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segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

AS MALUQUICES NOSSAS DE CADA DIA: FORA DE LUGAR

AS MALUQUICES NOSSAS DE CADA DIA: FORA DE LUGAR: Fico pensando em quanto, desde muito tempo, sinto-me fora de lugar. Deslocada de tudo. Sou tachada de chata, perguntadeira, questiona...

TOMARA QUE O MUNDO ACABE EM 2013



Foi tão boa essa idéia de que o mundo iria acabar em 2012. Instaurou uma dúvida em todo mundo, além da vontade, mesmo que inconsciente, de pagar contas consigo mesmo, de realizar aquilo que já não mais poderia ser deixado para depois. Mas o mundo não acabou e estamos aqui de novo com o péssimo sentimento de eternidade. Pois se para o poeta, a modernidade assustava, para mim o que assusta é justamente a perenidade que nos deixa tão seguros e nos faz ignorar que na vida cada ano-dia comemorado não é de vida, mas de morte. É sempre menos um. Nunca mais um!
Então, o que mais sinceramente eu proponho é que a gente acredite que o fim do mundo se aproxima. A gente devia até divulgar isso. Sei lá. Inventemos... Divulguemos que no calendário de algum povo do continente africano, há a informação de que de 2013 não passaremos. Os cientistas da NASA poderiam confirmar a informação a partir de comprovações científicas. Todos ficaríamos assustados no começo, entretanto, sorrateiramente começaríamos a sentir a urgência de viver as banalidades do cotidiano.
Desta forma, nesse ano que se inaugura a gente passaria a tratar cada dia como se fosse o último, porque na verdade é. O dia vivido, quando se acaba não volta mais nem se apaga! Ele deixa de existir, vira rastro na memória e nos lega a incerteza do amanhã. A gente só sabe do passado justamente quando ele se findou. É no presente que olhamos para trás, que nos conscientizamos daquilo que experienciamos.
Certos do fim, iríamos nos preocupar menos com as contas a pagar, com as formações acadêmicas, com os prazos a cumprir. Faríamos menos coisas urgentes e mais coisas ordinárias. Usaríamos cores mais fortes para pintar as unhas e para quem não pinta unhas, inventaríamos um outro prazer bobo. Ou como diria Gil: uma outra alegria de quintal.
A gente se encantaria mais com os pequenos prazeres do que com os enormes sonhos inatingíveis. Não que eu ache que a gente não deva ter sonhos impossíveis. Não que eu ache que a gente não deva gastar suor com metas grandiosas. Eu acho que a gente tem direito a tudo isso. Mas penso que investir cegamente e unilateralmente em comprar um iate ou poupar o primeiro milhão, nos leva a perder os diários amanheceres, os comuns ‘bom dia’ dos amores de nossas vidas, as risadas do fim de tarde, o sabor da fruta madura da estação.
Com a iminência do fim do mundo, perderíamos menos tempo apontando, controlando ou opinando sobre a vida alheia. E assim, passaríamos a respeitar mais os desejos conscientes do outro e, principalmente, faríamos absolutamente nada para agradar ou dar justificativas ou provar algo. Então, apesar da presença inevitável do medo em nossas vidas, não nos faltaria coragem para enfrentá-lo. Não nos permitiríamos mais dizer o não com feição de sim nem o sim com jeito de não.
Dada a proximidade do fim, a vida do outro não caberia no nosso rol de preocupações. A gente iria buscar formas mais genuínas de felicidade. Desejaríamos querer mais voltar à praia que íamos infância de mãos dadas como nossos pequenos do que poupar para presenteá-los com o X-Box da vez! Nem haveria razões para poupar dinheiro, tempo ou sentimentos.
O fim nos obrigaria a viver o agora e a lidar com toda sorte de emoção que emane de nós. No fundo, não creio na possibilidade do mundo acabar. Mas a idéia me parece boa. Crer no fim para não esperar a boa hora de se lançar ao mar. Crer no fim para se jogar na vida intensamente. Crer no fim para valorizar cada começo como se fosse o último! Parece uma boa pedida. Então aos viajantes corajosos e afeitos às maluquices da vida, eis o meu desejo: brindemos a 2013 como o ano do fim!

sábado, 29 de dezembro de 2012

FORA DE LUGAR


Fico pensando em quanto, desde muito tempo, sinto-me fora de lugar. Deslocada de tudo. Sou tachada de chata, perguntadeira, questionadora e, mais modernamente, problemática. Só porque, por alguma razão desconhecida até mesmo por mim, vou sempre pelo caminho contrário. A maré em que me afundo é sempre a que vai contra a corrente.
Meu pai, coitado, foi certamente a minha primeira vítima. Esperava que eu viesse um garoto para homenagear seu pai e fazer seu sobrenome ser levado a, pelo menos, mais uma geração. Mas lá vim eu, com um vazio entre as pernas (e pior dentro da alma). Certamente essa uma das maiores frustrações da vida dele. E não parou por aí. Havia outras que o acompanhariam por toda a existência: minhas escolhas todas (desde as amorosas até as religiosas) iriam seguir para sempre justamente as trajetórias inversas àquelas defendidas por meu pai. Tudo isso muito duro e difícil para nós dois! Mas um fato inegável. Um tentando inconscientemente ferir o outro por aquilo que não veio...
Já na escola, ingressei com um ano e meio, porque minha mãe já era da geração que trabalhava intensamente, mas ainda levava o peso da culpa por não ser a mãe que minha bisavó fora (até porque esse negócio de mulher trabalhar em minha família já não é novidade desde a minha avó materna). Aí, para adentrar os portões escolares era o caos porque eu fazia a maior confusão, chorava, corria atrás do carro materno. Minha mãe conta que as professoras foram investigar a razão da balburdia e tiveram de mudar toda sua metodologia. O motivo era um só: eu, ao chegar à escola, queria contar tudo o que meu avô havia proporcionado de aventura para mim no fim de semana e a escola não me dava espaço. Por isso, botava a boca no mundo, desde muito cedo a reivindicar direitos que nem sei se me cabiam. Minha mãe conta isso toda orgulhosa, dizendo que a escola passou toda segunda-feira a começar sua rotina com uma rodinha de conversa em que as crianças falavam.
Sei lá se é verdade verdadeira. Mas o fato é que a inconformação está dentro de mim desde sempre e também bem cedo aprendi - chorando, gritando ou falando - a expressar essa inquietação e dúvida que tenho diante das coisas que vejo. Eu não me orgulho disso. Primeiro porque incomoda muita gente, segundo, porque fatalmente essa muita gente faz um esforço danado para me fazer ver as coisas como elas acham que deveria ser. Parece inevitável. Acontece sempre. Vou a um filme com amigos e todos gostam. Menos eu!
Tenho alguns apelidos em minha família (uns publicáveis e outros não) para definir meu lugar como a famosa do contra. Na minha casa, me consideram xiita em relação às questões étnicas e de classe. Acham que sou radical, tenho preconceito às avessas; gosto do que consideram as minorias, as defendo ferrenhamente e marginalizo tudo que é designado por eles como centro. Já em outros espaços me consideram burguesa, condescendente, conciliadora. Exigem de mim uma tomada mais radical de posição. E lá vou eu, me sentindo ao longo da minha vida no nem lá nem no cá.
E exemplos abundam em minhas vivências. Sempre gostei de dançar. Na minha infância, por total falta de opção, fiz ballet por alguns anos. Assim, apesar de sempre gordinha e grandona, era a bailarina da casa.   Nas aulas, a professora reclamava. Dizia que eu não era nem delicada nem leve. Coisa que considero óbvia hoje em dia. O que me forçava a me encaixar num modelo do qual eu não pertencia. Era como colocar uma bola numa forma quadrada. Óbvio que não deu certo... O tempo passou, eu cresci, passei a questionar os paradigmas e lá veio a dança afro entrar na minha vida. Me encontrei completamente. Sou defensora apaixonada desta modalidade ainda tão marginal da dança, entretanto, meu primeiro professor dizia: “Querida, dança afro tem que ter força e você é muito leve e delicada. Precisa colocar menos suavidade nestes movimentos”. E eu só respirava e ouvia, até porque nunca consegui compreender como uma pessoa pode, ao mesmo tempo, abarcar agressividade e leveza juntas num só corpo e num só espírito. Porém era desse ‘avesso do avesso’ que me acusavam.
 Se o assunto é religião, então, a coisa se complica e muito. De uma família carola católica, desde sempre, na minha adolescência ia à missa todos os sábados. E prestava atenção, tentava entender, mas ficava super mal porque toda informação gerava uma pergunta, uma dúvida, uma inquietação dentro de mim. Aí, comecei a observar outras religiões e cheguei a conclusão nenhuma. Aliás, só optei por duas certezas: minha total indisponibilidade de me dedicar a qualquer religião e a minha opção por crer em Jesus Cristo. Nem uma vírgula a mais nem a menos. Apesar do total paradoxo desta postura.
Hoje, uma balzaquiana, prestes a deixar de sê-la, lá sigo eu muito culpada por identificar em mim esse comportamento pra lá de adolescente da insatisfação e da má vontade em aceitar os caminhos indicado por outros. Parece que a pirraça irrestrita é um comportamento colado em mim. Sinto me culpada por já ‘burra velha’ ainda discordar de tantas coisas, ainda questionar os mais velhos. Sinto-me uma criança tardia que ainda sofre com mágoas tão passadas, tão infantis. Anos de terapia devem ter servido para curar pouco. E a vergonha aumenta quando me tranco para chorar de uma dor ínfima que nem é a dor da mulher Frida traspassada por um bastão de ferro esterelizador, nem é a dor de uma Cecília, amiga irmã da morte tão prematuramente.
E eu nunca sei (e nem sei se um dia saberei) por onde irei. A probabilidade mais acentuada, entretanto, é que eu continue a seguir por onde sempre segui. Insatisfeita, reclamando, duvidando de todos os caminhos, e ouvindo as insistentes buzinas e os gritos enraivecidos dos demais, sinalizando: “está na contramão, está na contramão”.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

