Se
eu nunca tive dúvidas que a arte nos aponta um caminho, ultimamente tenho
começado a aceitar que talvez o corpo também esteja envolvido nessa experiência
de nos “salvar” de nós mesmos e de nossas vidas miudinhas. Ainda mais nestes
tempos em que vivemos “Um show de Trumman”,
trancafiados em nossos carros que, ainda que populares, possuem vidro fumê e
trava elétrica. Ou presos nos condomínios onde moramos. Ou enclausurados nos
shoppings centers onde nos divertimos e resolvemos toda sorte de situações.
Experiênciar
o corpo, através da atividade física, pode ser um caminho para contrariar esse
mundo superficial do “big brother” em
que vivemos. As corridas de rua, por exemplo, nos empurram para uma atividade individual,
mas que se efetiva na coletividade. E melhor, ao ar livre, fora dos espaços de
“proteção”, que na verdade, se configuram em lugares de “vigilância social”.
Desde
menina sempre fui mais afeita às questões intelectuais e artísticas do que a
qualquer ação que me aproximasse de um esporte ou algo que mexesse com o
físico. Nos últimos anos, por um desejo a uma forma física mais magra (por
questões estéticas e também de saúde) envolvi-me de cabeça na atividade física
regular. Isso teve consequências como emagrecer e me tornar uma corredora
amadora, algo impensado até meus 37 anos de idade.
Na
verdade, o professor responsável por minha fidelização ao treino funcional
apresentou a mim e a outras colegas as corridas de rua para nos motivar a
treinar... Nenhuma de nós imaginava onde essa “brincadeira” poderia nos levar. No
início ele, nos acompanhava às corridas, lado a lado, dando-nos um apoio, que
ia desde a orientação do quanto correr a oferta de água e palavras de ânimo.
Então,
para além do que se diz de que correr é bom para a saúde, hoje vejo essa
história de suar, treinar, malhar como algo que tem um potencial humano,
psicológico e até filosófico. Talvez eu creia nisso, porque como diz o querido
Sérgio Vaz, quando algo nos transforma, a gente fica que nem cristão novo
querendo catequizar os outros para a nossa “nova fé”.
Nesse
embalo, uma das coisas que me chamou atenção na minha primeira corrida de rua era
a imensa diversidade presente ali na pista. Era possível perceber que havia
gente que após 15 minutos de prova já cruzava a linha de chegada, havia gente
cuja compleição física era de atletas de alto rendimento, mas havia gente de
toda sorte de idade, ritmo e forma física. Gente como eu!
Fato
que me marcou profundamente foi uma jovem corredora desconhecida. Ao ver o
apoio e força que meu professor me dava, ela, possivelmente, tendo as mesmas
dificuldades de respiração, de desconfiança no próprio potencial se achegou a
nós e perguntou se poderia nos acompanhar. Ele, bastante agregador como é de
sua natureza, a aproximou de mim e mesmo sem conhecê-la deu a ela o mesmo apoio
que me dava, sugerindo quando devia avançar e quando devia diminuir o ritmo,
oferecendo água, conversando (talvez para nos distrair) e nos sinalizando o
silêncio nos momentos em que mais precisaríamos de fôlego.
Cruzamos
os três a minha primeira linha de chegada. Eu, sentindo minhas forças irem
embora, e confundindo êxtase com cansaço. Naquele dia, eu fui testemunha de um
sentimento agregador. Entendi que tal solidariedade havia sido provocada pelo
meu professor, mas para minha enorme felicidade, fui compreendendo com o tempo
que estava para além dele.
Ao
final daquela corrida, a menina desapareceu de nossos horizontes. No ano
seguinte, ela achou nosso grupo numa rede social e fez questão de contar a
história, dizendo o quanto nosso professor havia sido gentil e solicito e o
quanto aquilo havia feito com que ela continuasse a correr. Ela, ao final do
seu relato na rede, ainda indicava algo que eu só iria aprender depois: “o
mundo de corridas tem muita gente assim”.
É
que meu professor continuou sendo meu professor, mas cada vez que evoluíamos na
corrida, ele se desgarrava da gente, como deve ser. Não precisávamos mais
daquele tipo de auxílio. Então, nosso grupo continuou com a corrida, com o
irrestrito apoio dele, mas sem sua presença necessariamente. E quase um ano
depois, era a minha vez de ser a “desconhecida”. Eu fazia uma prova noturna,
estava sozinha e tentava fazer o que todo/a corredor/a quer: baixar seu tempo. Entretanto,
estava gripada com uma tosse seca, sem respirar direito. Já perto dos quatro
quilômetros eu sentia um cansaço fenomenal e minha respiração estava ofegante
demais. Nesse momento, um corredor, nem lembro o rosto direito, vi que um homem
da minha idade, forte, se aproximou de mim e disse: “vá com calma, menina”. E
ficou do meu lado. Não bastando isso, me orientou como segurar melhor a
respiração, disse que a corrida noturna enganava, que eu poderia desmaiar se
não a controlasse e seguiu ao meu lado até o momento que deixei de ficar
ofegante e minha respiração se regularizou.
Eu
nem pude agradecer a ele, porque assim que a situação se normalizou, ele correu
como um raio e seguiu o caminho dele. Ele, ainda que pudesse ter um tempo
melhor, se não me ajudasse, optou por me auxiliar, perder tempo e seguir. Ele
olhou para fora de si e enxergou a mim e a minha dificuldade. Assim, como em
outro momento meu professor fez com uma desconhecida. Isso é marcante e
formativo.
Por
isso, penso que a corrida de rua (ainda que seja uma modalidade que tenda a um
elitismo, numa sociedade capitalista como a nossa) possa nos direcionar para
uma vida mais saudável, menos “fake”, a céu aberto, sem proteções nem
coerções, sem vigilância, fantasiada da ideia de segurança.
Falo
da surpresa do auxílio de um desconhecido, mas é óbvio que com o tempo todo o
grupo, os mais chegados, os nem tanto assim, o professor, todos auxiliam uns
aos outros, seja com dicas de exercícios, alimentação, desafios, seja com uma
palavra amiga, um afago, um olhar que crê em nosso potencial. Por isso, por
mais que meu professor insista, eu não acredito que a salvação é individual.
Apesar de compreender o argumento bíblico (para quem acredita em reino do céu),
é fato que o caminho e a linha de chegada a gente trilha é com a gente mesmo, “sozinho
da silva”, todavia o percurso anterior é feito coletivamente e isso faz toda
diferença. Pode até mudar a maneira com que lidamos com a vida nessa
contemporaneidade liquida e louca.
Prima, adorei o texto. Sou um amante das corridas de rua, pois sei que os benefícios vão muito além do que um bom condicionamento físico. Mas, ver você conciliar corrida,arte e saúde foi o máximo.
ResponderExcluirParabéns!
Eu ainda chego lá!
ResponderExcluirPor enquanto me contento com as minhas caminhadas matinais, que não deixa de ser coletiva e pedagógica, também.
Muito bom! Admiro sua força de vontade! Preciso começar a fazer alguma atividade física, só n sei como e nem por onde kkkk
ResponderExcluirBjo Lu
Que máximo!
ResponderExcluir