Postagens populares

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

SOCIALMENTE BRANCA

No espelho que me vejo refletida
Há uma menina, na verdade, olho de menina
Corpo de mulher: bunda grande, boca grande
O cabelo duro,bem encaracolado
A Beleza é Natural, comprada na feira, mas natural
A pele é plural: escura de sol, morena de sempre
Por que não pode morena, mesmo sendo preta?

Olho e rio, plenitude de mar!
Nem sempre foi assim.
Satisfação construída a duras penas
Satisfação construída com guanidina e amônia
Poucas tranças, muito permanente afro
O nada agora. Na química vazia do cabelo cheio
Aprender em suas ausências, em suas permanências
Lembrar do bobis, dos cocós, das toalhas na cabeça.
Memória viva, sem rancor, provocadora do riso
Pelo ridículo inevitável

Só depois, bem depois, entendi
É uma melanina preta redundante, retumbante
Que escorre pela alma
É uma brancura alva que condena minha culpa
É tudo isso que faz de mim quem sou.
É pele, é cabelo, mas é mais
É família, religiosidade, festa
Língua, afeto, afago e junção!

É a História esquecida; é a História lembrada
É a história colocada debaixo do tapete
São as estórias que ainda ecoam em meus ouvidos.
São todas elas que dizem deste ser
Era um lá fora, eu intuía
Mas uma coisa que bulia lá dentro,ordenava:
“Vá, menina, buscar uma História”
História que eu via não via
Olhava que olhava, para todos os lados
Pressentia distante, presente, minha, vazia!

Até que um dia, danei a ver, perguntar, conversar
Primeiro, vi que nasci num lugar que era meu lugar
Mas força do trabalho dos outros, mudei para outro lugar
Não era lá meu lugar. Mas agora é
Sou de todo e qualquer lugar?
Sou de um todo lugar qualquer!

Nesse esforço de ver-compreender,
Vi que o lugar que não era, era!
Nele cabiam todos os estrangeiros, gente de terra, como eu
Mas dependia das paralaxes
O problema não era o lugar, mas era a luneta por onde o olhava
Branquitude, roupas de marca, escola burguesa
Era tanta gente que tinha tanta coisa
Era tanta gente que debutava em Disney
Era tanta gente com Mochila da Company
Era amar Olodum, só depois de Simon
Era tanta coisa e um vazio na alma

Desconfiava que desconfiava
Primeira pista, era a casa com gritos, palavrões festivos
Risos, carurus, muitos santos
Ritos para tudo: para juntar, sobretudo
Palavra ‘porreta’ que podia em casa não podia em outros lugares
Nestas incertezas, as velhas olhavam
Mais que olhavam, diziam histórias belastristes
Não eram histórias para criança
Era história herança, para boi nem dormir nem esquecer.

Histórias que apontavam para desorgulhos, sofreguidões.
Seriam verdades, seriam acontecidas ilusões?
Estelita, tia-avô, falava da avó dela portuguesa
Era dona de escravos e má, frisava: era má a outra velha!
Tão má que um dia a escrava entrou na sala de jantar
Era hora de jantar, gente branca a mesa
Escrava preta para servir não podia
Era petulância entrar sem ordem, entrar sem vocativo.
A avó de minha avó, nem pestanejou
Nem reclamou, a velha má
Pegou a velha mão, muniu-se de garfo de prata
Atirou nas costas da escrava.

Agora, me pergunto, envergonhada:
- Como uma menina preta se desvencilha desta história?
- Como menina preta, orgulhosa do espelho, negligencia este enredo?
Menina preta, que não é preta,
mas é preta
Tem avó sinhá. E sinhá cruel, viu?

