Por
Norma Sacramento e Luciana Sacramento
Aprendi
que todo evento do presente possui um aporte no passado. É como se nossas
células tivessem uma memória oculta de tempos em que nossos corpos físicos nem
estavam aqui. Por isso, apesar de me inquietar com o fato de na minha família,
as mulheres terem o hábito de se unir para rir, brigar, curar as dores, contar
trajetórias, sabia que esta prática começava antes mesmo de eu existir no mundo.
Aqui
sempre tivemos a nossa Tenda Vermelha. Sempre tivemos aquele momento ou lugar,
semelhante ao das mulheres de alguns lugares do Oriente Médio onde elas,
durante o período menstrual, se uniam e se distanciavam do convívio com os
homens. Ali, em claustro, passavam os dias juntas. Até porque eram consideradas
impuras para transitar entre outros ambientes. Nesses momentos mensais, elas
reconheciam sua condição feminina, se espelhavam umas nas outras, aprendiam a
ser, a conviver, a agir no mundo. Ouviam as histórias de vida das ancestrais
para traçarem as suas próprias formas de existência no presente.
No
meu hoje, a Confraria do Torço, reunião periódica das mulheres da família
Sacramento, é a minha Tenda Vermelha. Nela, encontro a tal sororidade tão propagada pelas jovens feministas. O termo soa novo,
mas não é. Contrapõe-se a fraternidade, já que frater é irmão e designa a aliança entre os homens. Sororidade, que vem do termo sóror, irmãs, significa o elo entre
mulheres, através do companheirismo, da empatia. Tal sentimento celebra as
experiências subjetivas vividas entre o feminino em prol de vidas mais
saudáveis, positivas, felizes e contra a todas as formas de opressão.
Quando olho para a nossa
Confraria do Torço, fico a pensar de onde vem nossa sororidade. Me questiono sobre como intuitivamente construímos
nossa Tenda Vermelha. E começo a ver as coisas de uma forma que nunca vi. Vejo as
respostas na história de vida de minha avó Benita. E eu que achava que juntar
gente era a força de Umbelino, meu avô... Hoje compreendo que ela era a
agregadora e isso não era apenas por altruísmo, mas era, sobretudo, por necessidade
de sobrevivência. Mais do que isso era por resiliência, ou melhor, pela sua
capacidade de vencer os obstáculos, sem ceder nem as pressões ou as opressões
de uma sociedade machista.
Minha mãe conta que minha avó nasceu no século
passado, em pleno mês de Maria, mês das mães, mês das mulheres.
Pouco sabe da origem dos meus bisavós, Catarina e Florêncio. Apenas narra que
Benita, minha avó, teve uma infância difícil, sem pai presente, na companhia de
sua mãe Catarina, das duas irmãs mais velhas, Adriana e Estelita e de uma mulher negra, Josefa, que
foi um esteio na sua criação. Esta, depois, também a auxiliou na criação de
suas filhas e viveu em sua
companhia até falecer.
O que se diz é que meu bisavô saiu de casa para seguir um
grupo de uma igreja evangélica e minha bisavó, católica fervorosa, não se conformou com a
escolha do marido. Um dia, meu bisavô chegou em casa para buscar as filhas para
passear com os irmãos da igreja evangélica e minha bisavô Catarina enfrentou-o
com um crucifixo na mão, gritando: “Vai embora, Satanás!”. Ele foi embora e
nunca mais voltou. Infelizmente, meu bisavô procedeu como inúmeros homens de
uma típica família brasileira, aquela que é gerida pelas mães, porque o pai ou
aparece sazonalmente ou sai para comprar um cigarro e não volta mais. Meu
bisavô desapareceu na história e ao que parece na vida daquelas cinco mulheres
também.
