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domingo, 27 de janeiro de 2013

O BEM AMADO



Sempre que eu realizo uma travessura, invento festa, coloco um bando de gente em minha casa, eu me lembro dele. Em suma, toda vez que eu faço alguma arte, me defendo, afirmando que estou rendendo homenagem a ele. É porque ele era desses que não aguentava ver a casa vazia num sábado de manhã. Então botava o copo de uísque na mesa, pegava o tabuleiro de gamão e convidava o primeiro que passava a entrar para beber.
Podia ser um conhecido ou ilustre desconhecido. Ele não queria saber. O melhor é que ele evocava o convidado - muitas vezes, alguém que transitava em frente a nossa rua - de uma maneira bem peculiar. “Viado, venha aqui tomar uma”. E o dito cujo entrava em casa, tomava todas e participava da festa. Até porque ele em si era uma festa e a casa com ele estava sempre cheia. Cheia de gente, de alegria, de comemorações, de vida!
Ele sempre foi a fonte de inspiração para as coisas mais felizes que realizo. E o fato é que só convivi com eles os primeiros nove anos de minha vida. Sempre tive (e aos trinta cinco ainda tenho) a sensação de que ninguém no mundo conseguirá me amar como ele me amou. Era o meu grande amigo, o meu grande professor.
Ele era o meu avô UMBELINO SILVA SACRAMENTO. Homem de nome esdrúxulo, mas que sabia sempre fazer de um limão uma limonada, e transformou-se em Belo. Um baiano mulato de Maragogipe, órfão de mãe mais que cedo e que fazia muitas artes. Desenhava, escrevia e era muito mulherengo. Mas defendia a moral e os bons costumes. Apesar de eu desconfiar que bom costume para ele fosse tomar uma, paquerar outras, dançar e se divertir. Era um arteiro que não se importava em ‘perder’ tempo para aprontar com os amigos, tinha idéias mirabolantes para festa e foi o maior responsável por me dar a régua e o compasso que norteiam os meus caminhos.
Tenho certo temor em escrever sobre ele, porque meu avô era nada pedagógico, muito menos politicamente correto. Era apenas uma alma inventiva, com um gosto pela imaginação, pela diversão e, especialmente, pela vida. Era o tipo de pessoa que considerava que só valia a pena viver se pudéssemos beber até a última gota, se pudéssemos nos jogar na vida com intensidade e galhardia. Nunca conheci uma pessoa que tivesse a disponibilidade para viver como ele tinha.
Os mais velhos contam que no nascimento de todos os netos, ele fazia uma festa danada no hospital, servia bebida a enfermeiros e médicos. Uma agonia. Levava flores, a ponto de ouvir um gracejo e ser chamado de La Violetera. Nada imaginável para os hospitais atuais que de tão preocupados com infecções não permitem flores e muito menos álcool. Quando eu nasci, ele fez o mesmo furdunço e gostava de contar a todos que quando a enfermeira me carregou nos braços e me levantou para todos me verem pelo vidro do berçário, ele, sem entender direito, pediu: “Quero ver a cara e não a bunda”.
Depois, ficamos amigos inseparáveis e tínhamos até um bordão. Ao me ver, ele dizia sempre: “Lulu, cara de...???”. E eu respondia: “Cu”. Uma vez, um conhecido dele, ouviu nosso diálogo e me repreendeu, dizendo que isso não era coisa para uma moça bem educada e de família dizer, falou que era feio e eu não deveria repetir tal impropério. Claro que não entendi muito bem tudo aquilo e continuei a me divertir com a nossa maluquice. Tempos depois, fui colega de escola da filha do tal conhecido de meu avô. Uma das piores alunas, extremamente problemática e vista por muitos como uma menina não muito de família. Achei aquilo uma tremenda ironia, já que eu que fui criada num lar onde muitos falavam palavras de baixo calão, onde a festa e a bebida eram a ordem, tinha melhores ‘modos’ do que a menina bem educada por aquele senhor.