ENTÃO É NATAL?!?!?!

Mais outra maluquice. Em pleno maio, comecei a pensar no Natal. Vê se pode? É porque nunca na história de anos passados, houve uma comemoração atrás da outra, como neste 2011. Páscoa, colada com dia das mães, um monte de outdoor de São João. Daqui a pouco é Natal, mesmo!

E como minha cabecinha não pára de pensar, já fui ficando incomodada com a rapidez do passar do tempo, com o consumismo desenfreado. Ô cabeça que não pára. Fiquei viajando (e sofrendo um pouco, é claro) com certa loucura que ocorre em todo dezembro (quiçá em toda brecha de tempo que a indústria encontra para vender). Todos criticam o comprar, comprar, mas também participam. Dentre este todo mundo é óbvio que eu me incluo até o último fio de cabelo. Já no final de novembro, faço listas de presentes e presenteados, vou ao comércio inúmeras vezes para comprar os presentes, gasto mais de 30 horas neste empreendimento. Compro embalagens, durex e fitilhos. Gasto em média... Deixa para lá. Nem eu mesma sei. E nem teria coragem de revelar mesmo.

Nessa fúria louca de comprar, comprar, embalar, embalar, fico a pensar no espírito que move/origina todos estes eventos... Como uma boa menina cristã e educada pelos dogmas católicos, apesar de ir com a multidão, algo fica martelando em minha cabeça: por que me envolvo de forma ensandecida nesta onda? Sei da superficialidade disso, sei que muitos dos presentes que compro são só para cumprir um papel, critico o consumismo excessivo, discuto a linha tênue entre amor, amizade e hipocrisia. Em suma, sou uma das chatas do politicamente correto.

Nessas viagens para responder a tal provocação desnecessária, mas insistente, lembrei dos natais que tive e talvez esteja aí a descoberta da pólvora. As coisas que lembrei estão nítidas na minha memória afetiva, mas eu nem mesma sei se elas de fato aconteceram ou se fazem parte daquilo que na memória é misto de realidade e invenção. Não tenho como as comprovar. Talvez compartilhá-las seja uma forma de ouvir alguém dizer: “foi mesmo, eu também me lembro”. E essas testemunhas oculares dessas minhas histórias de natal sejam as provas daquilo que vivi. Ou não, sei lá. O que importa?

Jamais me esquecerei, por exemplo, da vez em que meu pai muito seriamente nos disse, a mim e a Zau, que não teríamos presentes de Natal. Fiquei triste, pois o peso de ser uma boa menina foi sempre um fardo que tive de carregar, sendo assim não havia razão para tal decisão extremista. Depois, veio a explicação, iríamos a alguma loja de atacado de brinquedos, acho que era A.Gomes, compraríamos muitos presentes para meninos e meninas das nossas idades, e no dia da confraternização da enorme indústria da qual meu pai era dono (foi nisso em que sempre acreditei, é óbvio que não era verdade, mas também não era mentira – coisas da memória), eu e Zau daríamos aqueles presentes a cada funcionário para eles entregarem aos seus filhos. Me lembro de pegar cada presente e entregá-los. Me senti tão feliz, tão maravilhosa e importante, me senti uma pertencente verdadeira desta coisa imensa que chamam de humanidade. E não me venham provocar com aquela história de assistencialismo nem caridade. Eu era a menina com a mão extendida para o outro e um presente na mão. E como disse Clarice, hoje descubro que sou e sempre serei esta mesma menina de presente na mão e olhar fixo na mão do outro que se aproxima da minha. Que bom!
Não há como esquecer também dos Natais na casa de minha vó Benita em Lauro de Freitas. Ganhava tantos presentes. Minha família nunca foi rica. Éramos de uma classe média bem média, sempre labutando muito para não descer de padrão. Coisa bem brasileira. E os presentes eram vários, mas jamais os caríssimos jogos super-mega-master-plus-hi-tech.A casa era tão linda, tão cheia de gente. Meu avô estava lá para animar tudo, para receber as pessoas e fazer com que nós acreditássemos que aquilo era o mundo inteiro. Eu lembro da cor vermelha emanando de todas as coisas, lembro de um presépio colorido que ficava armado na enorme estantes da sala e lembro da areia que colocávamos no lugar onde ficaria o presépio. É impossível esquecer do algodão da árvore de natal, certamente para dar um ar mais europeu, já que meu avô Umbelino como todos sabem era sueco (de pais negros e de Maragogipe, mas era sueco).

Natais como aqueles nunca mais senti. Em um Natal, recebi de meu avô, uma caixa enorme com fantoches maravilhosos de todos os personagens da história de chapeuzinho vermelho. Não era um brinquedo, era um convite a fantasia, a criação, a contação de histórias. Talvez por isso, eu ame tanto as palavras, estude-as com a minha alma e adore conta-las. Inesquecível também uma boneca bebê japonesa (olhinhos puxados e tudo) que Zau ganhou. Eu que falo tanto em diversidade, em respeito as múltiplas identidades, jamais vi uma boneca japonesa para presentear aos meus trocentos sobrinhos. Como será quando nascer um bebê Fugiwara, onde mesmo acharei tal presente? Onde é que eles arrumavam estes brinquedos? Eram coisas tão magníficas, tão ímpares. Onde estão estes brinquedos? Se eles não vendem mais, será que eles existiram um dia?

