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sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

LÁ NO CEMITÉRIO

Quando venho a Ilha Grande é de lei a visita ao cemitério com meu pai. Lá está a carneira onde meu avô Antônio Egídio foi enterrado e hoje também estão os ossos de meu Tio Vavá. A gente segue caminhando lá para o Cantagalo. No percurso, meu pai vai revendo os antigos amigos. Eles se apresentam, se olham, miram os rostos uns dos outros, marcados pelo tempo, até que se reconhecem e começam a contar histórias do passado. Aqui meu pai não é Guido Moreno (o sobrenome de meu avô). Aqui ele é Guido Dócio, filho de Maria Dócio e irmão de seu Vavá. Moreno só no continente, porque na Ilha ele é lembrado pelo dócil nome da mãe.
Depois dessa procissão animada e risonha, a gente começa a ficar mais quieto porque o cemitério vai se aproximando. Fica bem no alto. Meu pai diz que é para se chegar mais perto ao céu. É cercado por uma mata onde pode se ouvir de lá o barulho da maré. Do lado da carneira onde estão os meus, nasceu um cajueiro, em que parasitam gravatás e faz uma sombra tímida. A gente vai se aproximando meio contrito e o choro de meu pai é certeiro, forte, emocionado. Ele se justifica dizendo que sabe que não tem mais nada ali. E acrescenta: "o que meu pai deixou não se guarda num túmulo, se expande na vida". É que meu pai é metido a prosador. Eu nem posso entender a emoção dele. Só sei que gosto de ir lá. Ainda que me pele de medo de alma. Mas ouso dizer que ali é o melhor cemitério do mundo: no alto de uma ilha quase paradisíaca, com direito a mata verde e brisa do mar.
Lá, eu e minha irmã só acompanhamos meu pai. Eu tiro os matinhos que insistem em crescer em volta do túmulo e faço orações de agradecimento. Aliás quando estou na ilha rezo o tempo inteiro. Agradeço a beleza de ter os meus ‘beiradeiros’ vindos daqui, vejo o quão privilegiado é poder desde sempre usufruir de um mar que não se acaba e de um céu que nunca se finda. Lá, eu, meu pai e minha irmã vamos apenas para prestar homenagem ao meu avô que me daria um nome se eu menino fosse. Vamos para dizer a ele o quanto ele foi cedo, apesar de ter feito tanto por todos nós.
No fundo, não estou certa, mas desconfio que gente só vai lá mesmo para reverenciar o passado e confirmar a nossa existência. Ser quem somos hoje depende demais de conhecer uma história anterior a nossa.
Por isso, nessa caminhada rumo ao cemitério, apesar de ser povoada por tantos medos, o único receio que me aflige é de no próximo verão não poder mais voltar. Porque sei que sou finita, que minhas gentes são finitas, assim como “tudo que é sólido desmancha no ar”, como afirma o velho Marx.
Eu e minha irmã dizemos que parece que a Ilha parou no tempo e a gente de forma egoísta gosta bastante disso. Mas meu pai nesse passeio fúnebre e, ao mesmo tempo, festivo, porque é um passeio de encontros e da confirmação da despedidas, nos mostra as casas que desmoronam porque os jovens já não veem mais futuro por aqui, nos mostra onde era a festa de são João, padroeiro da Ilha, e havia quermesse e quadrilha. Aponta para o campo, na verdade a maré seca, onde o time de Futebol Bonsucesso fizera história. Meu pai no nosso passeio também nos mostra algumas ruinas, dentre elas as da antiga Igreja de São João. E eu, na vã tentativa de não deixar o passado escorrer por entre nossas mãos, as fotografo para assegurar nesses tempos líquidos um pouco mais de solidez.
No caminho, entre conversas e lágrimas, lembrei de um texto que constava num cd de músicas italianas de Zizi Possi. Ela dizia que sonhou com o avô já falecido. Este percorria um dos bairros italianos de são Paulo a procura de vestígios de sua história. Mas a casa onde morara no passado, a rua onde viveu e o bonde já haviam sido apagados pelo progresso. Em um momento, o avô no sonho desespera-se e chega a duvidar da própria existência. Fiquei a pensar se Antônio Egídio volta-se a Ilha... Será que tomaria o mesmo susto? Até que o avô narrado por Zizi Possi encontra as ruínas da igreja onde havia se casado e só assim se conforta. Ao olhar para as marcas do passado deixadas no presente, ele confirma que um dia realmente existiu.
A ilha é assim para mim. É o meu relicário. Nela, eu compreendo que antes de mim houve gente para garantir minha estada aqui. E essa gente existiu de fato. Elxs mercaram nas venda, cruzaram essa baia de canoa, tamanca, saveiro ou navio, se casaram, fizeram filhos, netos, bisnetos... Na Ilha, eu me reenergizo simplesmente porque vejo que se hoje existo e resisto é porque houve outros que também se aventuraram nas incertezas da vida.

Então, eu, meu pai e minha irmã vamos cumprindo nosso trajeto de volta ao Furado (localidade onde está a casa de nossos avós). Ficamos reflexivxs. E eu cá com um certo medo de num futuro próximo me perder do meu passado e já não ter nem gentes nem prédios para me garantir que minha existência não passou de um sonho feliz. Porque, por mais ilusórias que elas sejam, a gente precisa de eternidades.