Ela
não foi esperada. Na verdade, a desejaram profundamente. A quiseram. Mas não
queriam que ela viesse como veio. Queriam-na um homem. O enxoval era todo azul.
Seu nome já estava mais do que escolhido: Jorge Ermírio. Era o nome do avô. Um
nome forte, sisudo. Como ela – se ele fosse – deveria ser. Teria a rigidez, a
seriedade dele. Mas porque viria num outro tempo, viveria mais do que ele e
seria um tributo a existência do patriarca.
Mas
ele nunca veio. O que veio foi ela travestida em si mesma. E sem ser quem era
esperado, ela carregou para sempre essa marca, rasgada em si. Carregou como uma
chaga aberta a certeza de que não viera para agradar. Sabia, aliás, pressentia
que na fila imaginária do antes da vida – talvez no céu onde os bebê se preparam
para existir – passara na frente do menino desejado, se antecipara a ele. E
sabe de uma, em vida, ela se arrependera da peripécia. Por que não deixara ele
vir? Por que não chegara numa casa cor de rosa onde sonhavam com uma delicada
menina? Era melhor esperar no antes da vida do que viver a vida assim, almejando
ser o que nunca seria. Desagradando mesmo com toda ânsia de querer agradar.
Poderia
ter ficado masculina. Poderia querer ser um homem. Poderia sonhar se travestir
em macho. Mas nem isso queria. Gostava de fragilidades. Sentia mais
sensibilidades do que os outros. Sua consciência já viera deformada em
delicadezas. Era uma mulher. Não tinha como fugir dessa certeza.
O
pai, desde que soubera da sua chegada, enfezara-se. Fechara-se para o mundo.
Não sabia ser desagradado. Ele também ficara sozinho. Zangou-se com ela e
trocou de mal para sempre. Não haveria companhias para assistir aos jogos no Maracanã; não teria sucessores em sua empresa nem com quem conversar sobre
coisas de homem. Não veria na face de outro a sua própria história. Por culpa
dela, teria que passar uma vida inteira numa casa cercada de mulheres. Pior!
Por culpa dela, deveria lutar sozinho contra aquelas quatro feras cooperativadas
em rebelião.
Ela,
renitente, apagava da lembrança essa tristeza que insistia em, por qualquer
descuido seu, vir à tona. Ela sempre soubera mesmo que ele nunca tenha dito. Ouvia
da tia, da amiga da tia, da irmã da tia, da prima da tia. Ele nunca lhe
quisera. Nem lhe quer. Ele é infeliz, taciturno e triste, porque você veio sem
ser chamada, sua intrometida. E o castigo da fada que não fora convidada para a
abençoar não seria o adormecimento profundo da menina. Ela tanto desejara isso.
Não! O castigo era outro. O castigo era ficar. O castigo era ter que lidar para
sempre com sua irritante mania de contrariar. A coitada ensaiava acertar.
Ficava horas e horas frente ao espelho, treinando o ato preciso, a hora certeira
para fazer-se amada. Mas na hora da verdade, se atrapalhava e fazia justamente
o contrário do que preparara. Metia pés e mãos por todos os lados, menos por
aqueles ansiados.
Hoje,
balzaquiana, não duvida do amor a duras penas construído entre ela e quem não a
quisera. Nunca perdeu a mania de desculpar-se por ter vindo no lugar do outro.
Jamais ouviu uma palavra de absolvição. Ela mesma acredita que não a merecia. A
marca funda se abre e se fecha todos os dias. O nó da garganta nem os anos de
terapia conseguiram fechar. Não há retornos. Ela sabe que deverá até o fim de
sua vida carregar a sua história como uma cruz. Não é isso que todos fazem? Mas
como dói.
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