Depois, vi inúmeras vezes minha avó, minha mãe e minha tia Lúcia fazendo as listas de presentes. Nelas estavam as pessoas muito amadas, as queridas e as nem tanto. Elas iam juntas a velha e boa Avenida Sete comprar os presentes. Passavam o dia inteiro na rua, nos levavam, riam muito, se divertiam, brigavam também, sempre se perdiam uma da outra, usavam aqueles instantes para celebrar o amor que tinham umas pelas outras. Depois era a casa cheia de presente. E isso, era mais magia para os meus olhos, pois uma casa farta e cheia de presentes é tudo que uma criança quer. Júlia e João o Pedro que o digam.

O próximo movimento é embalar e levar os presentes. Por muitos anos, minha mãe fez e faz uma peregrinação para a entrega dos presentes. E na lista estão desde dona Anita, ex-servente do Colégio Kleber Pacheco, até a secretaria de Bem estar Social da prefeitura de Lauro de Freitas. Para minha mãe, mais do que entregar o presente ao presenteado; é a hora de se sentar no quintal da casa de d. Anita e falar sobre o tempo (de outrora, de agora e de sempre).

Há alguns anos, veio o primeiro emprego e aí tive uma vontade imensa de fazer a primeira lista. Nela havia somente sete nomes: GUIDO, NORMA, ZAU, LÚCIA, SUELI, SANCI, CARMINHA. Depois a família aumentou, chegaram muitos novos amores e a lista também cresceu. Então acho que é por tudo isso. Creio que a resposta para essa fúria desenfreada na qual me insiro seja uma enorme vontade de retribuir às pessoas que me proporcionaram essas memórias novas histórias para contar. Desejo mesmo que em cada presente esteja o meu amor e o meu agradecimento por todas essas historinhas, sejam elas inventadas ou acontecidas.

UMA HISTÓRIA MINHA DE LEITURA

Lauro de Freitas, Bahia, 20 de janeiro de 2012.

Oi, Pepeu! Depois de uma semana em Salvador, já estou cá de volta a Porto Alegre, lembrando-me da nossa despedida no aeroporto. Todos com olhos vermelhos de lágrima e só você bem alegre. Pensavas que viria comigo, não era? Até tentou entrar no saguão de embarque e quando me viu chorar, disse bem alto: “Vamos ser alegres em Porto Alegre”. Todos caímos na risada, menos você, porque já percebia que eu entrava por aquela porta sozinha, sem você, sem Mamá, sem nossa família. Foi só ai que se desesperou e acho que de tudo entendeu bem pouco...

Mas enfim, nem tudo é tão alegre aqui em Porto Alegre, como você pensa. Há coisas bem estranhas por estas bandas. E você, como bom detetive que é, sabe o quanto eu, medrosa de carteirinha, fico assustada com coisas misteriosas. Pois bem, contando ninguém acredita. Estava na casa onde moro, quando do nada, bateram na porta: toc-toc. Perguntei quem era e a voz disse apenas: “Correio”. Abri a porta bem devagarzinho, já que não tenho olho mágico nem na porta nem na cara. Então vi aquela figura assustadora: era um velho mal encarado, com uma cicatriz no nariz, barrigudo, de capa preta e... Sem farda dos Correios Brasileiros. Ele rapidamente me deu um papel, pediu que eu assinasse (e assim o fiz). Entregou-me um livro bem pequenininho com capa de madrepérola. Parecia um breviário. Você sabe o que é um breviário? É um livro em que os religiosos colocam suas orações.

Entrei em casa e fiquei pensando de onde viera aquele livrinho tão pequeno, sem identificação do remetente. Tomei coragem e abri-o. De lá de dentro, Pepeu... Você não vai acreditar... Aliás, você eu sei que irá compreender, mas se fossem seus pais ou sua avó. Hahaha. Duvido que acreditassem nessa história. Iriam dizer que era um sonho ou mais uma das minhas invencionices... Pois bem, lá dentro, só havia a imagem de um longo caminho vazio. Não havia nem flores, nem bichos, nem florestas, nem gentes. Achei tão esquisito, mas quando tentei folheá-lo, saíram das páginas pós brilhantes. Eu de grandona que sou fiquei pequenininha feito o Polegar e cai dentro do livro. Pode? Meu coração saltava de tanto medo. Eu suava que nem um cuscuz. Olhei para todos os lados e nada vi. Tentei buscar uma saída, mas só havia o nada em minha frente. Meus olhos se encheram de lágrimas, mas, como não existia outra opção, decidi seguir pelo caminho para descobrir onde chegaria e como faria para voltar para casa. Há poucos metros, avistei uma enorme placa, onde se podia ler: OS LIVROS ONDE SE DESEJA MORAR. Achei engraçado, apesar de toda aquela confusão e angústia. Onde já se viu? Livros para morar?

Seguindo a placa, encontrei uma casa enorme, parecia uma velha fazenda, cheia de janelas grandes e toda avarandada, mas não havia viva alma. Bati na porta delicadamente, e ninguém atendeu. Como achava que não havia ninguém lá mesmo, abri a porta. Ledo engano... Lá estava um monte de gente, amordaçados, amarrados, com olhares entristecidos. Eram conhecidos, mas eu não me lembrava bem de onde. Havia uma lesma[i], bem gordona, com roupa de festa, que parecia estar se arrumado para ir a um aniversário. Do outro lado, estava um grupo de crianças pequenas, todas amarradas umas nas outras, uma fedia tanto que não sei como os outros podiam suportar e a outra, aos prantos, segurava um coelhinho[ii]. Bem, no centro, estava uma menina. Devia ser a mais perigosa, pois estava ela e outra mais velha, amarradas de cabeça para baixo, com vara de condão nas mãos, um relâmpago no pescoço e um enorme bolinho de chuva enfiado na boca[iii]. Espalhados pela sala estavam vários bichos de estimação, até um bicho de pé, todos eles amarrados ao pé de Sua Avó. Calma, não me refiro a Vovó Norma, mas ao cãozinho basset que não podia nem se coçar e muito menos latir.[iv] Pepeu, não fique assustado, mas não eram só esses bichos: tinha mosquito, pingüim, leão, galinha d’ángola. E o pobrezinho de Assis... Isso mesmo! São Francisco, descalço, de mão e pés atados, literalmente.[v] Que heresia, meu Deus, que heresia! Por último, vi uma galinha, um jumento, um cachorro e uma linda gata[vi]... Estavam amontoados um em cima do outro, parecendo formar um horrendo monstro. Fiquei a pensar de onde os conhecia e sem contar conversa, comecei a soltá-los. Por que você sabe, não é, Pepeu? Corajosa eu não sou, mas injustiça eu não tolero. E aí, menino, foi aquela algazarra. Todos ficaram a falar, a fadinha começava a ter idéias para me agradecer, os bichos queriam festejar, a lesma no seu jeito devagar, agradecia e perguntava se ainda daria tempo de chegar a festa. E cada um tomou a sua direção. Todos arrumaram um lugar no entorno da casa e de uma forma barulhenta juntos começaram a providenciar suas moradias. Só que agora livres a cantar, brigar, bagunçar e correr. Eram muito animados aqueles seres encantados, viu?