Lembro-me ter sido presenteada com um diário rosa, não sei ao certo de quem. Ali escrevi, pela primeira vez, poemas e histórias. E ele foi meu primeiro leitor e, o mais importante, era um incentivador de toda bobagem que em colocava no papel. Só depois, descobri. Ele também gostava de escrever e escrevia. Ele me achava intelectual. Acho que fiquei com essa pecha na família graças a ele. Por outro lado, me via como uma pessoa engraçada e espirituosa. Como minha mãe assumia o papel da boa e mais bela moça da família e minha tia Lúcia tinha a imagem de danada e arteira, ele dizia para mim que eu devia ser filha da minha loura tia.
Ah, ele era um mecenas. É que toda festa (fosse de aniversário, casamento ou, as mais frequentes, a sem motivo datado) tinha que ter uma apresentação teatral ou de dança. Nós criávamos figurino, roteiro, escolhíamos as músicas e ele comprava tudo o que precisávamos para realizar o espetáculo. Lembro de dançarmos “Nós, gatos”, dos Saltimbancos de Chico Buarque e a nada infantil “Ai, se eles me pegam agora”, do mesmo autor, na Ópera do Malandro. Ele era o espectador mais entusiasmado sempre. Era o primeiro a bater palmas e o que jamais via erros ou deslizes.
Ele também fazia o papel de animador infantil. Enchia o carro de crianças para sair, mas a condição era cantar músicas nada educativas. Diria mais: músicas que revoltariam as professoras mais bem intencionadas. Mas nós, por questões óbvias, adorávamos. Eram canções cuja letra era considerada imoral, mas que faziam parte da tradição jocosa e carnavalesca do recôncavo baiano, sobretudo, da cidade onde ele nascera. Então, entoávamos em tom de ópera como um coral de uma família quase boa: “Chamaram meu boi de cu pelado. Cu de ouro é o nome que eu lhe dou. Chamaram meu boi de cu pelado, ouviu. Cu pelado é a mãe de quem chamou. Quando meu boi entrou no picadeiro, a turma lá de trás gritou: cu pelado. Não chame o meu boi de cu pelado ouviu, cu pelado é a mãe de quem chamou”. Vale destacar que terminávamos assim, porque o ‘cu’ era permitido, mas o ‘puta que pariu’ não era. Havia outras canções. Nós cantávamos cada uma delas. Sabíamos a letra de cor e nos amostrávamos, entoando-as com afinco e picardia.
O local mais visitado nestas saídas era a Churrascaria. Era de praxe encher o fundo do velho Opala de crianças para irmos a única churrascaria da cidade, chamada Minuano e que ficava num posto de gasolina. Lá, ele inventava. Dizia que não íamos comer o prato que todos comiam. Iríamos fazer diferente. Pedia ao garçom iguarias como coxinhas de avestruz e sobrecu de onça. E lá vinha o garçom com a bandeja cheia dos petiscos inusitados. Um dia nos apresentou uma moqueca de surica. Era o modo dele, chamar os camarões mirrados, pequeninhos. É óbvio que ele fazia troça com a palavra e perguntava a todos se gostavam da surica, se já tinham lavado a surica. Coisas que deixariam o Príncipe do Gueto, de rosto corado.
Algumas outras vezes, o passeio era na lanchonete que ficava no centro da cidade. Uma vez, e apesar de meu avô ter tido meio mundo de amantes, encontramos o marido de nossa babá rodeado de mulheres que hoje alcunharíamos como ‘periguetes’. Meu avô não contou conversa foi à mesa do meliante, fez um longo discurso com frases do tipo: “enquanto sua mulher está trabalhando, você está aqui bebendo com outras” e deixou o sujeito escabreado de um jeito, que o pobre saiu do bar, deixou as moças de família por lá mesmo e foi bater lá em casa para fazer juras de amor à esposa. Eu, na época, achei meu avô um herói. Hoje, sabendo de histórias outras, sorrio e penso: “macaco, não olha pro rabo”. Esse era ele. E eu o admiro porque ele não era nem de longe o cara correto. Era do bem, mas fazia um monte de trapalhadas, e ainda assim era amado, muito amado por onde quer que passasse.
