Às
vezes sou agraciada com uma imagem do cotidiano, nem sei o porquê disso. Nesses
momentos, só tenho vontade de inventar alguma maneira de eternizar este
presente gratuito. Acontece comigo todas as manhãs. Não, não vou exagerar.
Acontece nas manhãs em que me digno a acordar cedo e caminhar na Orla de Vilas
do Atlântico.
Bem
cedo, mais ou menos umas seis da manhã, ele surge, o Homem das pombas. Veste
todos os dias a mesma roupa: uma calça surrada de pano marrom, uma camisa de
botão com mangas curtas e cor clara. Nas mãos, traz um saco de pão cheio de
farelos e acho que sementes. Ele desponta e as pombas já começam a segui-lo. Na
verdade, elas começam a surgir vagarosamente, de muitas direções.
Depois
de sua entrada litúrgica no caminho que leva à praia, o Homem das pombas,
senta-se em frente ao mar, abre um livro grosso de capa resistente marrom que
parece ser a Sagrada Escritura e começa a entoar cânticos de louvor. Ao mesmo
tempo que ele canta, põe a mão no saco de papel e de lá – num gesto leve e
calmo – retira o alimento das aves. O céu fica salpicado de pontinhos ocres e
elas vêm em bando. Não são cem. São muito mais. Meu olhar embevecido diria que
são milhares.
E
eu, contemplando a cena, me pergunto: haverá, meu Deus, uma explicação
científica para isso? Ou elas, as pombas já agradecidas iluminam a passagem do
homem pela sua boa ação diária? Vai saber...
Lembro-me
de Cecília em sua janela de felicidades e transformo o verso em pergunta: será
que essa imagem existe para todos ou “só existe diante das minhas janelas”?
Asseguro que o Homem das pombas é de verdade. Tenho testemunhas. Mas não posso
afirmar que para todos, ele conceda esse alumbramento.
Um
dia em que chegamos no mesmo horário à praia, fui em direção a ele, tomei
coragem e perguntei coisas vagas, tentando entender o porquê daquela diária
missão poética. Ele me respondeu caoticamente. De seu olhar, reverberava uma
loucura sã. Disse que, no passado, tivera uma vida errante. Envolveu-se em
crimes, abuso de drogas e estivera preso por muitos anos. Na cadeia, encontrou
Jesus. Não sei se numa visita carcerária. O fato é que daí se arrependeu de
seus pecados e prometeu que, após sair da cadeia, louvaria a liberdade todos os
dia de sua vida. Reverenciaria aqueles que se elevam aos céus em sinal de seu
total desprendimento à matéria e representam a mais íntima e verdadeira
libertação: os pássaros.
Essa
é para mim a imagem mais franscicana que meus olhos já captaram em vida. No dia
em que conversamos, senti-me atordoada e um pouco sem chão... Ele tentara me
convencer de que eu também precisaria me converter antes do fim dos tempos. Só
não entendi se eu deveria me doutrinar à fé em Cristo ou à missão poética.
Achei que os dois caminhos exigiam um desapego radicalmente intenso demais para
gente rasa como eu.
Enfim,
após meses de devoção minha ao Homem das pombas, compreendi que nem tudo são
flores mesmo. E Cecília mais uma vez me explicou: “é preciso aprender a olhar,
para poder vê-las assim”. De dentro de uma daquelas mansões situadas na Orla de
Vilas, ouvi um som seco de tiros. Ou seriam fogos? De início, pensei em
assassinatos. Depois, observei a repetição do barulho, a fumaça e confirmei: eram
fogos.
Certamente,
pelo horário da manhã, espocavam em homenagem a algum orixá do candomblé. Logo
depois, descobri que a intenção dos fogos não era essa. O caseiro da dita
mansão, com o rojão em riste, gritava, para espantar as pombas. Ele
esbravejava, reclamava da balbúrdia que elas, por causa do Homem, deixavam na
praia. Pombo é bicho sujo, condutor de doenças, bramia o operário, seco de
razão, sem poesia, mas inquestionável em seus argumentos.
Eu
olhava tudo despida de poesia. Perplexa. Entristeci-me. O que era louvor e
contemplação para mim constituía-se obrigação religiosa para o Homem das
pombas. O que era louvor e contemplação para mim constituía-se tarefa doméstica
diária, sofrida, opressiva e exploratória para o empregado.
Fiquei
em silêncio entre os dois. As pombas despertaram em fuga. E eu, solitária, constatei...
O romântico, em frente à amplitude do mar, alimenta as pombas e louva a vida. O
realista, já cansado de limpar todos os dias, tardes e noites tanto coco de
pombo, espanta-os com tiros secos. E eu fico de que lado? Jamais soube. Não sei
suportar tal dicotomia. Nunca saberia quem estava com o direito. Abortei minhas
caminhadas filosóficas diárias. Abdiquei do fim desse enredo.
No
meu mundo ideal, invento que eles entraram num consenso. Agora, ambos louvam a
liberdade sem sujar os jardins alheios. De longe, sem ousar desfechos, prevejo um
mundo onde caseiros preocupados com cocos de pombo dialogam com os Homens das
pombas e quiçá se transformam neles.
Simplesmente lindo! Poeticidade com aromas de mar e alumbramento nos olhos. Gostei!
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