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quinta-feira, 7 de abril de 2011

Conto de eterna separação, 2004


Mal Frida estacionou o carro na garagem, já o viu, de paletó e gravata, sentado na escada com a pasta de executivo no colo. Achou a cena engraçada, mas sabia que teriam mais uma vez que discutir, brigar, sofrer. Só depois de um mês da separação, ele, Rivanilton Rivera, ligara para ela, pedindo para apanhar os objetos que deixara em seu apartamento. Parecia que aquele esquecimento era proposital. No fundo, ele queria permanecer presente na casa dela através de seus objetos pessoais a fim de tentar persuadi-la a continuarem juntos. Clandestinamente, mas juntos. Frida respirou fundo, trancou o carro e se dirigiu a ele:

- Demorei?- A pergunta era irônica, pois o encontra havia sido marcado às 19h e já eram 22h.

- Que nada! O que eu faço é irrelevante diante do seu plano de salvar o mundo do maléfico poder branco, cristão e machista. Além do mais, sei que sua demora foi uma tática para atrapalhar os projetos políticos do DEM, pautados na falocracia elitista, já decadente desde a colonização – sorriu com sarcasmo.

Sabia como irritá-la: era só repetir os discursos em que ela acreditava piamente, de forma jocosa. Frida engoliu a seco a resposta à sua provocação. Entraram no elevador, calados e assim permaneceram. Até que um susto: o elevador parou. Eles se entreolharam assustados. Nada poderia ser pior. Não era claustrofobia nem medo, mas a angústia provocada pela imposição de estar trancada com alguém tão íntimo. “Devia ser proibido por lei que dois ex-amantes ficassem sozinhos, presos em local fechado”, pensou Frida. Antes que emitissem qualquer enunciado, o elevador voltou a funcionar. Respiraram aliviados sincronicamente. Saíram do elevador. Parecia que o tempo brincava preguiçosamente de passar. Frida colocou a chave na fechadura da porta e se entreolharam mais uma vez. Ao abrir a porta, ela nada falou, só gesticulou, balançando seu braço em direção a entrada do apartamento. Seu gesto era apenas sarcasmo. Rivera entrou no apartamento e o olhou com tristeza por tanto tempo que nem a viu sair e retornar, carregando uma caixa grande de papelão. Ela ergueu a caixa na direção dele para que a tomasse nas mãos e fosse embora de uma vez. O silencia pairava no ambiente.

- Aqui está tudo que deixou... Quer dizer quase tudo!

- Ah, então, a defensora da verdade e da justiça, roubou algum dos meus objetos para poder se lembrar de mim, cheirá-lo, senti-lo e encontrar-me nele, hein?

- Jamais ficaria com quaisquer dos seus objetos, de gosto extremamente duvidosos e escolhidos a dedo por sua esposa. No entanto, o sentido da palavra “deixar” é amplo e quando me refiro a ela falo de decepção, arrependimento, descrença. Só isso ficou.

- Não é o que parece. A verdade é que nós dois sabíamos da impossibilidade de unir convencionalmente dois mundos tão diferentes.

Esta era uma verdade inquestionável. Uma artista plástica de esquerda, que acredita na possibilidade de transformar o mundo num lugar livre, justo, igual, de respeito à diversidade e um vereador de direita, vinte anos mais velho, que possui como maior preocupação preservar sua imagem de homem solidamente casado, sério, cristão a fim de angariar votos de seus eleitores só poderiam ser inimigos, nunca amantes.
Rivera fechou a porta que permanecera aberta, sentou-se nas almofadas espalhadas pelo chão. Frida olhou-o e balançou a cabeça sem acreditar no que via. Bravejou alguma coisa inaudível, mas ele a interrompeu, apontando para a rede que ficava na varanda.

- Como você pode se separar de mim e continuar ostentando aquele rede na varanda?

Frida franziu a testa e sorriu. Pensou que era muita maluquice ou prepotência para um homem só. Ele continuou a falar:

- Se você continua expondo um objeto que marca o início do nosso relacionamento na parte central da sua casa, eu posso inferir que eu também tenho importância central em sua vida. Isso é psicologia, querida. Junguiana.