Assim, essas cinco mulheres moraram sem a presença
masculina inicialmente na Vila dos operários da Fábrica de tecido Luiz
Tarquinio, na Boa-Viagem, Cidade Baixa. Minha avó tinha somente o curso
primário (nesta época, melhor e mais completo que muito curso superior). Nele,
aprendeu matemática, caligrafia e até francês. Então, muito cedo precisou
enfrentar o trabalho fora de casa para ajudar a sustentar a família. Trabalhou,
ainda adolescente, na fábrica de tecidos, juntamente com Josefa enquanto as
irmãs e D.Catarina, minha bisa, tomavam conta da casa e serviam refeições para
alguns operários.
Essas cinco mulheres mais adiante se mudaram para o Bairro
Santo Antonio Além do Carmo, para a Rua dos Carvões. Lá, minha avó fez amizade
com umas jovens costureiras que faziam seus vestidos e quando prontos eram
entregues por um jovem e belo rapaz, recém chegado de Maragogipe, que estudava
no Instituto Normal. Nesse vai e vem de entrega das costuras, Benita, mesmo
sendo um pouco mais velha que o garboso maragogipano se apaixonou por ele e
passaram a namorar. Mas essa já é uma outra história.
Agora, me interesso pela vida dessas cinco mulheres. Imagino
as inúmeras dificuldades passadas por elas, com a total ausência de um homem
numa sociedade patriarcal e provinciana como aquela das primeiras décadas do século
passado, no Brasil, na Bahia, em Salvador. Neste contexto, cinco mulheres
tiveram que viver juntas, suster-se, irmanar-se, curar-se e sobreviver. Essa
casa com cinco mulheres certamente se opôs (e ainda se opõe) ao padrão
tradicional de família esperado para a época. Nela há uma mulher negra,
provavelmente ex-escravizada, e as demais usufruem da vida pública e do mundo
do trabalho, fato incomum para outras mulheres de seu tempo que se ocupavam apenas
da vida privada, dos afazeres do lar e contavam com o marido ou pai, como o
provedor de seu sustento e o tutor de suas ações.
Não
devia ser fácil aos olhares externos compreender a dinâmica daquela casa de
cinco mulheres. Imagino que devem ter ouvido dixotes, piadas, falas
preconceituosa de outras mulheres, como também devem ter sofrido provocações, assédios
dos homens. Mas para trilhar esse caminho difícil, sobre o qual eu nunca havia
pensado, vejo que a sororidade, a
parceria, o companheirismo entre elas foi o lenitivo que as fez de cabeça
erguida vencer toda sorte de obstáculos. Por isso, ainda ecoa em mim o orgulho
de ser mulher, uma confiança fora do comum de que eu posso transitar nos
espaços que desejar, que meu trabalho é minha força motriz, que minha família,
especialmente, no seio das mulheres, é o lugar de acolhimento e amor para me
curar e me dar forças para prosseguir.
Pensar
dessa forma, ouvir o quanto para elas essa trajetória deve ter sido exaustiva
me tornou mais parceira de minha avó Benita. Me fez ver o quanto o ocultamento
do fatos das vidas delas era uma estratégia para nos proteger e nos fazer
seguir adiante, acreditando que nós precisaríamos construir nossa Tenda Vermelha,
a Confraria do Torço. Só agora entendo porque me lembrei tanto de minha avô
quando li livro de nome homônimo.
Assim,
sigo com vontade de preencher as lacunas da história de minha vó, saber de onde
ela veio, o que de fato aconteceu como meu bisavô... Todavia, entre tantas
heranças fortes que ela nos forneceu, fico feliz que essa aliança entre
mulheres tenha sido a mim mostrada pela experiência dela. Compreendo que se
hoje teço tantos laços entre mim e outras mulheres, parceiras, amigas, irmã é
porque foi ela quem teceu cada um dos pontos que nos unem. Por isso, celebro
seu amor em forma da maior gratidão possível. E desejo ansiosa que essa linha
tênue costurada por essas cinco mulheres se vá tecendo entre as vidas das
Júlias, Claras, Dris, Naianes, Camilas, Marianas, Açucenas e quem mais vier...