Mas tem bisa, filha de sinhá cruel, que vê além de cores
Como pode? Eu me pergunto!
Rupturas...
Mas tem bisa que é a própria genealogia de mim mesma
Bisa que cuida de escrava ferida, caída no tacho
Bisa Catarina, catarata, cega
Bisa que, quem sabe, um dia virará filha?
Bisa tirou criança escrava da morte
Curou feridas de escrava pela primeira vez
Para ir, vida afora, curando feridas de outras gentes
Só não sei, acho que sei, que nunca teve quem curasse as suas
A menina escrava, cheia de feridas,
virou amiga para o todo sempre
E foi a casa de cinco mulheres:
Catarina, Josefa, Adriana, Estelita, Benita
Todas brancas, menos Josefa

Havia ranço de escravidão nas mentalidades
Adriana mesmo casou com português rico
Foi trocada por negona amante,
Até o gajo ser deixado pelo taxista para Adriana recuidar
“Não foi ela quem ouviu até que morte os separe?
Agora cuide, então”, dizia a nêga.
Estelita casou com poeta, teve viuvez dura
Nunca se rendeu, mas na língua dizia com graça as filhas
-“Se casar com preto, não vou pentear cabelo de neta?”
Mas há outras coisas mais difíceis, do que desemaranhar cabelo rebelde
Há ódios, rejeições, ausências, mas duras, mais crespas.

Benita, casou, grávida e com preto de Maragogipe
Benita transgressora era neta da sinhá,
era irmã das irmãs, era filha da mãe, era filha da menina ferida
Sofreu também, fez escolhas estranhas para a mulher que ora sou
Mais foi forte como jamais soube ser
E me deu de presente um Araújo distante que nem me sinto
Só sinto quando ecooam em meus ouvidos
estas histórias que ela ajudou mesma a me contar.

A história que me sinto, pressinto, me revejo, antevejo
É Sacramento, toda Sacramento e mulher Sacramento
Sempre soube antes mesmo de saber
Sempre soube antes mesmo de cientificamente comprovar
É Umbelino, que eu vejo no espelho para espelhar quem sou
Sua risada, safadeza, humor, brincantices
Sua cachaça, sua dança, sua sensualidade
É no menino de história triste, órfão de mãe mais que cedo
Que vejo meus atos, meus dons, meus receios.

Foi por ele que atravessei a cidade,
Adentrei o Gabinete Português de Leitura
Para pesquisar o verbete “Sacramento”
No Dicionário das Famílias Brasileiras
E estava lá: era gente escrava, era gente do Recôncavo baiano
Era gente que nem eu, que um dia existiu e que um dia despareceu/rá

Foi ele que me deu pistas e que começou a me convencer de uma pretitude
Foi ele, sua cidade, suas celebrações
Que me deram as primeiras pistas.
Mas, não nego, meu nêgo, não foi só ele
Foi o imbricamento da graça e da crueldade
Do preto e do branco, do preto no branco
Quem me fez ser quem sou.
Não nego, esse ranço, esse banzo que é meu
Nem morta, nem nem, nem nada
Afirmo-o entrelugares, entre vazios
São eles quem sou
É neles que encontro meus fs
De festar, fartar, forjar, fuder e amar


São mais que eles, há um outro lado
Tão escondido, tão deslembrado, tão camuflado
De origem honrada, importante, européia, viu?
EU-RO-PÉ-I-A.
Mas tem cabelo duro e beiço grande na Espanha, tem?
Tem pele morena bem queimada de sol, na Espanha tem?
Mas essa já era uma história de um outro Moreno lado
Era do outro lado: uma ilha enorme. Ilha Grande.
Sobrenome lembrado: MO-RE-NO de Antônio
Sobrenome esquecido: DÓ-CIO de Maria
Seria uma questão de gênero ou de cor?
Das duas coisas, minha menina
Foi deste lado da ilha que me vi princesa
E desconfiei: se sou princesa, se sou preta, se sou gorda?
Se sou posso ser? Sim, se sou, posso ser, sim!

