. Caiu, a xícara quebrou, rasgou o punho. A vizinha que foi levar ao hospital. A mãe, coitadinha, tão culpada se sentia por não estar lá na hora da confusão, na hora dos primeiros pontos. Ela nunca considerou isso ruim. Sempre achara o máximo ter a mãe provedora, independente... Heroína!
Na parte interna entre braço e antebraço direito, há uma outra de quase quinze centímetros. Foi uma queda de bicicleta já na segunda infância. Aprendeu tarde e com muitas dificuldades a andar de bicicleta. A mãe prometia pagamento a quem conseguisse o feito de ensinar a garota a pedalar. Ela era medrosa e até meio abestalhada. Enquanto todos corriam de lá para cá, se negava a passear com a magrela. Mas, depois, não sei se por desejo ou cobrança social, pegou a bicicleta escondida e desceu um beco estreito cheio de arame farpado que ficava ao lado da casa dos avós maternos. Por que ela é daquelas que está no oito ou no oitenta. A história de que a virtude está no meio diz nada a ela. Assim seria sua vida, entre não querer nem chegar perto da montanha ou se jogar do alto do despenhadeiro. Depois disso, aprendeu a andar de bicicleta e ficou com sua marca vida a fora.
Os seios dela se emolduram, pela parte de baixo, numa linha fina e rosa. Outra cicatriz. Delicada. Mas cicatriz. Foi já no fim da adolescência, a opção por fazer uma plástica de redução de mama. Essa foi a única cicatriz que não veio num rompante. Veio como um presente da avó materna, seu símbolo maior do feminino. O arquétipo de Athenas que a persegue, a sufoca, pedia a feminilidade, a sensualidade da Afrodite soterrada por ela desde criança. Ter sido parida pela cabeça do pai, ter nascido para ser um menino que nunca conseguira ser, sempre dera um trabalho danado a ela. Sempre pronta a agradar, a resolver, a liderar, a ordenar o mundo de fora. E silenciar o mundo de dentro. Nesse movimento, esquecia-se de contemplar seu próprio corpo, de vivê-lo ... Então, decidiu muda-lo ao seu bel prazer. Não queria a ausência da mama. Pelo contrário, queria que ela apontasse para cima, que fosse possível encobri-la com a palma da mama, a queria rija e delicada, segura e juvenil. E assim, fez. Aos 17 anos.
Outra linha cicatriz vai de um lado a outra da parte inferior da barriga. Essa, a mais dura. E também a fundamental. Parece uma marca de cesárea, mas não foi uma parição, pois ela nunca teve filhos. Quando ela me fala dessa cicatriz, ainda que sua boca pareça sorrir, seus olhos estão molhados de água do mar. Foi na idade adulta, num tempo em que acelerou tanto os motores do empoderamento, das conquistas individuais, dos sonhos de trabalho, que mais uma vez deixou o próprio corpo à deriva. E no auge das suas conquistas profissionais e financeiras, se viu numa sala fria e escura: ela, o médico e a faca apontada para si. Havia algo perigoso no lá de dentro, mas ele deveria sair e pior estava colado a algo que era dela, algo que para ela significava o futuro. O doutor não contou conversa. Foi definitivo. Puxou a falsa semente pelos dentes e cabelos. Mas esta, por sua vez, sabe-se lá se por vingança, grudou-se no ovário e só deixou o corpo de minha amiga, arrastando-o de lá junto consigo.
Depois disso, a naturalização médica. “Não era nada”, afirmava o doutor com ares divinais. Havia sim possibilidades. Remotas. Mas havia. E o caos, o fundo do poço, a solidão a aninharam por longos dias e longas noites. Banhou-se em suas próprias lágrimas, até quase afogar-se na sua própria exaustão. Frações de segundos antes de submergir para sempre, ela abruptamente boiou, como se uma majestosa vitória régia fosse e seguiu cicatrizada, transformada. Essa cicatriz arrancou ela de dentro dela. Pariu-se a ela mesma. Desdobou-se numa outra, bela, assustadora, transfigurada.
E assim, seguiu... Marcada vida a fora. Agora, nua, vê-se no espelho. Contempla as cicatrizes. Algumas se apagaram. A mais recente foi pintada em branco na parte interna da coxa esquerda, próxima a seu sexo. Foi num passeio pelas águas doces de Andaraí. Na hora, da queda, ela riu, porque parecia que o galho que a marcara desejava penetrá-la, como homem.

Feita de terra e água como ela é, certamente, não vingará ilesa. Deverá mesmo recorrer a artimanha da porcelanas chinesas e deixará suas cicatrizes serem decoradas em tinta reluzente para ornarem seu corpo. Não sabe quantas ainda virão. Mas já ama suas marcas/textos. Não teme mais a rejeição do outro sobre suas cicatrizes. Só agora entende o verso, traduzido por Caetano. Só agora aprendeu que “ela é um livro místico e somente a alguns a que tal graça se consente é dado a lê-la”. Pena haver tantos iletrados!