Notei que naquele vuco-vuco, tornaram o local menos inóspito, mas o tempo passou e lá estava eu sozinha e perdida novamente. Na agonia, nem perguntei, porque estavam presos, nem como eu sairia daquele lugar. Mas cavucando a memória, lembrei que todos aqueles eram personagens das histórias que me faziam feliz na infância. Lembro-me que eu me agarrava a cada um daqueles livros e dormia com eles, comia com eles e pedia que os adultos os contassem várias vezes da mesma forma, sem esquecer nadica de nada. Eu queria viver intensamente lado a lado, quando menina, em cada um daqueles livros, com cada um daqueles personagens. Mas seguir era minha única opção. E fui. Até que outra placa apareceu: OS LIVROS QUE SAEM DA BOCA. Achei mais uma vez engraçado e decidi arriscar. Eu estava ali mesmo, perdida, sem noção de nada. Não custava descobrir.

Depois de alguns metros da casa, vi um mar enorme e uma casa grande, de pau a pique. O céu era de um azul intenso, mas o sol de rachar deixava o calor abrasador. Nem bati na porta. Fui logo entrando. E dessa vez, o susto foi maior. Era uma cena de terror de verdade. Então, se prepare, Pepeu, porque tem que ter muita coragem para ouvir o que agora eu vou contar. Havia uma mesa. Nela estavam sentados velhos e velhas com as bocas costuradas e o olhar perdido no nada. Meu Deus, eu não sabia bem o que fazer. Como descosturar bocas costuradas? Você sabe? Eu também não sabia, mas como dizem os antigos: “necessidade faz mulé véia parir”. Com o peito apertado, fucei a casa toda e achei uma faca afiada. Tive tanto medo de cortar os pobres velhos, mas com delicadeza, tirei as linhas de cada boca, cuidando para não sangrar ou ferir. E uma lágrima abundante correu do olhar deles em agradecimento. Tinha a mesma sensação da casa anterior: achava que os conhecia. Até que ao sair a última linha, os quatro velhos saltaram sobre mim, me apertando num abraço já sentido. Foi a vez das lágrimas caírem dos meus olhos... Eram meus avós, os seus bisavós, Pepeu. Você pode acreditar nisso? Há quanto tempo não os via? Há quanto tempo não os ouvia? Nem posso contar nos dedos. Maria, Antônio, Benita e Umbelino. Lá estavam eles, levantando-se da mesa, sorridentes e já colocando a boca liberta no mundo para contar histórias. Foram à cozinha da casa que ficava nos fundos e tinha uma enorme mesa. Do nada, surgiram bolo de puba, cuscuz de tapioca, banana da terra cozida e frita, um fruta-pão quentinho, um mingau de milho, tapioca seca, café, suco e muita siriguela, pitanga, manga. Que mesa farta! Não havia dúvidas. Eram meus avós mesmos!

Umbelino já começou fazendo graças e jurando de pé junto ser um rico fazendeiro em cuja fazenda há um rio cheio de bacalhau. Afirmou também que nas suas terras existia somente uma vaca (“para que mais?” ele perguntava) que num dia dava leite, no outro, dava leite condensado, no seguinte, produzia queijo e, no último dia, o queijo já saia na cuia. Depois, a vaca descansava, porque era uma trabalhadeira retada. Maria vinha docilmente aconselhando, dizendo que rezar era importante. A cada conselho aparecia um dito popular reflexivo: “quem a boca do meu filho beija, a minha adoça” ou outros cheios de picardia: “quem é dono dos beijos é dono dos peidos”. Antonio falava das histórias de seu irmão Manoel, tão diferente dele. Contava da raiva que o irmão sentiu em não ter sido convidado para o forró, porque o povo das redondezas achava que festa com Manoel sempre dava em confusão. Foi a deixa para mais uma das suas muitas artimanhas safadas. Dizia meu avó que o irmão se escondeu do lado de fora de uma das janelas. O arrasta-pé, comendo no centro, o povo suando e ele colocando pimenta malagueta de uma em uma no salão. Até que o povo começou a pisar nas danadas e a se coçar e foi um levantar de saias, foi um arde-arde que todo mundo acabou a festa e dali por diante aprenderam que folia com Manoel era bem mais tranqüila do que sem o sapeca. Por último, falou Benita sempre tão delicada, tão meiga. Uma mulher tímida, cuidadosa, mas que na hora de contar histórias só sabia assombrar. E começava a falar da menina que mesmo morta chamou o médico na estrada pra salvar a mãe; falou da madrasta que enterrou a enteada vivinha da silva só porque a pobre menina se descuidou da figueira; falou de um homem belo e sedutor todo de branco, que na verdade era o diabo. Por último, me chamou perto dela, colocou-me no colo como se criança ainda fosse e pegou debaixo da cadeira de balanço onde estava sentada várias gravuras de lendas brasileiras. Ela me mostrava as belas imagens e contava cada uma das narrativas. A do Boitatá, Caipora, Vitória Régia, a dos Bandeirantes, do Negrinho do Pastoreio, da Iara, da Mandioca, do Guaraná[vii].

Adormeci e quando percebi já era de manhã e eu estava sozinha na varanda. Olhei para dentro da casa e estavam todos em seus afazeres, cozinhando, cosendo e conversando. Percebi que muitas crianças tinham aparecido e ouviam felizes as histórias dos meus avós. Fiquei sem jeito de falar a eles da minha partida e com o coração aos pedaços decidi ir embora silenciosamente. Já na estrada, vi-me sozinha mais uma vez. Ao olhar para trás, vi todos eles rodeados de crianças, acenando para mim. De suas bocas saiam livros inventados e livros de verdade. Muitas de suas histórias me aninhavam, me assombravam, me faziam rir e adormecer. Nos seus rostos, havia felicidade e compreensão.

Mais uma vez, a emoção me impedira de buscar as razões que explicassem porque os havia encontrado daquele jeito e de que forma conseguiria retornar para casa. Mas meu coração estava pleno de gratidão pelo efeito que aquelas bocas contadoras de histórias haviam desde muito plantando em mim. Mas como seguir era mesmo minha única opção... Lá fui eu de novo. Olha, Pepeu, foi bom parar na casa dos nossos antepassados. Além de ajudá-los a sair daquele sufoco, pude descansar e recarregar minhas baterias para prosseguir. Você deve estar orgulhoso de mim, não é, Pepeu? E achando até que eu tenho os super-poderes dos heróis que você adora. Que nada, menino. Sou gente de carne e osso.

E estava mais uma vez completamente desnorteada. Andei léguas e nada de placas. Até que vi um muro branco, cercando toda uma casa, cheia de grades e um enorme portão. Parecia uma escola... Ou uma prisão? Confesso que tive muito medo, pois nenhumas das opções eram agradáveis para mim. Aproximei-me do local. Não havia placas. Apenas uma pichação na parede que dizia: “LIVROS DE CONFORMAÇÃO”. Aproximei-me do portão e logo veio um homem fardado que me inquiriu: “Quem é? De onde vem? O que faz? O que deseja? Volte depois”. Falou tudo num rompante, sem esperar resposta e me deu as costas. Que deselegância, Pepeu. Você sabe que sou medrosa, mas indelicadeza eu não suporto... Então, com as mãos nas cadeiras e dedo em riste, respondi tudinho: “Sou Luciana. Venho da Bahia. Estou perdida. Preciso de ajuda. Não posso voltar depois. Me ajude agora, logo e rápido”. E sabe o que eu descobri? Para um mal educado, um mal educado e meio. Só foi falar grosso e ríspido, o talzinho voltou e sem pestanejar destrancou os portões. Lá dentro eram muitas salas e em cada sala havia crianças, sentadas em fileiras em total silêncio com ouvidos enormes e sem bocas. Crês, Pepeu? Existia também em cada sala uma mulher, com um chicote numa das mãos, na outra, livros ‘embolorados’ e sem ouvidos nem olhos. As mulheres eram só boca. E como falavam. Liam dos livros maneiras de ser educado, não escarrar no chão, não arrotar na mesa, ser bom menino. “Eita, vida besta, meu Deus”.