Ela, com olhar descrente, indignou-se com a eloqüente e súbita intelectualidade de almanaque:

- Não estou ouvindo isso... Logo você que sempre caracterizou quaisquer estudos em torno da psicologia como babaquice. Logo você que quando um amigo meu gay relatou como a terapia o havia feito “sair do armário”, você disse que isto só confirmava que terapia era coisa de “veado”, mesmo. Ah, não!!! Você está querendo destruir o meu fim de dia, não é ?

Rivera sem sequer prestar atenção ao que Frida dissera, continuou:

- Só você mesmo para comprar uma rede em pleno desfile do Dois de Julho. Foi muito engraçado te ver, lembro-me claramente, de blusa vermelha, calça jeans, bandeira do PT em uma mão e uma rede na outra. Eu não poderia perder a oportunidade de ironizar uma militante consumista.

- Não sou consumista. Só aprecio como qualquer artista plástica a arte popular. Esta rede é feita por uma cooperativa de mulheres da Costa do Dendê que vem a Salvador um vez por ano, e no dia do desfile. Sua cantada foi muito infeliz e só ratificou sua cafajestice.  Me elogiar, dizendo que as donas de casas deveriam prestigiar o dia da Independência da Bahia era um acinte.

- Naquele dia, eu pensei que você sonhava em casar... Queria “ter um homem para chamar de seu”, como canta o Erasmo.

- E eu pensei que você era militante de esquerda. Só por isto te dei papo. Achei que aquilo de dona de casa era brincadeira. Só muito tarde, entendi que era sério e aí...

 - Já estávamos envolvidos, nos amando.Nos idealizamos e quando nos descobrimos já era tarde. Pensei  que só amaria alguém igual a mim, mas tenho que assumir: sua rebeldia me encanta. Talvez, um dia ,possa ser como você.

- Impossível, você já está velho demais. Entretanto, olhando, você aí, sentado no chão, vejo o quanto, você é frágil. Acho que foi isto que me encantou. Acreditei ser mais velha do que você. Só depois entendi que era justamente o contrário. Sou apenas mais madura.

- Então, queria cuidar de mim? Toda mulher é mãe, mesmo.

Frida abaixou a cabeça. Ele não entendia mesmo como ela o amava. Não valia a pena insistir.

- Rivera, só você sabe me irritar. Não desejo ser mãe nem casar. Só quero respeito.

Rivera também abaixou a cabeça. Não conseguia compreender como era possível crer em futuro, sonhos e ideais. A vida é tão prática. Ela não entendia mesmo como ele a amava. Não valia a pena insistir.

- Frida, além de te respeitar, te admiro, mas não sei, não aprendi a ser diferente do que sou. Eu não posso me separar de mim mesmo para ficarmos juntos.

- Não vamos falar nisso agora. A separação já estava marcada desde o nosso encontro. Só fizemos adiá-la. Insistimos, nos rebelamos contra o óbvio. Foi “dor e delícia”, mas não podemos mais. Não insista. Suma, por favor. É um apelo: nos amamos, mas não sabemos como fazer isto. Em toda literatura que li, os amantes são despojadas, mas nós não. Acho que Deus fez dois seres extremamente egoístas e Ele, para se divertir, fez com que estes seres se encontrassem para se desencontrarem para sempre. Assim, somos nós dois.

Ela se ajoelhou para ficarem mais próximos, olharam-se. Ele tirou os fios de cabelo que encobriam o rosto dela, puxou o pescoço de Frida em sua direção e se beijaram. A mão de Rivera já abria o primeiro botão da blusa, quando o celular dele tocou:

- Alô, querida. O jantar na casa dos Magalhães? É, hoje? Ainda dá tempo, estou indo- Ele se levantou apressado e sem jeito.
   
Frida abriu a porta. Sequer se olharam, estavam envergonhados da impotência que tinham sobre si mesmos. Nada disseram. Ele entrou no elevador cabisbaixo. Ela entrou em casa ciente da separação. Triste, mas confortada. Agora era definitivo. Não haveria mais encontros, só desencontros. A separação estava consumada.

 Só, neste momento, Frida viu a caixa dos pertences de Rivera no chão ao lado das almofadas. No outro dia, com certeza, ele voltaria para continuarem a separar o que jamais se uniria.

Um comentário:

  1. Gostei de saber que você criou um blog, Lu. Prometo a mim mesmo que sempre que puder vou ler suas traquinadas.

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