terça-feira, 1 de agosto de 2017

CORRER PODE SER PEDAGÓGICO

Se eu nunca tive dúvidas que a arte nos aponta um caminho, ultimamente tenho começado a aceitar que talvez o corpo também esteja envolvido nessa experiência de nos “salvar” de nós mesmos e de nossas vidas miudinhas. Ainda mais nestes tempos em que vivemos “Um show de Trumman”, trancafiados em nossos carros que, ainda que populares, possuem vidro fumê e trava elétrica. Ou presos nos condomínios onde moramos. Ou enclausurados nos shoppings centers onde nos divertimos e resolvemos toda sorte de situações.
Experiênciar o corpo, através da atividade física, pode ser um caminho para contrariar esse mundo superficial do “big brother” em que vivemos. As corridas de rua, por exemplo, nos empurram para uma atividade individual, mas que se efetiva na coletividade. E melhor, ao ar livre, fora dos espaços de “proteção”, que na verdade, se configuram em lugares de “vigilância social”.
Desde menina sempre fui mais afeita às questões intelectuais e artísticas do que a qualquer ação que me aproximasse de um esporte ou algo que mexesse com o físico. Nos últimos anos, por um desejo a uma forma física mais magra (por questões estéticas e também de saúde) envolvi-me de cabeça na atividade física regular. Isso teve consequências como emagrecer e me tornar uma corredora amadora, algo impensado até meus 37 anos de idade.
Na verdade, o professor responsável por minha fidelização ao treino funcional apresentou a mim e a outras colegas as corridas de rua para nos motivar a treinar... Nenhuma de nós imaginava onde essa “brincadeira” poderia nos levar. No início ele, nos acompanhava às corridas, lado a lado, dando-nos um apoio, que ia desde a orientação do quanto correr a oferta de água e palavras de ânimo.
Então, para além do que se diz de que correr é bom para a saúde, hoje vejo essa história de suar, treinar, malhar como algo que tem um potencial humano, psicológico e até filosófico. Talvez eu creia nisso, porque como diz o querido Sérgio Vaz, quando algo nos transforma, a gente fica que nem cristão novo querendo catequizar os outros para a nossa “nova fé”.
Nesse embalo, uma das coisas que me chamou atenção na minha primeira corrida de rua era a imensa diversidade presente ali na pista. Era possível perceber que havia gente que após 15 minutos de prova já cruzava a linha de chegada, havia gente cuja compleição física era de atletas de alto rendimento, mas havia gente de toda sorte de idade, ritmo e forma física. Gente como eu!
Fato que me marcou profundamente foi uma jovem corredora desconhecida. Ao ver o apoio e força que meu professor me dava, ela, possivelmente, tendo as mesmas dificuldades de respiração, de desconfiança no próprio potencial se achegou a nós e perguntou se poderia nos acompanhar. Ele, bastante agregador como é de sua natureza, a aproximou de mim e mesmo sem conhecê-la deu a ela o mesmo apoio que me dava, sugerindo quando devia avançar e quando devia diminuir o ritmo, oferecendo água, conversando (talvez para nos distrair) e nos sinalizando o silêncio nos momentos em que mais precisaríamos de fôlego.
Cruzamos os três a minha primeira linha de chegada. Eu, sentindo minhas forças irem embora, e confundindo êxtase com cansaço. Naquele dia, eu fui testemunha de um sentimento agregador. Entendi que tal solidariedade havia sido provocada pelo meu professor, mas para minha enorme felicidade, fui compreendendo com o tempo que estava para além dele.
Ao final daquela corrida, a menina desapareceu de nossos horizontes. No ano seguinte, ela achou nosso grupo numa rede social e fez questão de contar a história, dizendo o quanto nosso professor havia sido gentil e solicito e o quanto aquilo havia feito com que ela continuasse a correr. Ela, ao final do seu relato na rede, ainda indicava algo que eu só iria aprender depois: “o mundo de corridas tem muita gente assim”.
É que meu professor continuou sendo meu professor, mas cada vez que evoluíamos na corrida, ele se desgarrava da gente, como deve ser. Não precisávamos mais daquele tipo de auxílio. Então, nosso grupo continuou com a corrida, com o irrestrito apoio dele, mas sem sua presença necessariamente. E quase um ano depois, era a minha vez de ser a “desconhecida”. Eu fazia uma prova noturna, estava sozinha e tentava fazer o que todo/a corredor/a quer: baixar seu tempo. Entretanto, estava gripada com uma tosse seca, sem respirar direito. Já perto dos quatro quilômetros eu sentia um cansaço fenomenal e minha respiração estava ofegante demais. Nesse momento, um corredor, nem lembro o rosto direito, vi que um homem da minha idade, forte, se aproximou de mim e disse: “vá com calma, menina”. E ficou do meu lado. Não bastando isso, me orientou como segurar melhor a respiração, disse que a corrida noturna enganava, que eu poderia desmaiar se não a controlasse e seguiu ao meu lado até o momento que deixei de ficar ofegante e minha respiração se regularizou.
Eu nem pude agradecer a ele, porque assim que a situação se normalizou, ele correu como um raio e seguiu o caminho dele. Ele, ainda que pudesse ter um tempo melhor, se não me ajudasse, optou por me auxiliar, perder tempo e seguir. Ele olhou para fora de si e enxergou a mim e a minha dificuldade. Assim, como em outro momento meu professor fez com uma desconhecida. Isso é marcante e formativo.
Por isso, penso que a corrida de rua (ainda que seja uma modalidade que tenda a um elitismo, numa sociedade capitalista como a nossa) possa nos direcionar para uma vida mais saudável, menos  “fake”, a céu aberto, sem proteções nem coerções, sem vigilância, fantasiada da ideia de segurança.

Falo da surpresa do auxílio de um desconhecido, mas é óbvio que com o tempo todo o grupo, os mais chegados, os nem tanto assim, o professor, todos auxiliam uns aos outros, seja com dicas de exercícios, alimentação, desafios, seja com uma palavra amiga, um afago, um olhar que crê em nosso potencial. Por isso, por mais que meu professor insista, eu não acredito que a salvação é individual. Apesar de compreender o argumento bíblico (para quem acredita em reino do céu), é fato que o caminho e a linha de chegada a gente trilha é com a gente mesmo, “sozinho da silva”, todavia o percurso anterior é feito coletivamente e isso faz toda diferença. Pode até mudar a maneira com que lidamos com a vida nessa contemporaneidade liquida e louca.