Confesso
que ao saber do seu retorno a nossa única e verdadeira casa, a espiritual,
fiquei completamente perplexa. No dia anterior, em minha família se celebrava o
amor de dois jovens que, muito cedo, aprenderam que os afetos só valem se
carregados de ação, de cotidiano, de reciprocidade. Foi o casamento do meu
entefilho (chamo-o assim em total respeito a mãe que o pariu, mas sou mãe dele
tb). Eu estava tão em êxtase com aquela dose cavalar de amor que havia recebido
no dia anterior que ao abrir meu WhatsApp, ler uma mensagem meio estranha de
Mara, eu esbocei zero reação. Fiquei em silêncio. Não saiu lágrima nem palavra.
Fiquei no limbo.
Depois,
ao passo que a ficha ia caindo, eu fiquei com uma raiva de tu, seu safado, que
certamente nunca senti nesses longos anos de amizade. Por que nos deixara assim
sem avisar? Por que não esperou mais uma confra? Por que não nos vimos
presencialmente na pandemia? Voltei ao celular para ler sua última mensagem
para mim: “Lu, não corro as ruas pelo mesmo motivo pelo qual não saio à sábado
de Aleluia: vai que algum gaiato grita: PEGA! ” E continuava se perguntando
porque a “diretoria” já não havia promovido um encontro presencial: “Creio que
todo mundo já tomou as quatro doses e, além disso, os seiscentos reais do
benefício, já estão no banco. O que falta? ”.
Naquele
momento, uma tristeza me invadiu. Um sentimento de impotência tão grande e vi
que de alguma forma a raiva era de mim, de minhas escolhas. Por que tendemos
tanto a procrastinar os cuidados com nós mesmos, a estar com quem amamos? É o
excesso de trabalho; são as redes sociais; é a política partidária; é a
preguiça por existirmos na superfície. E aí então meus olhos viraram cachoeiras
salgadas, ficaram em brasa e eu murmurava já consciente: perdi um amigo, meu
Deus, eu perdi um grande amigo. Conheci ali a dor expressa na crônica de
Vinícius: “Eu poderia suportar, embora não sem
dor, que tivessem morrido todos os meus amores, mas enlouqueceria se morressem
todos os meus amigos! ”.
Mas alguns minutos depois, a nuvem cinzenta sob os meus olhos
foi paulatinamente se dissipando em céu claro de verão.... Fui me dando conta
que na verdade, eu não perdi um amigo. Pelo contrário, eu tive a dádiva de ter
convivido como um grande amigo. Se quem tem amor tem sorte, eu tive a enorme
ventura de ter tido a honra de conviver com um homem como Gustavo. Cheguei na
UNEB e ele já era um decano, um elegante homem, como uma trajetória imensa na
Universidade, tendo sido diretor e professor extremamente respeitado e
reconhecido entre colegas e alunos. Eu, aos 28 anos, poderia ter sido tratada
com certa indiferença, (a caloura ingênua x o veterano sabido), mas ele me
acolheu, se aproximou, brincou, convidou às praças e aos bares, partilhou
caronas de idas e voltas pela 242. E daí, de verdade, todo aquele sofrimento
pela partida de meu amado Guti se transformou numa celebração tão grande em meu
coração, me envaideci tanto de tê-lo conhecido, de termos vivido tantas coisas
juntas. Amealhei tantas memórias engraçadas, divertidas, amorosas.
Trago apenas três das inúmeras e convoco a quem mais as tiver
que as some com as minhas. A primeira é a mais recorrente: na sexta à noite,
após a aula, sempre foi certo o nosso desopilar etílico na J. J. Seabra. Eu e
as “meninas”, geralmente boiávamos no mais tardar a meia-noite. Até porque às
seis horas da manhã do dia seguinte já começava a arrumação na residência
docente para o café, para a ida a aula das 7:30 no Campus. Já o horário de
retorno de Gustavo era sempre um mistério, a maior parte das vezes, perto do
raiar do dia, a porta se abria para que ele viesse dormir. Mas a despeito
disso, era muito engraçado ver a nós que chegávamos mais cedo, descabeladas,
arrastando correntes para nos animar para as aulas e ele já elegantemente
vestido, perfumadíssimo, à mesa do café, cheio de bom humor e picardia,
preparado para a lida. É uma pena lembrar que não teremos mais aquelas manhãs
de graça, pirraça e fofocas. Pois ele nos contava, paquerador que era, nosso
Jose Mayer do Sertão, sobre os namoros, os rolos, as mulheres do seu harém
infinito.