Numa dessas visitas pela cidade, ele fez amizade com um bêbado. E conversa vai, conversa vem, o bêbado identificou um amigo em comum, um vizinho nosso. Quando estávamos indo embora, o homem pediu que falasse ao conhecido de ambos do encontro inusitado. Foi só aí que meu avô lembrou que apesar de terem bebido e conversado, um não sabia o nome do outro. Aí, meu avô perguntou o nome do bêbado e ele respondeu: “pudim de cachaça”. Rimos muito, porque para ele não tinha aquilo de nos separar e nos deixar numa redoma. A gente participava de tudo e se unia as pessoas que circulavam no universo dele. Embora, ele gostasse da água que passarinho não bebe, nunca vi meu avô bêbado. Eram litros de um uísque que só recentemente descobri não ser uma das marcas mais cobiçadas no mercado. Mas era o que ele bebia: Old Eight.
O fim de semana era sempre uma farra. Chegávamos sempre na tarde de sexta-feira à casa de Lauro de Freitas e retornávamos na noite de domingo. Mas esse momento de despedida tinha sua cor especial. Algumas vezes, estavam os adultos na varanda do fundo a cantar as músicas populares do passado. Ainda posso ouvir o refrão, cantado por aquelas vozes familiares: “E a fonte a cantar, chuá, chuá. E as águas a correr, chuá, chuá. Parece que alguém que, cheio de mágoas...”. Outra lembrança dessas tardes de despedida é opaca, apesar de latente. Meu pai ficou amigo de Valmir Lima que já era sambista, mas não era conhecido. E a esposa do cantor cantava e dançava uma música da cobra (não tem jeito de eu lembrar algum verso) que meu avô adorava, ria muito e fazia parte da fuzarca.
Nós tínhamos um código. Sempre que eu queria alguma coisa, eu afirmava que pagaria com beijos. Milhares deles. Já ele sempre pedia a algum neto ou neto que na hora da sua sagrada sesta, fossem catar piolhos azuis na cabeça dele. Quando o sono chegava de verdade, perguntava: “você conhece Henrique? Então se pique”. E dormia. Era tão sagrado esse momento para ele que foi numa soneca dessas que ele nos deixou para sempre. Sempre dormiu depois do almoço, por no máximo trinta minutos. Mas naqueles vinte e dois de maio de mil novecentos e oitenta e seis, o sono foi mais prolongado e ele nunca acordou.
Hoje, apesar de cansada, por ter revivido na última semana momentos que vivi com ele – enchi a minha casa com treze adolescentes para farrearmos – senti-me impelida a escrever sobre ele. Queria homenageá-lo. Quero justificar que minhas maluquices tem raízes e tradições. Queria muito afirmar que muito do que faço vale como uma oferenda. Mas uma oferenda que não pede, não reivindica. Só agradece.
 Gostaria também que esse fosse um começo de uma idéia de mais escritas. Intenciono escrever as memórias dos outros sobre ele. E faço deste texto uma ponte-convite. Primeiro informo da minha intenção de colher da boca daqueles que tiveram o privilégio de estar com ele a histórias que ficaram em suas memórias. Depois, quem sabe, se a Musa me ajudar, transformar todas essas histórias num livro para circular entre nós.
No fundo, o que importa é que com registro no papel ou sem ele, a mera existência deste senhor na vida de muita gente, fez desta uma existência diferente. Eu diria, pensando na minha própria, que meu avô fez da minha uma existência melhor, mais esperançosa, mais feliz! Fez de mim uma maluca orgulhosa das minhas sandices!

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