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sábado, 24 de dezembro de 2016

NOSSA TENDA VERMELHA

Por Norma Sacramento e Luciana Sacramento


Aprendi que todo evento do presente possui um aporte no passado. É como se nossas células tivessem uma memória oculta de tempos em que nossos corpos físicos nem estavam aqui. Por isso, apesar de me inquietar com o fato de na minha família, as mulheres terem o hábito de se unir para rir, brigar, curar as dores, contar trajetórias, sabia que esta prática começava antes mesmo de eu existir no mundo.

Aqui sempre tivemos a nossa Tenda Vermelha. Sempre tivemos aquele momento ou lugar, semelhante ao das mulheres de alguns lugares do Oriente Médio onde elas, durante o período menstrual, se uniam e se distanciavam do convívio com os homens. Ali, em claustro, passavam os dias juntas. Até porque eram consideradas impuras para transitar entre outros ambientes. Nesses momentos mensais, elas reconheciam sua condição feminina, se espelhavam umas nas outras, aprendiam a ser, a conviver, a agir no mundo. Ouviam as histórias de vida das ancestrais para traçarem as suas próprias formas de existência no presente.

No meu hoje, a Confraria do Torço, reunião periódica das mulheres da família Sacramento, é a minha Tenda Vermelha. Nela, encontro a tal sororidade tão propagada pelas jovens feministas. O termo soa novo, mas não é. Contrapõe-se a fraternidade, já que frater é irmão e designa a aliança entre os homens. Sororidade, que vem do termo sóror, irmãs, significa o elo entre mulheres, através do companheirismo, da empatia. Tal sentimento celebra as experiências subjetivas vividas entre o feminino em prol de vidas mais saudáveis, positivas, felizes e contra a todas as formas de opressão.
Quando olho para a nossa Confraria do Torço, fico a pensar de onde vem nossa sororidade. Me questiono sobre como intuitivamente construímos nossa Tenda Vermelha. E começo a ver as coisas de uma forma que nunca vi. Vejo as respostas na história de vida de minha avó Benita. E eu que achava que juntar gente era a força de Umbelino, meu avô... Hoje compreendo que ela era a agregadora e isso não era apenas por altruísmo, mas era, sobretudo, por necessidade de sobrevivência. Mais do que isso era por resiliência, ou melhor, pela sua capacidade de vencer os obstáculos, sem ceder nem as pressões ou as opressões de uma sociedade machista.

