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terça-feira, 1 de agosto de 2017

CORRER PODE SER PEDAGÓGICO

Se eu nunca tive dúvidas que a arte nos aponta um caminho, ultimamente tenho começado a aceitar que talvez o corpo também esteja envolvido nessa experiência de nos “salvar” de nós mesmos e de nossas vidas miudinhas. Ainda mais nestes tempos em que vivemos “Um show de Trumman”, trancafiados em nossos carros que, ainda que populares, possuem vidro fumê e trava elétrica. Ou presos nos condomínios onde moramos. Ou enclausurados nos shoppings centers onde nos divertimos e resolvemos toda sorte de situações.
Experiênciar o corpo, através da atividade física, pode ser um caminho para contrariar esse mundo superficial do “big brother” em que vivemos. As corridas de rua, por exemplo, nos empurram para uma atividade individual, mas que se efetiva na coletividade. E melhor, ao ar livre, fora dos espaços de “proteção”, que na verdade, se configuram em lugares de “vigilância social”.
Desde menina sempre fui mais afeita às questões intelectuais e artísticas do que a qualquer ação que me aproximasse de um esporte ou algo que mexesse com o físico. Nos últimos anos, por um desejo a uma forma física mais magra (por questões estéticas e também de saúde) envolvi-me de cabeça na atividade física regular. Isso teve consequências como emagrecer e me tornar uma corredora amadora, algo impensado até meus 37 anos de idade.
Na verdade, o professor responsável por minha fidelização ao treino funcional apresentou a mim e a outras colegas as corridas de rua para nos motivar a treinar... Nenhuma de nós imaginava onde essa “brincadeira” poderia nos levar. No início ele, nos acompanhava às corridas, lado a lado, dando-nos um apoio, que ia desde a orientação do quanto correr a oferta de água e palavras de ânimo.
Então, para além do que se diz de que correr é bom para a saúde, hoje vejo essa história de suar, treinar, malhar como algo que tem um potencial humano, psicológico e até filosófico. Talvez eu creia nisso, porque como diz o querido Sérgio Vaz, quando algo nos transforma, a gente fica que nem cristão novo querendo catequizar os outros para a nossa “nova fé”.
Nesse embalo, uma das coisas que me chamou atenção na minha primeira corrida de rua era a imensa diversidade presente ali na pista. Era possível perceber que havia gente que após 15 minutos de prova já cruzava a linha de chegada, havia gente cuja compleição física era de atletas de alto rendimento, mas havia gente de toda sorte de idade, ritmo e forma física. Gente como eu!
Fato que me marcou profundamente foi uma jovem corredora desconhecida. Ao ver o apoio e força que meu professor me dava, ela, possivelmente, tendo as mesmas dificuldades de respiração, de desconfiança no próprio potencial se achegou a nós e perguntou se poderia nos acompanhar. Ele, bastante agregador como é de sua natureza, a aproximou de mim e mesmo sem conhecê-la deu a ela o mesmo apoio que me dava, sugerindo quando devia avançar e quando devia diminuir o ritmo, oferecendo água, conversando (talvez para nos distrair) e nos sinalizando o silêncio nos momentos em que mais precisaríamos de fôlego.
Cruzamos os três a minha primeira linha de chegada. Eu, sentindo minhas forças irem embora, e confundindo êxtase com cansaço. Naquele dia, eu fui testemunha de um sentimento agregador. Entendi que tal solidariedade havia sido provocada pelo meu professor, mas para minha enorme felicidade, fui compreendendo com o tempo que estava para além dele.
Ao final daquela corrida, a menina desapareceu de nossos horizontes. No ano seguinte, ela achou nosso grupo numa rede social e fez questão de contar a história, dizendo o quanto nosso professor havia sido gentil e solicito e o quanto aquilo havia feito com que ela continuasse a correr. Ela, ao final do seu relato na rede, ainda indicava algo que eu só iria aprender depois: “o mundo de corridas tem muita gente assim”.
É que meu professor continuou sendo meu professor, mas cada vez que evoluíamos na corrida, ele se desgarrava da gente, como deve ser. Não precisávamos mais daquele tipo de auxílio. Então, nosso grupo continuou com a corrida, com o irrestrito apoio dele, mas sem sua presença necessariamente. E quase um ano depois, era a minha vez de ser a “desconhecida”. Eu fazia uma prova noturna, estava sozinha e tentava fazer o que todo/a corredor/a quer: baixar seu tempo. Entretanto, estava gripada com uma tosse seca, sem respirar direito. Já perto dos quatro quilômetros eu sentia um cansaço fenomenal e minha respiração estava ofegante demais. Nesse momento, um corredor, nem lembro o rosto direito, vi que um homem da minha idade, forte, se aproximou de mim e disse: “vá com calma, menina”. E ficou do meu lado. Não bastando isso, me orientou como segurar melhor a respiração, disse que a corrida noturna enganava, que eu poderia desmaiar se não a controlasse e seguiu ao meu lado até o momento que deixei de ficar ofegante e minha respiração se regularizou.
Eu nem pude agradecer a ele, porque assim que a situação se normalizou, ele correu como um raio e seguiu o caminho dele. Ele, ainda que pudesse ter um tempo melhor, se não me ajudasse, optou por me auxiliar, perder tempo e seguir. Ele olhou para fora de si e enxergou a mim e a minha dificuldade. Assim, como em outro momento meu professor fez com uma desconhecida. Isso é marcante e formativo.
Por isso, penso que a corrida de rua (ainda que seja uma modalidade que tenda a um elitismo, numa sociedade capitalista como a nossa) possa nos direcionar para uma vida mais saudável, menos  “fake”, a céu aberto, sem proteções nem coerções, sem vigilância, fantasiada da ideia de segurança.

Falo da surpresa do auxílio de um desconhecido, mas é óbvio que com o tempo todo o grupo, os mais chegados, os nem tanto assim, o professor, todos auxiliam uns aos outros, seja com dicas de exercícios, alimentação, desafios, seja com uma palavra amiga, um afago, um olhar que crê em nosso potencial. Por isso, por mais que meu professor insista, eu não acredito que a salvação é individual. Apesar de compreender o argumento bíblico (para quem acredita em reino do céu), é fato que o caminho e a linha de chegada a gente trilha é com a gente mesmo, “sozinho da silva”, todavia o percurso anterior é feito coletivamente e isso faz toda diferença. Pode até mudar a maneira com que lidamos com a vida nessa contemporaneidade liquida e louca.

4 comentários:

  1. Prima, adorei o texto. Sou um amante das corridas de rua, pois sei que os benefícios vão muito além do que um bom condicionamento físico. Mas, ver você conciliar corrida,arte e saúde foi o máximo.
    Parabéns!

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  2. Eu ainda chego lá!
    Por enquanto me contento com as minhas caminhadas matinais, que não deixa de ser coletiva e pedagógica, também.

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  3. Muito bom! Admiro sua força de vontade! Preciso começar a fazer alguma atividade física, só n sei como e nem por onde kkkk
    Bjo Lu

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