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sábado, 17 de dezembro de 2011

TRAJETÓRIAS LITERÁRIAS

Há seis meses, visitei nove escolas públicas, entrei em mais de trinta salas de aula, conversei com mais de trezentos jovens. Tudo isso para informá-los e os convidar a participar de um projeto de leitura. Na verdade, círculos de leitura que serão o objeto de estudo do meu doutorado. A partir disso, alguns jovens, dez em Itinga e vinte em Areia Branca, aceitaram o desafio e vieram semanalmente aos CRAS para, por duas horas ou mais, conversar sobre si mesmos, sobre a vida e sobre o mundo, tendo como companheiro inseparável, como fiel escudeiro o texto literário. Foram questionados exaustivamente, chegando a ficar cansados quando alguém perguntava: “Por quê???” Escreveram cartas, pintaram murais, teceram seus sonhos, fizeram projeções para o futuro e as colocaram numa cápsula do tempo, encenaram peças, construíram presentes, brincaram, brigaram... Pensaram.

Poxa, estes jovens nadaram contra muitas marés. Marés que eu nem posso imaginar ou descrever, apenas intuir. E vieram viver esta aventura com coragem. Mostraram-se sempre questionadores, polêmicos, engraçados, ativos. Souberam posicionar-se, dizendo o que pensavam. Fizeram novas amizades; fortaleceram os antigos laços e se tornaram singulares, imprescindíveis uns para os outros, sobretudo, para mim.

Nosso ponto de partida e de chegada foi sempre a leitura de literatura e a partir dela falamos de nós mesmos, olhamo-nos no espelho, uns de peito aberto, outros ressabiados. Falamos de nossas famílias, do futuro, do passado, das ausências e das presenças. Compreendemos que os contos de fadas não são só para crianças. Viajamos em máquinas do tempo, ficamos curiosos por saber as razões de um vestido misterioso estar preso na parede. Até um coelho apareceu, querendo ser preto e questionando uma menina de laço de fita. Depois conhecemos Socorro com seu cabelo cauterizado e sua ânsia em ter uma pele mais clarinha. Então, tentamos olhar nos olhos do coelho branco que queria ser preto e da mulher negra que queria ser branca para ver as razões de seus desejos.

Voltamos a infância e rasgamos saco, puxamos cadeira, levamos ovo na colher e demos muita risada. Entendemos que tudo aquilo que nos dizem hoje vai ser dito de uma forma bem diferente daqui há trinta anos. Gente fantástica apareceu em nossas vidas, como uma fabulosa mulher que era capaz de tecer tudo o que desejava, mas quando se zangava ou se cansava também sabia destecer seus próprios desejos. Conhecemos outras mulheres, estas de carne e osso, como Pagu, que mesmo sem mágica de varinha de condão, conseguiram transformar feiticeira corcunda em rainha do tanque. Além de gente, apareceu bicho diferente, como um jumento que entrou na faculdade e desejou uma outra escola, com mais brincadeira, mais arte, mais riso.

Falamos de festa, de micos, de namoros e paquera. Lemos revista de fofoca e sentimos falta de gente de mais cores na revista Todateen. Estranhamos em ver e ouvir uma história às avessas em que a menina branca é que era maltratada e vista como feia. Que diferente. Que distante de nosso mundo, onde nos ensinaram que menina bonita mesmo é a loura esbelta da Malhação. Depois, falamos do amor que talvez transforme nossa vida a tal ponto que faça o mudo falar pela força mágica de um pão de queijo. Ou o amor escondido por trás de um vaso japonês cheio de tesouros.

Por fim, palhaços vieram nos convidar a achar no lixo, no lugar mais feio, mais sujo, a beleza da palavra que é construída para provocar a ira, o riso, o ódio, o amor, a auto-estima. E nesta valsa tresloucada, neste caminho inesperado, às vezes difícil, cheio de labirintos, ouvíamos as vozes de gentes várias, daqui e de acolá, que ainda estão no mundo ou que já desapareceram. Estiveram conosco Clarice Lispector, Roseana Murray, Pedro Bandeira, Vânia Abreu, os irmãos Grimm, Rubem Alves, Ana Maria Machado, Legião Urbana, Carlos Drummond de Andrade, Cristiane Sobral, Moacyr Scliar, Marina Colasanti, Rita Lee, Cláudio Torres, Jotacê, João Ubaldo Ribeiro, Joel Zito Araújo, João Lima, Adonias Filho. Muitos nos agradaram, outros nos aborreceram, mas todos, com certeza, provocaram algo em nós.
Depois de tudo isso, olho para trás e nem acredito que em tão pouco tempo, fizemos tantas coisas. Também ainda não consigo acreditar que as areias da ampulheta do tempo escorreram tão rapidamente. Chega a dar um nozinho na garganta e um medo de olhar para frente. Mas é inevitável: o tempo não pára. Como diria o poeta, não há futuro, só há o presente, por isso não nos afastemos dele, vamos de mãos dadas. Assim, agora só nos resta dar uma pausa, reorganizar nossos rumos para no novo ano, partilhar novas experiências e saborear novos saberes que emanam de uma mera folha de papel salpicada de manchinhas-desenhos pretos, prenhes de sentido e imageem.

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