Minha mãe conta que minha avó nasceu no século passado, em pleno  mês de Maria,  mês das mães, mês das mulheres. Pouco sabe da origem dos meus bisavós, Catarina e Florêncio. Apenas narra que Benita, minha avó, teve uma infância difícil, sem pai presente, na companhia de sua mãe Catarina, das duas irmãs mais velhas, Adriana e Estelita e  de uma mulher negra, Josefa, que foi um esteio na sua criação. Esta, depois, também a auxiliou na criação de suas filhas e viveu em  sua companhia até falecer.
O que se diz é que meu bisavô saiu de casa para seguir um grupo de uma igreja evangélica e minha bisavó, católica fervorosa, não se conformou com a escolha do marido. Um dia, meu bisavô chegou em casa para buscar as filhas para passear com os irmãos da igreja evangélica e minha bisavô Catarina enfrentou-o com um crucifixo na mão, gritando: “Vai embora, Satanás!”. Ele foi embora e nunca mais voltou. Infelizmente, meu bisavô procedeu como inúmeros homens de uma típica família brasileira, aquela que é gerida pelas mães, porque o pai ou aparece sazonalmente ou sai para comprar um cigarro e não volta mais. Meu bisavô desapareceu na história e ao que parece na vida daquelas cinco mulheres também.
Assim, essas cinco mulheres moraram sem a presença masculina inicialmente na Vila dos operários da Fábrica de tecido Luiz Tarquinio, na Boa-Viagem, Cidade Baixa. Minha avó tinha somente o curso primário (nesta época, melhor e mais completo que muito curso superior). Nele, aprendeu matemática, caligrafia e até francês.  Então, muito cedo precisou enfrentar o trabalho fora de casa para ajudar a sustentar a família. Trabalhou, ainda adolescente, na fábrica de tecidos, juntamente com Josefa enquanto as irmãs e D.Catarina, minha bisa, tomavam conta da casa e serviam refeições para alguns operários.
Essas cinco mulheres mais adiante se mudaram para o Bairro Santo Antonio Além do Carmo, para a Rua dos Carvões. Lá, minha avó fez amizade com umas jovens costureiras que faziam seus vestidos e quando prontos eram entregues por um jovem e belo rapaz, recém chegado de Maragogipe, que estudava no Instituto Normal. Nesse vai e vem de entrega das costuras, Benita, mesmo sendo um pouco mais velha que o garboso maragogipano se apaixonou por ele e passaram a namorar. Mas essa já é uma outra história.
Agora, me interesso pela vida dessas cinco mulheres. Imagino as inúmeras dificuldades passadas por elas, com a total ausência de um homem numa sociedade patriarcal e provinciana como aquela das primeiras décadas do século passado, no Brasil, na Bahia, em Salvador. Neste contexto, cinco mulheres tiveram que viver juntas, suster-se, irmanar-se, curar-se e sobreviver. Essa casa com cinco mulheres certamente se opôs (e ainda se opõe) ao padrão tradicional de família esperado para a época. Nela há uma mulher negra, provavelmente ex-escravizada, e as demais usufruem da vida pública e do mundo do trabalho, fato incomum para outras mulheres de seu tempo que se ocupavam apenas da vida privada, dos afazeres do lar e contavam com o marido ou pai, como o provedor de seu sustento e o tutor de suas ações.
Não devia ser fácil aos olhares externos compreender a dinâmica daquela casa de cinco mulheres. Imagino que devem ter ouvido dixotes, piadas, falas preconceituosa de outras mulheres, como também devem ter sofrido provocações, assédios dos homens. Mas para trilhar esse caminho difícil, sobre o qual eu nunca havia pensado, vejo que a sororidade, a parceria, o companheirismo entre elas foi o lenitivo que as fez de cabeça erguida vencer toda sorte de obstáculos. Por isso, ainda ecoa em mim o orgulho de ser mulher, uma confiança fora do comum de que eu posso transitar nos espaços que desejar, que meu trabalho é minha força motriz, que minha família, especialmente, no seio das mulheres, é o lugar de acolhimento e amor para me curar e me dar forças para prosseguir.
Pensar dessa forma, ouvir o quanto para elas essa trajetória deve ter sido exaustiva me tornou mais parceira de minha avó Benita. Me fez ver o quanto o ocultamento do fatos das vidas delas era uma estratégia para nos proteger e nos fazer seguir adiante, acreditando que nós precisaríamos construir nossa Tenda Vermelha, a Confraria do Torço. Só agora entendo porque me lembrei tanto de minha avô quando li livro de nome homônimo.

Assim, sigo com vontade de preencher as lacunas da história de minha vó, saber de onde ela veio, o que de fato aconteceu como meu bisavô... Todavia, entre tantas heranças fortes que ela nos forneceu, fico feliz que essa aliança entre mulheres tenha sido a mim mostrada pela experiência dela. Compreendo que se hoje teço tantos laços entre mim e outras mulheres, parceiras, amigas, irmã é porque foi ela quem teceu cada um dos pontos que nos unem. Por isso, celebro seu amor em forma da maior gratidão possível. E desejo ansiosa que essa linha tênue costurada por essas cinco mulheres se vá tecendo entre as vidas das Júlias, Claras, Dris, Naianes, Camilas, Marianas, Açucenas e quem mais vier...