Notei que havia um enorme pátio e nele estavam amontoados diversos livros. Fui até a pilha e encontrei livros que amava. Vi logo os livros da Coleção Vagalume, como O Caso da Borboleta Atíria, Meninos sem pátria, Açúcar Amargo, Sozinha no mundo. Depois, vi todos os volumes da Coleção para Gostar de Ler. Olhei para cada um deles e lembrei-me dos contos e das crônicas que li de Drummond, Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos. Havia também aquela coleção linda de capa dura, cor bege com letras douradas que minha mãe certa vez me presenteou: O Mundo da Criança. Ah, espalhados estavam os lindos poemas de Olavo Bilac, Cecília Meireles, Vinícius de Moraes, Henriqueta Lisboa. Meu Deus, naquele amontoado, havia um manancial de prazer e saber! Desejei me jogar na montanha bagunçada, quando novamente apareceu o homem do portão, com fósforo e garrafa de álcool em punho. Fiquei perplexa, sem entender bem qual seria o próximo movimento dele. E sabe o que ele começou a fazer, Pepeu? Resmungava, jogando o liquido perigoso nos livros: “Mais porcarias para queimar. Isso não deve estar aqui. Não educa. Não conforma. Sem utilidade alguma”. Por que livros tão maravilhosos tem de ser úteis? Aí, aquela ousada que habita em todo ser vivente, se apossou de mim novamente e puxei a caixa de fósforos das mãos daquele louco. Na minha raiva, abri as salas, puxei as crianças com força e disse que pegassem os livros que quisessem, sentassem-se onde quisessem e começassem a ler. Afirmei que caso a leitura não as agradasse, escolhessem outro e outro livro até encontrarem aquele por que se enamorassem. Empurrei as resistentes mulheres e disse que fizessem o mesmo. Acho que eram todos tão obedientes que nem pestanejaram e fizeram o que ordenei. A partir dali e, nem me pergunte como, Pepeu, mágicas aconteceram... Apareceram bocas nas crianças e olhos e ouvidos nas mulheres. O homem timidamente começou a se aproximar da montanha e foi buscar seu livro também. E pasme, meu lindo menino! As grades se transformaram em janelas, o portão desapareceu, dando lugar a uma linda ponte e cores e flores e frutos e árvores irromperam do vazio. Havia uma “silenciosa algazarra[viii]” de olhos, bocas e ouvidos que iam de um lado a outro lendo e lendo...

Fiquei a olhar aquele movimento e me lembrei que li muito poucos livros indicados pela escola. Na verdade, os achava chatos e sem graça. Pedia que os colegas os resumissem. Depois, fazia o teste e era aprovada. Simples assim. Entretanto, aquela montanha a ser jogada no lixo eram os livros que moravam nas estantes de minha casa e me embeveciam. Eram desprezados pela escola e amados por mim. Nunca me serviram para fazer provas ou para passar de ano, mas me fizeram feliz, constituíram-se em experiência de vida e leitura, não apenas passaram por mim, mas me transformaram neste ser que hoje sou.

Bem, Pepeu, não preciso lhe dizer que saí mais uma vez sorrateiramente, solitária e sem respostas. E também, não preciso lhe dizer que segui em frente por ser esta a única opção que me restava. E fui... Dei alguns passos e vi uma placa, caída no chão cujos dizeres eram: “CABEÇAS INVENTORAS DE LIVROS”. Só que não havia casa, nem muros, nem nada. Andei pelo caminho e vi alguns jovens sentados no chão. Eram mais uma vez conhecidos e dessa vez não tive a menor dúvida. Sabia exatamente quem eram cada um deles. Não havia sido apresentada a eles na infância. Infelizmente. Mas a vida adulta e minha vocação de professora tinham há muito os colocado em meu caminho. Fiquei um pouco a olhá-los. Mesmo inertes, eles eram tão sedutores... Digo isso, pois suas mãos estavam atadas por detrás das costas. A frente deles, havia um enorme piquenique. Havia também máquinas de escrever, computadores, canetas, papéis. Mas tudo intocado por eles. E lá fui eu mais uma vez, já acostumada a desatar nós, a empurrar meninos, a cortar linhas de bocas. Desatei as mãos atadas e das mãos soltas saíram livros. As mulheres se apresentaram: Lígia[ix], Ana[x], Ruth[xi], Elisa[xii], Eva[xiii], Maria Clara[xiv]. Os homens, garbosos, diziam seus nomes: Ziraldo[xv], Lobato[xvi], Ricardo[xvii], Charles[xviii], Hans[xix] e dois irmãos que não se desgrudavam e falavam tudo juntos[xx]. Nem eram necessárias as apresentações, sabia cada nome. E os amava como se amiga de infância deles fosse. Fiquei mais uma vez a ouvir suas histórias. Estavam animados e não paravam de parir novos contos, novas fábulas, novas histórias...

Até que a mais querida, Ana, pediu silêncio e dirigiu-se a mim com ares de sabedoria: “Sabes o porquê de tantos desafios, menina professora?”. Meu olhar afirmava um não, mas “boca não disse palavra”... E ela continuou: “Foi aquele tal de Celso Sisto, contador de histórias e colega nosso no ofício de escrever. A culpa é todinha dele. Estávamos todos adormecidos em sua memória e não é que o danado lhe aperreou até que você seguisse sozinha esse belo caminho?”. É verdade, Pepeu, tenho um professor novo que colocou como dever de casa o exercício de lembrar. E Ruth pegou a deixa de Ana e continuou: “Mas você, subversiva como é, menina professora, percorreu um caminho maluco, cheio de prolixas páginas... E vai dar um trabalhão danado ao pobre”. Ziraldo, com objetividade masculina, aquietou meu coração: “Não se avexe. Essa é a última placa dessa estrada. Na verdade, a penúltima. Olhe pra frente que voltarás para casa e nem vai precisar bater os pezinhos como Dorothy”.

E eu olhei. Havia sim mais uma placa, onde estava escrito: LIVROS DO PORVIR. Fui pelo caminho e lá estava a casa onde moro aqui em Porto Alegre, Pepeu. Entrei nela com satisfação e tranqüilidade. Ao abrir a porta, deparei-me com uma enorme estante repleta de livros nunca lidos. Aí, meu amor, foi só acariciar uma daquelas lombadas, tirá-las da estante e começar novamente a trilhar novos caminhos. Mas essa, meu lindo menino, é uma história que nem sei aonde vai dar. O importante é que retornei sã, salva e doida pra te contar essa deliciosa aventura...

Um grande beijo cheio de saudades da dinda que muito lhe ama;

Luciana Moreno.

