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quarta-feira, 21 de maio de 2014

O HOMEM DAS POMBAS



Às vezes sou agraciada com uma imagem do cotidiano, nem sei o porquê disso. Nesses momentos, só tenho vontade de inventar alguma maneira de eternizar este presente gratuito. Acontece comigo todas as manhãs. Não, não vou exagerar. Acontece nas manhãs em que me digno a acordar cedo e caminhar na Orla de Vilas do Atlântico.
Bem cedo, mais ou menos umas seis da manhã, ele surge, o Homem das pombas. Veste todos os dias a mesma roupa: uma calça surrada de pano marrom, uma camisa de botão com mangas curtas e cor clara. Nas mãos, traz um saco de pão cheio de farelos e acho que sementes. Ele desponta e as pombas já começam a segui-lo. Na verdade, elas começam a surgir vagarosamente, de muitas direções.
Depois de sua entrada litúrgica no caminho que leva à praia, o Homem das pombas, senta-se em frente ao mar, abre um livro grosso de capa resistente marrom que parece ser a Sagrada Escritura e começa a entoar cânticos de louvor. Ao mesmo tempo que ele canta, põe a mão no saco de papel e de lá – num gesto leve e calmo – retira o alimento das aves. O céu fica salpicado de pontinhos ocres e elas vêm em bando. Não são cem. São muito mais. Meu olhar embevecido diria que são milhares.
E eu, contemplando a cena, me pergunto: haverá, meu Deus, uma explicação científica para isso? Ou elas, as pombas já agradecidas iluminam a passagem do homem pela sua boa ação diária? Vai saber...
Lembro-me de Cecília em sua janela de felicidades e transformo o verso em pergunta: será que essa imagem existe para todos ou “só existe diante das minhas janelas”? Asseguro que o Homem das pombas é de verdade. Tenho testemunhas. Mas não posso afirmar que para todos, ele conceda esse alumbramento.
Um dia em que chegamos no mesmo horário à praia, fui em direção a ele, tomei coragem e perguntei coisas vagas, tentando entender o porquê daquela diária missão poética. Ele me respondeu caoticamente. De seu olhar, reverberava uma loucura sã. Disse que, no passado, tivera uma vida errante. Envolveu-se em crimes, abuso de drogas e estivera preso por muitos anos. Na cadeia, encontrou Jesus. Não sei se numa visita carcerária. O fato é que daí se arrependeu de seus pecados e prometeu que, após sair da cadeia, louvaria a liberdade todos os dia de sua vida. Reverenciaria aqueles que se elevam aos céus em sinal de seu total desprendimento à matéria e representam a mais íntima e verdadeira libertação: os pássaros.
Essa é para mim a imagem mais franscicana que meus olhos já captaram em vida. No dia em que conversamos, senti-me atordoada e um pouco sem chão... Ele tentara me convencer de que eu também precisaria me converter antes do fim dos tempos. Só não entendi se eu deveria me doutrinar à fé em Cristo ou à missão poética. Achei que os dois caminhos exigiam um desapego radicalmente intenso demais para gente rasa como eu.
Enfim, após meses de devoção minha ao Homem das pombas, compreendi que nem tudo são flores mesmo. E Cecília mais uma vez me explicou: “é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim”. De dentro de uma daquelas mansões situadas na Orla de Vilas, ouvi um som seco de tiros. Ou seriam fogos? De início, pensei em assassinatos. Depois, observei a repetição do barulho, a fumaça e confirmei: eram fogos.
Certamente, pelo horário da manhã, espocavam em homenagem a algum orixá do candomblé. Logo depois, descobri que a intenção dos fogos não era essa. O caseiro da dita mansão, com o rojão em riste, gritava, para espantar as pombas. Ele esbravejava, reclamava da balbúrdia que elas, por causa do Homem, deixavam na praia. Pombo é bicho sujo, condutor de doenças, bramia o operário, seco de razão, sem poesia, mas inquestionável em seus argumentos.
Eu olhava tudo despida de poesia. Perplexa. Entristeci-me. O que era louvor e contemplação para mim constituía-se obrigação religiosa para o Homem das pombas. O que era louvor e contemplação para mim constituía-se tarefa doméstica diária, sofrida, opressiva e exploratória para o empregado.
Fiquei em silêncio entre os dois. As pombas despertaram em fuga. E eu, solitária, constatei... O romântico, em frente à amplitude do mar, alimenta as pombas e louva a vida. O realista, já cansado de limpar todos os dias, tardes e noites tanto coco de pombo, espanta-os com tiros secos. E eu fico de que lado? Jamais soube. Não sei suportar tal dicotomia. Nunca saberia quem estava com o direito. Abortei minhas caminhadas filosóficas diárias. Abdiquei do fim desse enredo.
No meu mundo ideal, invento que eles entraram num consenso. Agora, ambos louvam a liberdade sem sujar os jardins alheios. De longe, sem ousar desfechos, prevejo um mundo onde caseiros preocupados com cocos de pombo dialogam com os Homens das pombas e quiçá se transformam neles.

Um comentário:

  1. Simplesmente lindo! Poeticidade com aromas de mar e alumbramento nos olhos. Gostei!

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