O Carnaval de Salvador sempre foi
uma expressão máxima de suas classes populares e seu encantamento vinha,
sobretudo, dessa força genuína. Todavia, a sua transformação em bem de consumo
começou a atrair os olhares e interesses da indústria capitalista.
Na Bahia, tal atenção forneceu
uma renda vultosa a muitos artistas, políticos e empresários, mas se
transformou num ciclo que, praticamente, asfixiou o que dava vida ao evento. Empresários
começaram a “camarotizar” o Carnaval, ou seja, investiram pesado em estruturas
físicas com caros restaurantes e serviços que iam desde cinemas a massagistas,
em espaços privados, com sistemas por eles denominados de all inclusive, a
preços exorbitantes. A maior contradição é que, apesar de ambientados no
circuito carnavalesco, os clientes desses locais se enfurnavam neles e mal
assistiam àquela que um dia fora intitulada de maior festa popular de rua do
mundo.
Outro fenômeno era o interesse de
cantores e bandas baianas, profissionais mais do consumo do que da arte, em
integrar o staff dos camarotes, legando a festa atrações desconhecidas
e/ou sem o reconhecimento popular.
Simbolicamente, a violência é
maior. O povo, que inventou a festa e que dá o tom dos ritmos e das canções,
estava mais na margem do nunca. O sonho da felicidade, ainda que efêmero, havia
sido alijado para os mais pobres. É óbvio que os governos baianos (municipais e
estaduais), responsáveis pela festa, eram coniventes com tudo isso. O pior, a
população baiana, sem condições de pagar pela inclusão em tais ambientes
privados, ficava espremida nas ruas, sem sequer ter onde brincar, porque a
abundância de camarotes gerava uma diminuição do espaço físico nas avenidas.
Atrelado a esse contexto, para os
blocos afros, afoxés e aqueles que oportunizam espaços às classes populares era
reservada a madrugada como único horário disponível de apresentação. As falas
sobre segregação e até apartheid no Carnaval baiano apareciam nos
principais veículos de comunicação do país. Nomes como Ivete Sangalo, Bell
Marque e Durval Lelis defendiam que o evento deveria ser in door. O
argumento maior para o fenômeno era que as classes média e alta temiam a
violência das ruas. Portanto, era em nome da segurança individual e coletiva
que as pessoas pagavam convictas por este serviço. O pretexto, na verdade,
constituía-se em uma tentativa de tornar a festa mais rentável para alguns; em
suas entrelinhas, o interesse dos clientes e empresários era elitizar o
Carnaval baiano. E no Brasil, e principalmente na Bahia, isso significava
embranquecê-la. Significava vendê-la para os turistas.
Entretanto, outra transformação
começava a acontecer. Observava-se que os soteropolitanos começaram a debandar
da cidade no período carnavalesco. Abundavam as meninas de salto agulha e
cabelo escovado, fardadas dos abadás dos camarotes, ladeadas de garotões
malhadões, pousando mais para as fotos das redes sociais do que se entregando
ao êxtase da festa ou à “chuva, suor e cerveja”, cantada por Caetano,
ocorrendo, assim, seu quase total esvaziamento.
Assim, quanto menos os
soteropolitanos procuram a festa, mais artificial ela se torna, e aí, acaba por
desagradar aos turistas também. Sem compradores de dentro ou de fora, os preços
passam a ser menores. Decaem-se as vendas e a mesma indústria que praticamente
destruiu a festa inventa estratégias de reanimá-la. Pouco a pouco, o Carnaval
soteropolitano tem dado ares de fênix e evidenciado o seu tom educativo, pois,
ao perder seu brilho, ao decrescer a participação popular e, proporcionalmente,
aumentar os índices de violência, forçou muitas mudanças.
Muitos blocos carnavalescos
começaram a deixar de usar as cordas; o ministério público tem acompanhado e
buscado evitar o péssimo tratamento dessas empresas aos cordeiros, uma espécie
de seguranças da festa. Ocorreu a paulatina diminuição do número de camarotes e
também um maior controle dos espaços da rua que eles ocupam. Hoje existe a
revitalização de alguns circuitos, o retorno do Carnaval nos bairros populares
com atrações localmente conhecidas, o incentivo a participação dos blocos afros
e de índios em horários diurnos.
Esse conjunto de ações ocorreu
graças a pressões populares e à união dos poderes públicos e privados. Isso
diminuiu os índices de violência e fez com que os soteropolitanos voltassem à
festa. Mas há ainda muitas mudanças a serem implementadas. A principal delas
nem é na festa; é nas relações sociais que imperam no país, pois a desigualdade
que se evidencia no Carnaval de Salvador faz parte da histórica conjuntura
brasileira em que as classes trabalhadoras utilizam, às vezes, servilmente,
suas forças para sustentar as regalias de uns poucos endinheirados e poderosos.
No mais, a lição que fica dessa
história de ascensão, queda e tímido renascimento de uma festa popular tão rica
quanto o Carnaval baiano é que o povo, o ator principal da festa, tem poder.
Sem sua participação zombeteira, intensa, que inverte papéis socialmente
impostos (de gênero e de classe, especialmente), sem a possibilidade da catarse
e do sonho que o evento evoca esvazia-se seu sentido. Fica a lição a ser
aprendida: este é um evento pedagógico, que nos evoca o poder popular, através
da arte e da festa, e assinala o quanto tais manifestações nos ensinam a
conviver com a diversidade, nos exortam a vivenciar o corporal, sem temer o
suor, a carne, a sensualidade.