[i] Lúcia Já vou indo, Maria Heloisa Penteado. [ii] Histórias em Quadrinhos da Turma da Mônica. [iii] A fada que tinha idéias, Fernanda Lopes de Almeida. [iv] Os bichos que tive, Tatiana Berlinky. [v] A Arca de Noé, Vinícius de Moraes. [vi] Os Saltimbancos, Chico Buarque. Na idade adulta, li os Músicos de Bremmen, recolhidos e escritos pelos Grimm.. [vii] Minha mãe contava muito a história da Dona Baratinha, cantando as canções, inclusive. Mas não cabia inclui-la aqui. [viii] Expressão usada por Ana Maria Machado em livro de mesmo nome. [ix] Lígia Bojunga (A bolsa amarela). [x] Ana Maria Machado (Raul da Ferrugem Azul, Menina Bonita do Laço de Fita, Bisa Bia Bisa Bel, Abrindo Caminhos, Do outro lado tem segredos, No país dos prequetés...). [xi] Ruth Rocha (Marcelo, Marmelo, Martelo; O dono da Bola; Terezinha e Gabriela, As coisas que a gente fala, O Barba Azul...). [xii] Elisa Lucinda (A menina transparente). [xiii] Eva Furnari (A bruxinha atrapalhada). [xiv] Maria Clara Machado (Pluft, o fantasminha; Eu chovo, tu choves). [xv] Ziraldo (Menino Maluquinho, Flicts, As anedotas, A menina Nina, o Menino Marrom, Um professora muito maluquinha, A bela borboleta...). [xvi] Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho, As caçadas de Pedrinho, Negrinha). [xvii] Ricardo Azevedo (Baú do Folclore, Histórias de enganar a morte, Histórias de bobos, bocós, burraldos e paspalhões). [xviii] Charles Perroult (Cinderela, Chapeuzinho vermelho...). [xix] Hans Crhistian Andersen (A sereiazinha, Patinho Feio, A princesa e a ervilha, A pequena vendedora de fósforos). [xx] Os Irmãos Grimm (Branca de Neve, os Músicos de Bremen...).

sábado, 10 de novembro de 2012

ALUMBRAMENTOS

AS (antes-scriptum): Tenho elencado as coisas boas que Porto Alegre colocou em minha bagagem. Certamente, isso se transformará em texto. Todavia, já adianto uma coisinha: as atividades paralelas promovidas na Feira do Livro. Na semana passada, fiz uma oficina, chamada SOLTANDO A LÍNGUA, com o escritor pernambucano Mercelino Freire (outro texto relato para produzir). Muito bom. Maravilhoso mesmo. Dentre as mil viagens e maluquices que ele nos ofertou como provocação, veio essa. Pediu que dissessémos uma palavra que achávamos bela e a partir dela torceu de nós um texto. Um texto que revelasse nosso olhar singular sobre o que todo mundo vê no mundo. Amo a palavra ALUMBRAMENTO, conhecida por mim, ao ler EVOCAÇÃO AO RECIFE, de Manuel Bandeira (http://www.casadobruxo.com.br/poesia/m/evocacao.htm) e a escolhi... Desse encontro, entre as minhas maluquices e as de Marcelino Freire, saíram minhas imagens de alumbramento. Sirvam-se!

ALUMBRAMENTO 1 (DA AUSÊNCIA)
  • Acho que nunca o vi...

ALUMBRAMENTO 2 (DA MEMÓRIA)
  • Vestida de rumbeira, meus pais me puxavam pela mão. A frente, um céu de azul intenso E um mar de gente preta a dançar como se aquele fosse o último dia de toda existência.

AULMBRAMENTO 3 (DO NASCIMENTO)
  • Na madrugada, da bolsa partida, irrompia a vida.

ALUMBRAMENTO 4 (DA APRENDIZAGEM?)
  • Jamais vi Pôr-do-sol Corpo humano Nascimento Mais alumbramento Do que aquele... Plantado em mim por Bandeira.

sábado, 3 de novembro de 2012

10 INFALÍVEIS CONSELHOS PARA FUTUROS ESCRITORES DE LITERATURA INFANTIL

'ANTES' SCRIPTUM: Como se não bastasse uma tese para escrever, envolvi-me num Laboratório de Escrita para produção de textos de literatura infantil, com o Prof. Dr. Celso Cisto. Por conta disso, toda semana, somos convidados (ou convocados?) por ele a escrever texto. Assim, vou postar algumas das minhas produções neste curso a partir de hoje.
1. Escreva. Escreva bastante. Assim, como curar doenças qualifica os médicos; projetar casas, os arquitetos; ensinar gentes, os professores, a única ação que caracteriza a existência de um escritor é a prática constante da escrita.
2. Ao escrever, pense em seus leitores e exponha a eles os seus escritos... É o leitor quem dá sentido (ou não) às idéias que você coloca no papel. Sem ele, você não existe.
3. Ouça sem fazer bicos, muxoxos ou esperneios as críticas e sugestões dos seus leitores. Você escreve para crianças, mas não deve ter o mau comportamento de algumas delas. Saiba ouvir com entrega e educação.
4. Filtre as críticas. Ouça-as com atenção e carinho, mas tenha consciência que nem tudo o que dizem sobre seus escritos deve realmente ser levado a sério.
5. Viva o mundo da criança. Goste do universo infantil; divirta-se com coisas típicas da infância; comporte-se como um brincante. Esta é uma ótima maneira de inserir-se, por dentro, na perspectiva infantil de compreender o mundo e também um jeito barato de viver com mais saúde e alegria.
6. Nunca subestime as pontecialidades das crianças. Não é porque elas não aprenderam tudo sobre linguagem, conhecimentos matemáticos e geográficos, por exemplo, que elas não podem compreender questões mais elaboradas. Até porque nós adultos, tais quais as crianças, nunca sabemos de muitas coisas, apesar de nos fazermos de entendedores de desde parição de formiga a enterro de anão.
7. Conheça a fundo a criança. E para isso a leitura de bons artigos científicos, o estudo aprofundado de dissertações e teses, a presença em eventos acadêmicos sobre infância não bastam (apesar de terem sua relevância). Vá até elas e ouça suas demandas, observe suas preferências e modos de agir.
8. Seja leitor de literatura infantil. Os seus colegas escritores te darão algumas “réguas e compassos” para seguir. É o que se produziu no mundo nesta seara literária que lhe dará nortes e caminhos para trilhar ou para ir à contramão.
9. Não escreva para ser útil ou pedagógico. Não caia na tentação de ensinar a criança a ser boa e educada. A dimensão de vida e humanidade que aportam em seu texto são professoras cuidadosas e competentes e se encarregam sozinhas deste ofício.
10. Faça suas regras. Invente seus conselhos. Ignore os que estão acima. Até porque se conselho fosse bom mesmo, ninguém dava. Vendia-se. E caro!

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

ESCURIDÕES EM DIAS SOLARES

“Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio” (Fernando Pessoa, Chuva Oblíqua).

Tem dias que o queixo teima em ficar encostado rente ao peito e leva nosso olhar para perder-se no abaixo. Nada de amplidão de céu azul. Só se tem a pequenez do chão marrom na nossa frente. E não adianta as pessoas dizerem que se é filha de Oxum, que se tem íris ponta de lança; já ter feito trocentos anos de terapia ou estar convencida de que se gosta do ser que se é. Nada nos convence a arrebitar narizes e brilhar olhos. Nada nos acende a alma.

Fazemos mil avaliações do porquê do olhar melancólico; do porquê da cara amarrada. Buscamos rejeições na infância, buscamos tanta coisa e nos deparamos com o olhar desafiador do outro. É ele que nos maltrata, que nos exclui. É ele que nos invade e nos habita. É preciso digerir esse olhar. Compreendê-lo. Interpretar o mistério da energia que ele – o olhar do outro – desprende, atingindo-nos. E não adianta dizer: “nem te ligo, sou mais eu”, pois nessas horas tudo é menos. Tudo é ausência.