Moreno é espanhol, com certeza. Que orgulho, é espanhol!
Que alegria! Fui educada a crer exultante nesta herança
Ninguém contava com a minha plena desconfiança
E eu tentava que tentava ver que não via
E eu tentava que tentava esconder minha alegria
Porque a alegria vinha de outras certezas...
É espanhol? Com certeza?
Pesquisa que pesquisa, pergunta que pergunta,
“Menina, não tem o que fazer, não?”
É de mouro, minha preta, esta herança
Pele tão queimada como os trigais
Gente perseguida pela inquisição
Origem outra tão marginal como a de agora
Era judeu, convertido em cristão
Que comia carne de porco
Não por querer, mas para provar
Para provar que a fé se prova com a boca
Mesmo que boca sangre e cuspa escondida
A fé, ninguém sabia, se prova com a pulsação de dentro
Poucos ouvem este batuque. Que bom?

Mas os meus Morenos
São tão engraçados
Negam as fotos, mas não negam os laços
Como não conheci estes avós
Os paternos
Só posso dizer do que ouvi dos seus
Dos ecos deixados, lançado a outro
Criando a teia tênue inatingível
Mas visível e pulsante

Muitas denúncias, muitas pistas
Nunca vi costa de dendê ser terra de gente de oliva
Livro de pai me revela outras histórias
Conta, sem querer, de uma mãe morena
Que afagava como preta velha e orava com sinhá cristã
Uma mãe morena que discipinava com a freira enclausurada
Uma mãe bem morena que curava feridas de alma e do corpo com folha
Como a preta rezadeira dos longes da senzala
Conta, sem nem perceber, de uma gente escura
Que fazia brincantices iguais ao preto Sacramento
E eu me alegro por achar e me achar neles
E eu me alegro por ler (e revisar) este entrediscurso.

Desculpa, pai, mas aquela negona matrona na foto
É minha avó: a Maria que é Dócio e merece trocadilho
Desculpa, pai, mas ver aquela foto foi ato de re-ligare
Eis minha ancestralidade ali imortalizada no papel fosco.
E que tá nas nossas caras, nos nossos corpos
Nos nossos atos, na nossa fé.

Mas não posso negar
Que esse movimento que conto agora
Vem de um antes
Vem de um Nelson Maca provocador, insuportável
Agressivo, radical, verdadeiro
Que com sal e vidro rasgava a ferida já há muito aberta
Me levando a crê-ver que toda aquela desconfiança
Todo aquele sentimento de que estava num lugar não-meu
Me conduzia a palavras incômodas, desconhecidas, estrangeiras
NEGRO? N-E-G-R-A. PRETO? P-R-E-T-A? eu?!?!

Oxe, que maluquice. Que certeza. Que desconfiança...
Depois de achar em mim mesma a resposta
Preta, negra, branca, morena, MESTIÇA PRETA
Era ora de ouvir e imbricar a dura resposta outra
Era hora de ser acusada de oportunista, maluca, hiperbólica
Era hora de pensar tanto, gastar tanto tempo, ir fundo tanto, ampliar tanto
Era hora de ouvir o que não queria de quem mais amava
Era hora da verdade, botar a cara na rua,

Levar tapa de escutar e dar tapa de gritar:
“ Não vai mais alisar cabelo, não, é? Tá maluca?”
Vou, sim, quando quiser. Agora não quero. Sou mais bonita.
“ Você é negra aonde, menina? Tá mais pra Parmalat”
Sou negra onde eu mandar, onde eu achar que sou e pronto
“Agora, Luciana, inventou essa história que todo mundo é negro?”
E é o quê, então? Hein, Eva???
“Pior, menina, ela tá dizendo que tudo é racismo”
Nem tudo, mas muita coisa que a gente nem saca é e um dos mais filhadaputas
“Logo eu, minha Lu, que acho todo preto bom dançarino de samba e afoxé”
E de ciência, matemática, literatura, política, também né, não é ?
“Quê? Você é a favor das cotas?”
Toda a favor, até a última ponta
“Sabe o que é que estes pretos radicais querem? Transformar isso aqui nos EUA?”
Não era isso que todos vocês queriam? Tão reclamando de quê?
“Ah, mais você é socialmente branca!!!”
E essa foi fundo, marcou, feriu, magoou