A
segunda memória é sobre o hábito de fazermos festas na RP, na Universidade, de
sempre marcarmos nas férias a nossa confraternização natalina num bom
restaurante soteropolitano (chegamos a cantar em alto coro no Boi Preto um
grito de “Fora, Temer” em pleno espaço da burguesia baiana). As festas depois
se desdobravam em inúmeras confras entre Nazaré, Rio Vermelho, Feira de Santana
e Lauro de Freitas. Lembro-me que nossas festas na RP eram sempre jantares com
bons vinhos e queijos e muita música e risada e conversas filosóficas. Certa
vez, sabe-se lá o porquê, organizamos uma festa a fantasia com karaokê. Guti, sempre
muito elegante, parecia meio alheio a nossa animação para a festa. Nós alugamos
fantasias, arrumamos a casa e ele estranhamente quieto... Eu particularmente achei que havíamos
exagerado na maluquice e ele não iria entrar tão de cabeça nessa onda de se
fantasiar. Aprontamo-nos. A festa começou. Notamos com certa tristeza a
ausência de Guti, mas começamos a comer, bebericar e a cantar no fundo da casa.
Ele provavelmente da forma delicada que agia preferiu nem dizer que não queria
a festa nem se expor e optou por apenas não ir, eu pensei. Foi então, que um
carro parou na porta de casa, dele saiu um homem de sobretudo preto, um chapéu,
parecia encapuzado. Arregalamos nossos olhos. Seria um assalto? Uma
assombração? Corremos para a porta de vidro e o perfume chegou para nós antes
da pessoa em si. Era Gustavo vestido de Conde Drácula entrando na festa e
entregando às convidadas um cartão de visitas com seu nome, contatos e se
oferecendo para tirar sangue de uns pescoços femininos. Entramos em êxtase e
dali a diversão só acabou quando a Polícia chegou, mas essa é outra história.
A
terceira memória e nem é de longe a última, até porque tem as impublicáveis. Já
que ele nos contava suas histórias de amor, fofocávamos sobre um bando de gente
e isso cada uma de nós que guarde a quatro chaves. Mas essa se refere a sua
vida docente. Já era professor antigo da casa, respeitadíssimo, chegava e
falava com todos os seguranças e técnicos com certa distinção e sabendo o nome
de todos. Nunca o vi faltar. Era também professor das faculdades particulares
quando pensávamos que iriamos enricar dando aula nas privadas, mas jamais
diferenciou a IES pública da particular. Aliás, focou seus esforços nos espaços
públicos de educação. Por fim, optou por estar somente na UFBA e na UNEB. Os
alunos o adoravam, elogiavam, gostavam das aulas. Numa atividade periódica em
Letras, chamada “Esses temíveis leitores”, convidávamos professores da casa
para falarem de clássicos da Literatura Brasileira. Gustavo foi falar de “Vidas
Secas” e naquele dia encheu nosso auditório com alunos dos mais diferentes
cursos, fez uma interpretação pautada no repertório das ciências sociais. Os
alunos foram provocados, debateram e se emocionaram com a fala daquele que para
eles sempre será o Prof. Dr. Gustavo Almeida. Naquele dia, confirmei como era
bom partilhar a vida docente com um amigo que era uma referência como
professor, como humano, como cidadão.
Finalizo
afirmando que não é aquela onda de quem morre fica bom, mas eu realmente só
consigo me lembrar de momentos de amor, aprendizagem, respeito, diversão,
alegria, intelectualidade, quando rememoro nossas trilhas. Gustavo está na
minha vida e isso é inegociável. A vida material dele pode ter sido findada,
mas tudo o que ele me mostrou, o que ele amalgamou em mim, permanece aqui
luminoso, forte, vibrante, como ele fez questão de ser na vida. Nem sei como
agradecer por tanto. Aliás, talvez eu saiba: imitando-o na arte de viver.
Celebrar a vida é meu tributo a Gustavo de Almeida Roque!
Em 28.10.22 (não por acaso, dia do funcionário público, a sexta-feira derradeira antes da queda do inominável).