Não tem jeito, o corpo fala. Morde-se o lábio, balança-se a perna, franze-se a testa. O bicho carpinteiro se apossa de nós e nos denuncia. Descobre-se uma dor corporal. Logo abaixo do peito. É tão forte. É física, concreta. Vê-la tão palpável nos ameaça e coloca não só o olhar no chão, mas a nossa inteireza... Sair desse lugar é um exercício árduo de achar essa outra mais solar, mais confiante, mais segura que também é de nós. Cadê ela? Onde ela se esconde? Por que o olhar desse outro a eclipsou? Aí, lembramos, acertando contas com o real:“existe alguém em nós e muitos dentre nós esse alguém que brilha mais do que milhões de sóis, e que a escuridão conhece também”...

Sim, me afirmo solar. Apresento-me assim e bato a carteira radiante na mesa. Sou dessas expansivas, que fala com as mãos, que sorri largo, que faz piadas de minhas certezas e das verdades outras. Canto, danço e sapateio no meu diário. Mas, impossível negar: escondo em mim escuridões... As conheço não só porque as vivi, mas, sobretudo porque já me escarafunchei de corpo e alma em seu lamaçal. Já bebi de suas águas, já me acomodei nelas e resisti em sair de suas entranhas. Já gostei da escuridão. Na verdade, não era um gosto; era um hábito.

Um rápido olhar para cima outrora me salvou... Nem estava planejado. Mas era a hora da cabeça rodar... Piruetas outras. Porque dor não tem hora marcada. Vai embora tão sorrateira como chegou. Ver luzes multicores nos dá asas. É tão fugaz o renascer. É tão célere fazer de cinzas brasas. No tempo do escuro, escolhi-o porque a literatura me convenceu que para cruzar caminhos de contramão era preciso zangar-se com a vida; aborrecer-se com as ofertas mundanas, irritar-se bravamente com os sentimentos mais humanos. Era preciso perguntar com ferocidade. Mas a idade – tão bela, tão certa, tão decisiva – mostrou-me espelhos feito de verdades. E fez-me enxergar que ser melancólico num mundo tão cruel é fácil, banal, ordinário. É o óbvio! Heróico mesmo, gauche de verdade é aquele que consegue gostar de sol; refestelar-se em águas abundantes; abraçar o humano, comendo-o. Este que se alegra é quem ousadamente decide ir pelo caminho inusitado. É aquele risonho que segue o percurso de quem nunca foi e de quem viu com olhos de primeira vez. Até porque quem tem heranças que atravessaram o Atlântico Sul sabe que alegria nunca é alienação; é antes de tudo uma resistência possível para poucos. É uma forma de inquirir: “não me quer? Não me olha? Não me toca?” E depois, espocar risos abundantes e fundos. Incontroláveis. Sinceros. Ora gargalhadas. Ora só risos de Monalisa. Talvez seja uma defesa. Mas, certamente, a mais bela, corajosa e saudável arma.

No agora, o queixo se desprende levemente do peito. Ainda não se ouvem sons festivos, nem se regala em mesa larga de fundo de quintal com abundante ceia. Ainda não, mas se sabe que o tempo que nos afasta de tudo isso mora no bem ali e para quem é do dia, sóis chegarão... Plenos. Abundantes.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

SER MADRASTA É PARA OS FORTES!

Há mais ou menos 12 anos atrás, a vida me deu um presente. Na verdade, no primeiro momento, não achei que fosse um presente. Achei que era um Cavalo de Tróia. Era apenas uma criança, filho de uma outra mulher, com o qual eu teria que conviver. Mas na minha imaginação fértil, pensava que talvez abarcasse dentro de si o exército inimigo. Primeiro, vi uma foto, o achei engraçadinho. Depois, o encontrei no Shopping Center Lapa. Estava emburrado. O motivo informado: o pai não dera um brinquedo que queria. Mentira. Com certeza, não era aquilo. Era a desconfiança e certamente as questões que invadiam sua mente infantil: “quem é essa mulher? O que faz aqui? Cadê minha mãeeeeeeeee?”.

Depois, nos encontramos num dia das crianças. E tudo deu errado. Cai no zoológico. Certamente este o acontecimento mais feliz do dia para ele, devido as gargalhadas que emitiu. Depois, fomos naqueles pula-pulas enormes do antigo Aeroclube e sai de lá com uma torção. “Minha carreira de madrasta estava bem promissora daquele jeito”... Eu pensava. Naquele dia, tive vontade de sair correndo. Tive a certeza de que ele não gostou de mim. Fiquei frustrada, mas banquei a amiga legal do pai.

Depois, disso, lembro-me de uma formatura em que ele se apegou a minha irmã e eu chegando à família, namorando com um cara separado e já com um filho, só queria sumir. Era demais tanta avaliação, tanto questionamento, a família toda querendo saber quem eu era, o que eu fazia. Depois, o amor entre mim e o pai dele se consolidou, mas a relação inicial entre mim e ele foi muito difícil. Para mim e para ele. Nem eu nem ele sabíamos quais os nossos papéis na vida um do outro. Eu sabia que não era a mãe e ele sabia que não era o filho. O pior é que em muitos momentos ele conseguia demonstrar um afeto por mim muito maior do que eu conseguia demonstrar por ele. Eu me sentia retraída, tinha medo. Ele, como sempre, um sedutor, já sabia desde muito cedo que precisava me tolerar, porque se o maior amor da vida dele: O PAI comigo provavelmente se casaria, então não adiantaria me anular.

O pior é que tive que assumir o novo título de madrasta e ninguém está preparado para assumir um vocativo tão semelhante ao de bruxa. Certa vez, me perguntaram na frente dele se eu era má-drasta ou boa-drasta? Nem eu mesmo sabia a resposta. Acho que no início, fui uma omissa-drasta. Muito por medo e ansiedade. Não sabia que tipo de sentimento poderia nutrir por ele. Tenho certeza (ou melhor, consciência tranqüila) que me policiei ao máximo para jamais desrespeitá-lo, para jamais ser falsa ou hipócrita e, sobretudo, para jamais afastá-lo do pai. Tentei, ao máximo, ser sincera com ele. E ai, veio uma decisão difícil que tive que tomar sozinha e dizer ao pai, a ele e a todos. Quando casássemos, ele não nos acompanharia no primeiro momento. Foi uma decisão acertada, mas muito complicada e eu que já sou uma questionadora de carteirinha me perguntava: “essa criança vai me odiar por isso???”. Mas me fez bem dizer a ele: sou eu que não quero agora que você venha. Ora, eu estava começando um relacionamento; indo pela primeira vez morar e conviver com alguém tão diferente de mim... E num pequeno apartamento. Eu merecia provar, comer pelas beiradas, antes de tomar uma decisão mais definitiva.

Mas a vida nos deu de presente uma casa maior depois de dois anos de casada e todos os meus argumentos caíram por terra: o espaço pequeno ficou grande, a fase da experiência do casamento havia passado. Sem pestanejar, o convidei para morar conosco. Isso significava se afastar do bairro em que ele nasceu, da avó e segunda mãe, da família, dos amigos, da namorada e da escola onde estudou a vida toda. E ele foi... Pois é um cabra corajoso. Não é frio, como gosta de afirmar. Apenas se esforça ao máximo para ser mai racional do que sentimental. E essa foi uma das decisões mais acertados que tomamos. Neste momento, ocorreu outra coisa. Do nada, ele me convidou para ser madrinha de crisma. Fiquei feliz, mas novamente insegura. Quais as intenções por trás do gesto? Nunca soube, nunca saberei. A primeira e maior aprendizagem que este jovem me deu é: importa menos o amor que o outro sente por nós e importa mais o amor imenso, inevitável que vai crescendo dentro de nós pelo outro. Minha vida ficou melhor quando deixei de me questionar: “será que esse menino gosta de mim?”. E comecei a compreender: “que importa se gosta ou não gosta? Eu gosto, amo, quero bem, quero o melhor...”