Tanto esforço para ser e mudar sendo sempre
E vem uma puta dessas, com crachá do MNU,
buscando uma essência para me nomear? Ah, tá!
Eu só conto esta história
Porque só sei contar de mim
Pelos caminhos por que passei
Nem quem veio comigo sabe-os como eu os sei
Também não sei os dizer dos trajetos dos meus companheiros e companheiras

Mas depois de tanto suor, tanta lágrima
Tanto ter que duela com ser, tanto buscar-procurar
Vem uma filha da puta me chamar de Socialmente Branca?
Chuva de tempestade da Pancada mais que Grande de Tremembé
Tromba d’água assustadora, desestabilizadora
Onde sou? De onde sou? Nem cá nem lá me querem
Solidão... S-O-L-I-D-Ã-O

Depois, do pau viola, a aprendizagem, o respeito
Será que essa louca tá certa no pensar?
Esforço doido e doído de desestabilizar pensamentos
Os meus próprios, os mais difíceis
Ainda exaustivo, apesar de cada vez mais intenso
Cada vez mais tranqüilo e sem sustos
Vendo novas marcas e novas possibilidades
Certa da mudança para o sempre
Mas feliz e plena da trajetória já percorrida.
Conscientemente, levando uma única certeza:
Mudanças nunca a prazo, sempre a vista, ‘in cash’

Maluca? Socialmente Branca?
Socialmente branca, o caralho
Sou o que muito mais gente, do que não se vê na minha pele
E do que também se vê na minha pele, no meu corpo, no meu espírito, na minha alma
Construíram neste ser que ora soul.
No que agora Rebel Soul.
Sou tudo isso e ninguém, – N-I-N-G-U-É-M
Vai me reduzir, me marcar
Até porque quem tem que aceitar, esconder, acolher minha próprias marcas
Sou este eu aqui, uma mosaico plural e confuso, inacabado
Mais preto, com branco, com mouro, português.
Mais eu! Mais eu, muito mais eu!


*Textos repleto das marcas fundadas em mim por Marcelino Freire, Helena Parente Cunha, Elisa Lucinda, João Cabral de Melo Neto, Bob Marley, Carlos Drummond de Andrade. Qualquer verso parecido não é mera semelhança; é cópia reconhecida, orgulhosa e patenteada.

Mar Português, autoria de Ngunga

Mania de explicação (ou introdução para o poema): este poema nasceu numa disciplina que fiz, chamada de Literatura e Imaginário. Nesta o professor nos provocava a pensar o imaginário a partir de obras da Literatura de Portugal, Brasil,Moçambique e Angola. Neste delicioso caminhar, entre discussões, a turma ficou perplexa com o apego dos portugueses a um passado glorioso e a falta de reconhecimento em pleno século XXI das mazelas produzidas pelo colonialismo em países do continente africano como também aqui no Brasil. Então, sensibilizada pelo jovem aventureiro, criado pelo angolano Pepetela, escrevi um Mar Português como se o órfão pioneiro do MPLA o tivesse criado. É apenas uma brincadeira. Com todo respeito a pessoa de Pessoa e, mais que isso, com todo amor a obra deste português ilustre, peço licença para aportar num outro mar:

Óh, mar salgado, quanto do teu sal São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarem, quantas mães em América ou no Reino do Congo foram separadas do seus filhos, cometeram infanticídios e sequer puderam chorar!
Quantos filhos foram separados de seus pais, pela guerra e orfandade!
Quantos filhos foram escravizados, mortos, mutilados, silenciados!
Quantas noivas foram estupradas antes mesmos de desposada por seus próprios amores!
Para que fosses, ó mar de terras Lusitanas!

Valeu a pena?
Não se pode responder, não há mais como voltar
Via de mão única
Alma imensa que transborda híbrida de dores,
mas também de amores e de novos sentidos.

Quem quer passar além do Bojador, Chuí ou Gilbraltar
Tem que passar além da dor,
Buscando no espelho-mar
Outras, múltiplas, plurais faces
Perigosas, abismai faces,
Próprias do entrelugar
Que, inevitável, se constiuiu em nós livres colonizados