Numa
triste madrugada de 19 de setembro de 2013.
Quando
a tristeza é um pequeno ponto de tinta vermelha que aporta num enorme balde de
água límpida e, aos poucos, se espalha, contamina e se instala na imensidão translúcida,
plantando um marrom sujo de terra, a gente não pode mais ir ao mundo para
passear, sorrir ou dançar. Resta-nos encontrar um canto para nos encolher a
espera da transposição das águas ou da mudança das estações. A chuva abundante
apaga toda possibilidade de sol.
É
que ela – a tristeza – vem sempre acompanhada. Desta vez, trouxe a morte para
me fazer visitas e lembrar que cedo ou tarde, para quem já viveu muitas
travessias marítimas ou para quem ainda tinha o seio carregado de leite, o fim
da vida é certo, nos surpreende, nos tira do jogo. Quando? Não sabemos. O
porquê? Muito menos. Acontece. Todos os dias e horas e minutos. Nós é que
fingimos não ver...
E,
a maior verdade, é que a certeza da morte a mim assusta. Como dizia Millôr
Fernandes, assusta não só pela morte em si, mas, sobretudo pelo o que ela nos
tira. E ela não só debita em nossa conta o desaparecimento de quem morre. Ela
deflagra para nós a certeza da sempre proximidade de extinção da nossa própria
vida. A morte nos tira a nossa ilusória paz. Lembra-nos da nossa própria
perecividade. Puxa nossa orelha e grita: a vida é boa, mas finita. Acorda-nos
para a única e maior certeza: nós e os nossos, um dia, iremos... Seguiremos
sós, como sempre estivemos!
Olho
o balde de água marrom novamente e nele encontro refletida uma fresta de janela.
Onde neste instante só chovia, sem em mim nada lavar, agora aparece um sol
timidamente radiante. É o mesmo sol que eu insistia em desenhar e aquela chuva
renitente fazia desaparecer. Ele agora queima minhas orelhas. Não o vejo com
nitidez, apenas o sinto. Temo novas chuvas. Em mim, há marcas que denunciam: o
frio não foi nem nunca irá embora de todo. Ainda que enfraquecido, retornará.
Porque
somos todos Persérfones que, escolhemos invernar a vida, por alguns meses, cortando
cordões umbilicais, afastando-nos do seio materno, legando aos homens o frio, a
neve, o vento e a chuva. Para só no depois, retornarmos, irradiando sóis,
flores e frutas mundo a fora. Somo aqueles que - por força da sina - temos que
conciliar nossa existência entre o que está embaixo da terra e o que está sob
ela. Não é fácil habitar dois mundos tão díspares: o do fim e o do eterno
começo. Nem parece possível, mas eis a sina de todo o humano!
Por
hora, há prenúncios de primaveras tardias. O inverno que extingue a vida também
quer descansar e dar tréguas. É hora de Persérfone, ainda que provisoriamente,
deixar Hades e retornar ao encontro de sua mãe, Deméter. Encho-me de novas
delicadezas e esperanças. Ao imperativo da morte, só nos resta celebrar com a
vida que ainda nos persegue. Por enquanto – só por enquanto – está em nós! Para
aos que já terminaram suas trajetórias pelas bandas de cá, presenteemos com
saudades, desapegadas de tristeza. Para nós que por cá ainda estamos, bebamos
das águas que sempre retornam ao seu curso abundante, conscientes de que a
fonte, um dia, seca!
*In
Memoriam para Oswaldo Moreno (já depois dos 80 anos) e Alessandra Pereira
(ainda na casa dos 30 anos).
Belo texto. Mais uma vez de indico "Amor", com toda a sua dureza
ResponderExcluirObrigada, minha jornalista preferida. É de autoria daquele autor q vc me indicou?
ExcluirA nudez da palavra se ergue para singela homenagem sem apagar as lágrimas nas entrelinhas.
ResponderExcluirAbraço, Lu.
Muito bonito, Lu. Faltam palavras pra dizer da emoção. Bj
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