domingo, 14 de fevereiro de 2016

FESTA EM TRANSE




O Carnaval de Salvador sempre foi uma expressão máxima de suas classes populares e seu encantamento vinha, sobretudo, dessa força genuína. Todavia, a sua transformação em bem de consumo começou a atrair os olhares e interesses da indústria capitalista.
Na Bahia, tal atenção forneceu uma renda vultosa a muitos artistas, políticos e empresários, mas se transformou num ciclo que, praticamente, asfixiou o que dava vida ao evento. Empresários começaram a “camarotizar” o Carnaval, ou seja, investiram pesado em estruturas físicas com caros restaurantes e serviços que iam desde cinemas a massagistas, em espaços privados, com sistemas por eles denominados de all inclusive, a preços exorbitantes. A maior contradição é que, apesar de ambientados no circuito carnavalesco, os clientes desses locais se enfurnavam neles e mal assistiam àquela que um dia fora intitulada de maior festa popular de rua do mundo.
Outro fenômeno era o interesse de cantores e bandas baianas, profissionais mais do consumo do que da arte, em integrar o staff dos camarotes, legando a festa atrações desconhecidas e/ou sem o reconhecimento popular.
Simbolicamente, a violência é maior. O povo, que inventou a festa e que dá o tom dos ritmos e das canções, estava mais na margem do nunca. O sonho da felicidade, ainda que efêmero, havia sido alijado para os mais pobres. É óbvio que os governos baianos (municipais e estaduais), responsáveis pela festa, eram coniventes com tudo isso. O pior, a população baiana, sem condições de pagar pela inclusão em tais ambientes privados, ficava espremida nas ruas, sem sequer ter onde brincar, porque a abundância de camarotes gerava uma diminuição do espaço físico nas avenidas.
Atrelado a esse contexto, para os blocos afros, afoxés e aqueles que oportunizam espaços às classes populares era reservada a madrugada como único horário disponível de apresentação. As falas sobre segregação e até apartheid no Carnaval baiano apareciam nos principais veículos de comunicação do país. Nomes como Ivete Sangalo, Bell Marque e Durval Lelis defendiam que o evento deveria ser in door. O argumento maior para o fenômeno era que as classes média e alta temiam a violência das ruas. Portanto, era em nome da segurança individual e coletiva que as pessoas pagavam convictas por este serviço. O pretexto, na verdade, constituía-se em uma tentativa de tornar a festa mais rentável para alguns; em suas entrelinhas, o interesse dos clientes e empresários era elitizar o Carnaval baiano. E no Brasil, e principalmente na Bahia, isso significava embranquecê-la. Significava vendê-la para os turistas.
Entretanto, outra transformação começava a acontecer. Observava-se que os soteropolitanos começaram a debandar da cidade no período carnavalesco. Abundavam as meninas de salto agulha e cabelo escovado, fardadas dos abadás dos camarotes, ladeadas de garotões malhadões, pousando mais para as fotos das redes sociais do que se entregando ao êxtase da festa ou à “chuva, suor e cerveja”, cantada por Caetano, ocorrendo, assim, seu quase total esvaziamento.
Assim, quanto menos os soteropolitanos procuram a festa, mais artificial ela se torna, e aí, acaba por desagradar aos turistas também. Sem compradores de dentro ou de fora, os preços passam a ser menores. Decaem-se as vendas e a mesma indústria que praticamente destruiu a festa inventa estratégias de reanimá-la. Pouco a pouco, o Carnaval soteropolitano tem dado ares de fênix e evidenciado o seu tom educativo, pois, ao perder seu brilho, ao decrescer a participação popular e, proporcionalmente, aumentar os índices de violência, forçou muitas mudanças.
 Muitos blocos carnavalescos começaram a deixar de usar as cordas; o ministério público tem acompanhado e buscado evitar o péssimo tratamento dessas empresas aos cordeiros, uma espécie de seguranças da festa. Ocorreu a paulatina diminuição do número de camarotes e também um maior controle dos espaços da rua que eles ocupam. Hoje existe a revitalização de alguns circuitos, o retorno do Carnaval nos bairros populares com atrações localmente conhecidas, o incentivo a participação dos blocos afros e de índios em horários diurnos.
Esse conjunto de ações ocorreu graças a pressões populares e à união dos poderes públicos e privados. Isso diminuiu os índices de violência e fez com que os soteropolitanos voltassem à festa. Mas há ainda muitas mudanças a serem implementadas. A principal delas nem é na festa; é nas relações sociais que imperam no país, pois a desigualdade que se evidencia no Carnaval de Salvador faz parte da histórica conjuntura brasileira em que as classes trabalhadoras utilizam, às vezes, servilmente, suas forças para sustentar as regalias de uns poucos endinheirados e poderosos.
No mais, a lição que fica dessa história de ascensão, queda e tímido renascimento de uma festa popular tão rica quanto o Carnaval baiano é que o povo, o ator principal da festa, tem poder. Sem sua participação zombeteira, intensa, que inverte papéis socialmente impostos (de gênero e de classe, especialmente), sem a possibilidade da catarse e do sonho que o evento evoca esvazia-se seu sentido. Fica a lição a ser aprendida: este é um evento pedagógico, que nos evoca o poder popular, através da arte e da festa, e assinala o quanto tais manifestações nos ensinam a conviver com a diversidade, nos exortam a vivenciar o corporal, sem temer o suor, a carne, a sensualidade.