Quando venho a Ilha Grande é de lei a visita ao
cemitério com meu pai. Lá está a carneira onde meu avô Antônio Egídio foi
enterrado e hoje também estão os ossos de meu Tio Vavá. A gente segue
caminhando lá para o Cantagalo. No percurso, meu pai vai revendo os antigos
amigos. Eles se apresentam, se olham, miram os rostos uns dos outros, marcados
pelo tempo, até que se reconhecem e começam a contar histórias do passado.
Aqui meu pai não é Guido Moreno (o sobrenome de meu avô). Aqui ele é Guido
Dócio, filho de Maria Dócio e irmão de seu Vavá. Moreno só no continente, porque
na Ilha ele é lembrado pelo dócil nome da mãe.
Depois dessa procissão animada e risonha, a
gente começa a ficar mais quieto porque o cemitério vai se aproximando. Fica bem
no alto. Meu pai diz que é para se chegar mais perto ao céu. É cercado por uma
mata onde pode se ouvir de lá o barulho da maré. Do lado da carneira onde estão
os meus, nasceu um cajueiro, em que parasitam gravatás e faz uma sombra tímida.
A gente vai se aproximando meio contrito e o choro de meu pai é certeiro,
forte, emocionado. Ele se justifica dizendo que sabe que não tem mais nada ali.
E acrescenta: "o que meu pai deixou não se guarda num túmulo, se expande
na vida". É que meu pai é metido a prosador. Eu nem posso entender a
emoção dele. Só sei que gosto de ir lá. Ainda que me pele de medo de alma. Mas
ouso dizer que ali é o melhor cemitério do mundo: no alto de uma ilha quase
paradisíaca, com direito a mata verde e brisa do mar.
Lá, eu e minha irmã só acompanhamos meu pai. Eu
tiro os matinhos que insistem em crescer em volta do túmulo e faço orações de
agradecimento. Aliás quando estou na ilha rezo o tempo inteiro. Agradeço a
beleza de ter os meus ‘beiradeiros’ vindos daqui, vejo o quão privilegiado é
poder desde sempre usufruir de um mar que não se acaba e de um céu que nunca se
finda. Lá, eu, meu pai e minha irmã vamos apenas para prestar homenagem ao meu avô
que me daria um nome se eu menino fosse. Vamos para dizer a ele o quanto ele
foi cedo, apesar de ter feito tanto por todos nós.
No fundo, não estou certa, mas desconfio que
gente só vai lá mesmo para reverenciar o passado e confirmar a nossa
existência. Ser quem somos hoje depende demais de conhecer uma história
anterior a nossa.
Por isso, nessa caminhada rumo ao cemitério, apesar de ser povoada por tantos medos, o único receio que me aflige é de no próximo verão não poder mais voltar. Porque sei que sou finita, que minhas gentes são finitas, assim como “tudo que é sólido desmancha no ar”, como afirma o velho Marx.
Por isso, nessa caminhada rumo ao cemitério, apesar de ser povoada por tantos medos, o único receio que me aflige é de no próximo verão não poder mais voltar. Porque sei que sou finita, que minhas gentes são finitas, assim como “tudo que é sólido desmancha no ar”, como afirma o velho Marx.
Eu e minha irmã dizemos que parece que a Ilha
parou no tempo e a gente de forma egoísta gosta bastante disso. Mas meu pai
nesse passeio fúnebre e, ao mesmo tempo, festivo, porque é um passeio de
encontros e da confirmação da despedidas, nos mostra as casas que desmoronam
porque os jovens já não veem mais futuro por aqui, nos mostra onde era a festa
de são João, padroeiro da Ilha, e havia quermesse e quadrilha. Aponta para o
campo, na verdade a maré seca, onde o time de Futebol Bonsucesso fizera história.
Meu pai no nosso passeio também nos mostra algumas ruinas, dentre elas as da
antiga Igreja de São João. E eu, na vã tentativa de não deixar o passado
escorrer por entre nossas mãos, as fotografo para assegurar nesses tempos
líquidos um pouco mais de solidez.
No caminho, entre conversas e lágrimas, lembrei
de um texto que constava num cd de músicas italianas de Zizi Possi. Ela dizia que
sonhou com o avô já falecido. Este percorria um dos bairros italianos de são Paulo
a procura de vestígios de sua história. Mas a casa onde morara no passado, a
rua onde viveu e o bonde já haviam sido apagados pelo progresso. Em um momento,
o avô no sonho desespera-se e chega a duvidar da própria existência. Fiquei a
pensar se Antônio Egídio volta-se a Ilha... Será que tomaria o mesmo susto? Até
que o avô narrado por Zizi Possi encontra as ruínas da igreja onde havia se
casado e só assim se conforta. Ao olhar para as marcas do passado deixadas no
presente, ele confirma que um dia realmente existiu.
A ilha é assim para mim. É o meu relicário. Nela,
eu compreendo que antes de mim houve gente para garantir minha estada aqui. E
essa gente existiu de fato. Elxs mercaram nas venda, cruzaram essa baia de
canoa, tamanca, saveiro ou navio, se casaram, fizeram filhos, netos,
bisnetos... Na Ilha, eu me reenergizo simplesmente porque vejo que se hoje
existo e resisto é porque houve outros que também se aventuraram nas incertezas
da vida.
Então, eu, meu pai e minha irmã vamos cumprindo
nosso trajeto de volta ao Furado (localidade onde está a casa de nossos avós).
Ficamos reflexivxs. E eu cá com um certo medo de num futuro próximo me perder
do meu passado e já não ter nem gentes nem prédios para me garantir que minha
existência não passou de um sonho feliz. Porque, por mais ilusórias que elas
sejam, a gente precisa de eternidades.