Essa criança que já havia se convertido em adolescente desde sempre me mostrara ser um jovem gente boa, sabe? Aquele que conversa com todo mundo, não tem medo de mostrar sua superfície (porque tem de mostrar seu coração), sabe ser solicito e educado. Faz amigos com uma enorme facilidade, apesar de ter a nítida consciência da diferença entre colegas e amigos. É alguém com quem se pode contar. Alguém que sabe ouvir e aconselhar.Principalmente é alguém que sabe enfrentar algumas durezas que eu, mais velha do que ele, jamais saberia fazê-lo. Pois bem, há quatro anos, quando foi morar conosco, foi outro momento difícil, se adaptar a uma casa diferente, com pessoas diferentes, num bairro e cidades diferentes, numa escola diferente. E esse estranhamento abarcava tudo: alimentação, hábitos, horários. E o pior longe de tudo e de todos. Como tem enorme dificuldade em expressar o que sente, ficou doente, que já descobri, é a forma de dizer que está triste, precisa de ajuda, de apoio. Não foi fácil. Mas como diz a música: “o tempo que pôs a dor nessa conta é quem desconta, passa e te aponta o ponto de sorrir”. E o tempo passou, os perrengues também.

Depois, juntos, eu, ele e o pai conseguimos fazer da nossa casa o nosso lar e nos tornamos uma família. Aprendi com esse jovem que a família não é algo dado, mas é algo construído com amor, briga, carinho, afeto, cumplicidade. Fico feliz, quando ele fala “na nossa casa, na nossa família”. Até porque já ouvi ele dizer que se sentia meio sem lar. Mas isso agora é coisa do passado. Odeio quando alguém o trata de coitado. Só porque ele é filho de pais separados ( e tem má-drasta). Por que isso é tudo que esse jovem não é. Quem no mundo tem uma mãe, uma madrasta-madrinha, uma tia-madrinha, uma avó-mãe, mais outras tias, um pai admirador, montes de primos, montes de amigos? Quem no mundo consegue administrar tantas famílias, tantas dores, tantos grupos de amigos de uma forma tão segura?

O mundo mudou. O ideal de família feliz também. Graças a Deus. Desconfio do ideal de família burguesa. Amo as famílias como as nossas que abarcam em si o slogan da diversidade. Somos felizes. Mas também sabemos que essa felicidade nada tem a ver com o “felizes para sempre” do conto de fadas. Nossa felicidade se constrói todos os dias. E tem como cimento duras lágrimas, brigas gritadas, tapinhas carinhosos e longas conversas no facebook. É fato fui conquistada pela criança que me assustava e sobre o qual eu acreditava que se escondia o exército inimigo. Esse enteado se converteu para mim num príncipe encantado. Ás vezes, o chamo de gato de botas, ás vezes de PV. O mais importante é que ele me mostrou que não devemos nos ressentir porque não fizemos algo no passado. Não devemos nos amarrar numa realidade estática, porque a vida é dinâmica, móvel. É sempre tempo de construir uma relação de amor; é sempre tempo de trilhar novos caminhos e tecer novos abraços. Não é porque não tive as dores do parto que não posso amá-lo como a um filho. Aprendi com Paulo Victor que é sempre tempo de parir um filho, mesmo quando ele já tem sete anos de idade e não sai das nossas entranhas. Pois, a parição de um filho se prolonga por toda vida.

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

SOLAR EM TERRA CENTAURA

Sair de nossa casa. Do umbigo de nosso mundo. Tão caro, tão certo. Tão mediocremente limitante. Mediocremente limitante? Eu, dizendo isso? Não essa que veio. Já uma outra. Migrar sempre nos leva a outra possibilidade de viagem. Obriga-nos a dizer o que se diz sempre, porque não há outro jeito. Mais do que dizer. Obriga-nos a sentir e tirar a prova dos nove do já dito. Saímos para voltar e, mais que isso, encontrar aquele outro eu que jamais se expõe, jamais irrompe dentro do lugar costumeiro. Sair para, olhando o diverso, vermos a nós mesmos.

De onde eu venho, o diferente tem olho azul e pele branca. O eu crespo, volumoso e mestiçamente preto é ordinário, só mais um. Aqui agora eu sou a diferente, eu sou o que eles não são. Tão engraçado, tão assustador. Salta aos olhos, o olhar desse outro aqui igual (e lá diferente). Questionador, nunca indiferente, violento. O decote costumeiro (vulgar só neste sentido), as cores abundantes, o cabelo inchado de caracóis parece um estigma do meu lugar. Pior, uma insígnia. Contrapõe-se ao cinza-preto-branco das combinações de calça jeans. E por mais que queira mostrá-lo espontaneamente, surge como bandeira hasteada. A forma de andar, a bunda que insiste balançar malemolente, a boca que canta um refrão de um longe meu: “que estranho, hein, ôba!”. Tudo é denúncia. Tudo é tatuagem.

E olho para fora, encaro mesmo, e nem sei, ao certo, o que vejo. Vejo outras vozes de sotaques nasais, cheios de ãs demorados; vejo o que ouço; vejo o que pressinto. Não vejo o que toco, porque simplesmente não deixam. E é um segurar controlador de minhas próprias mãos... O Lá de onde venho é no pegar. O ‘Oi’ se bate no ombro, se puxa a mão, esfregando-a. O abraço demora longos segundos de apertameno e não há despedidas sem beijos estalados ou minimamente sinalizados a distância. Aqui mal os olhos se encontram. Eles teimam em baixar. E sorrisos há bem poucos, nunca largos, sempre esboços. Paira uma frieza orgulhosa. Mais suspeito: mais que rispidez; é medo.

Então, povoam perguntas bem diante do meu nariz. Será que no meu lá, distante do meu aqui agora, já estamos tão acostumados ao estrangeiro que sequer o olhamos? Só o destacamos e colocamos tapete vermelho quando para vender bugigangas nativas no Centro Histórico? Ou o acolhemos expansivamente a ponto de deixá-lo entrar na nossa casa, partilhar nossa conversa e roubar nossos tesouros? Será que aqui, ao olhar com estranheza o estrangeiro, querem nos ver, nos olhar, beber de nós? Nos comer (antropofagicamente ou não)? Querem ter-nos neles mesmos? Ou não. Ao nos olhar, querem nos abortar? Aniquilar o nós em suas européias Histórias? Colocar o muro sinalizador cujo ingresso só é possível com crachá e comprovante de dupla nacionalidade?

Não há respostas. Ainda. Ainda? Certeza única: nada é definitivo. Vejo-me num distante outro. E gosto desta que vejo. Rio dela... E com ela. Aprendo-a. Prendo-me a minha torre, sem autocrítica nem bairrismo, mas me largo e deixo a corda correr solta. Tão ousado saltar ao largo. Nem eu sabia que podia. Nem eu sabia dessa outra. Mas ei-la aqui numa terra de centauros. Solar como sempre. Mas sozinha (apesar de nunca estar). Tomando rédeas, encontrando lascas rochosas, cortantes e... Pasmem, plantando raios de sol.