Acabou
a era das mulheres que se vitimizam. Isso é coisa do passado. Ser desdobrável
parece que é algo permanente, mas ser uma espécie envergonhada, nem pensar.
Vide Macabéia, que todo mundo acredita que morreu, mas está “vivinha da Silva”
e mora na beira da praia numa cidade próxima a capital baiana.
É
bem verdade que, atordoada com as declarações da cartomante, andou a esmo pelas
ruas, meio embriagada, e pum... Foi atropelada. Mas os poucos amigos (se é que
podemos chamar aqueles lá desse nome) que a conheciam viram o corpo estendido
no chão, a deram como morta e se livraram do problema, saindo da cena de
fininho. O que ninguém sabe (e é bom mesmo que não saibam) é que minutos depois
veio uma ambulância, carregou o corpo frágil e a levou ao hospital. Havia um
fiapo de vida como sempre houvera. E Macabéia passou quase um mês em coma.
Um
belo dia, acordou. Ninguém nunca a procurara. Estava meio tonta, mas uma
enfermeira negra e gorda, de pele lustrosa, tratou logo de dizer a ela toda
verdade. E aí, quando se lembrou do namorado, da amiga, da cartomante, foi subindo
um ódio, uma raiva, que ela levantou, puxou de um rompante os fios que estavam
espetados em seu corpo e, pela primeira vez, gritou a plenos pulmões. Talvez seja
isso que chamam de catarse.
Pois
bem, saiu do hospital com a roupa do corpo e voltou ao quarto onde morava na
Rua do Acre. O porteiro quando a viu quase desmaiou de susto. Pegou a chave no
mesmo xaxim onde costumava deixar escondido e entrou em sua antiga casa. Abriu
a porta, sobressaltada, pegou uma faca bem afiada e tomou um copo de água,
antes de realizar o que ali viera fazer. Decidida, dirigiu-se ao quarto e com a
raiva que agora arrepiava sua pele rasgou o colchão. Lá estava toda sua poupança.
Tirou o dinheiro e foi direto para a rodoviária.
Pensou
em retornar a sua cidade natal. Viu que morar no Rio de Janeiro
era sempre um problema. Baixa tolerância aos nordestinos. Achou que voltar para
o Sertão sem marido e pobre seria um atestado de fracasso. Aí, decidiu ficar no
meio do caminho. A Bahia. Era nordestina num estado nordestino, mas lá não
tinha conhecidos, nem familiares para fazerem cobranças ou para, pretensamente,
a ajudarem com falsidades e explorações. Antes só do que mal acompanhada, essa
era a maior lição que aprendera com o ex-namorado.
Com o dinheiro que tinha, comprou
passagem, alugou uma casa por um mês e tratou de ir numa loja comprar roupas e
sapatos sensuais e da moda. Decotes, ombros a mostra, fendas largas, roupas
vermelhas. Ainda sobrara uma graninha para umas poucas maquiagens. Tudo pela
primeira vez. E como decidiu viver da profissão mais antiga da humanidade, teve
em sua primeira noite de trabalho sua estréia no prazer.
E assim, da difícil vida fácil,
arrancou seu sustento por alguns anos. Mas, como também aprendera que nada era
definitivo em sua nova trajetória, Macabéia mudou de profissão. De uma hora
para outra, abriu um salão no bairro popular onde morava. E fez sucesso, viu?
Porque em toda mulher, ela encontrava beleza. Não acreditava ou defendia
padrões. Só não admitia as tímidas ou despojadas. Queria todas as suas clientes
cheias de brilhos e cores. Não ser notada? Nem pensar.
E como diz a canção: “com alguns
homens foi feliz, com outros foi mulher”. Viveu intensamente o amor. Casou,
descasou, separou, se amancebou. Traiu e foi traída. Agora, resolveu viver só e
muito bem acompanhada. Tem uns amigos coloridos. O cara da manutenção é menino
novo. Vai lá sempre que ela ou ele precisam. Tem muita gente boa que a acompanha
para farrear. Aprendeu a beber e sabe todos os points festivos da capital baiana. Não perde um ensaio de verão e
não paga para entrar em qualquer lugar. Quando não é o porteiro ou o segurança,
é o rico empresário que foi iniciado nos prazeres da carne pela velha Macabéia
que financiam sua diversão.
Macabéia
decidiu colocar a cara a tapa, decidiu olhar as pessoas de frente. Nunca mais
se anulou. É uma mulher pós-moderna. Dona de seus gostos, de seu gozo, de suas
decisões, de seu corpo. Em cartomantes, não acredita mais. Só crê na força dos
orixás e em sua mãe de santo. Por sinal, não deixa de cumprir uma obrigação.
Geralmente, só tem a agradecer. Mas, ai de quem pisar em falso em seu caminho.
É capaz de trancar a vida toda da pessoa com um feitiço ou uma praga. Macabéia
é uma Iansã desbocada. Não leva desaforos para casa e peita qualquer um que
tente a intimidar.
Da
alagoana que só tinha o terceiro ano primário e escrevia mal, restou bem pouco.
Talvez quase nada. Ainda tem dificuldade nos usos de s ou z, mas escreve um
diário e sonha publicar em livros sua história de vida. Nunca mais foi tola. A
ironia é que ela agora é mais jovem do que aos dezenove anos. Não sonha com o
porvir. Vive cada dia com voracidade. Nunca mais abortou o futuro de que engravidara
nem precisou se matar para viver novamente. Sua estrela brilhara em boa hora e
parece que ainda ia demorar para se apagar.
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